Eduardo Siqueira: Quem ganhou e quem perdeu com a eleição de Donald Trump?
Eduardo Siqueira argumenta que o Partido Democrata perdeu a eleição nos EUA após ter deixado de lado a pauta da política econômica e da melhoria de vida da classe trabalhadora.
Após uma semana dos resultados das eleições para presidente, senadores, deputados federais, governos estaduais e deputados estaduais, muitos comentaristas analisaram as causas da ampla derrota do Partido Democrata e sua candidata a presidente Harris e da ampla vitória do Partido Republicano e seu candidato Donald Trump.
Em primeiro lugar há que considerar o mapa eleitoral dos Estados Unidos, onde fica claro que candidato ganhou onde. Como tem acontecido nas últimas eleições para presidente, os democratas ganharam nos estados da costa oeste, em Minnesota, Illinois, Virginia, Washington D.C., Colorado, Novo México, Havaí e toda a região da Nova Inglaterra (estados de Vermont, New Hamphsire, Massachusetts, Maine, Connecticut, Rhode Island) e Nova Yorque. Já os Republicanos ganharam em quase todos os estados do Meio-Oeste, com exceção de Illinois e Minnestota, no Alaska, nos estados do Sul, em todos os estados ditos pêndulos (Pennsylvania, Wisconsin, Michigan, Nevada, Arizona, Carolina do Norte e Geórgia) porque ora votam em maioria para os democratas, ora para os republicanos.
Em segundo lugar, há que levar em consideração que os republicanos aumentaram a vantagem sobre os democratas nos estados onde Trump ganhou em 2016 e diminuíram a diferença com os democratas nos estados que são considerados tradicionalmente redutos dos democratas como Nova Yorque e Califórnia. Daí a explicação para a maioria de votos dos republicanos no cômputo geral, que raramente aconteceu nas últimas décadas. Nem George Bush nem Trump tiveram maioria de votos quando foram eleitos presidentes.
Do ponto de vista da distribuição dos votos por gênero, classe, e raça, o que ficou claro é que Trump ganhou votos de trabalhadores de baixa renda de todas as raças, homens e mulheres latinos, e jovens, que usualmente votavam nos democratas. Harris ganhou votos entre as mulheres brancas com educação superior. Entre os idosos, Trump também ganhou.
Porém, mais importante do que apenas identificar ganhos e perdas de voto é analisar porque os republicanos tiveram vitória expressiva e para muitos inesperada. Alguns analistas da midia “mainstream” como a CNN, a MSNBC, e muitos outros da imprensa liberal, concentram sua análise nas causas imediatas como erros importantes da campanha dos democratas (foco demasiado na pessoa do Trump, no apoio de artistas e atletas famosos, na falta de separação entre Harris e o governo Biden), escolha da candidata Kamala Harris sem apoio na base do Partido Democrata por não ter sido escolhida em convenção do partido, ou demora em decidir pela substituição do Presidente Biden como candidato.
Sem dúvida todos estes fatores contribuíram para a vitória dos republicanos. Porém, se trata de explicações muito superficiais. Para entender o pano de fundo da eleição de 2024, é preciso deixar claro que uma boa síntese da causa principal pode ser resumida na frase célebre do estrategista do ex-presidente Clinton para explicar sua vitória contra o presidente George Walker Bush, a quem chamo de Bush I: “É a economia, estúpido” (it’s the economy, stupid). Em outras palavras, mais uma vez a maioria do povo dos EUA votou de acordo com o bolso.
Em linhas gerais, a proposta de agenda política apresentada pelos democratas tinha muita influência do identitarismo “woke,” dando ênfase aos direitos das mulheres ao aborto, direitos dos transgêneros, das minorias raciais/étnicas e pouca ênfase nas questões mais sentidas pela classe trabalhadora dos Estados Unidos. Esta agenda foi colocada como eixo central da campanha em um país onde os aluguéis estão muito caros, a compra de imóveis se tornou mais difícil com as altas taxas de juros, a inflação no preço dos alimentos continua sendo sentida por milhões de pessoas no seu dia a dia, e as dívidas aumentam pelo forte impacto das taxas de juros nas dívidas de milhões de estadunidenses. Além disso, o salário mínimo de 7.5 dólares/hora segue muito abaixo do necessário para dar conta do alto custo de vida, que também segue alto para a maioria dos trabalhadores cujos salários reais não acompanham a alta dos preços desde os anos 70.
Neste mesmo país onde o número de moradores de rua, dependentes de drogas, de trabalhadores precários e vítimas de assassinatos em massa cresce a olhos visto, o que se ouvia da campanha da candidata Harris sobre tudo isto foi que o país ia muito bem e que o governo Biden melhorou a vida dos cidadãos com seu programa de investimentos chamados Novo Acordo Verde (Green New Deal) e Lei de Investimento na Infra-Estrutura e Empregos (Infrastructure and Investment Jobs Act). Sem falar na falta de proposta concreta para enfrentar a crônica crise do sistema de saúde, que afeta dezenas de milhões de estadunidenses pelo alto preço dos planos de saúde, pela falta de cobertura de seguros de saúde, ou pelos pobres resultados obtidos quando comparados com quase todos os outros países desenvolvidos do chamado mundo ocidental. Depois do chamado Obamacare, muito pouca coisa nova tem sido proposta pelo partido, que se nega a apoiar um sistema universal público, semelhante ao do Canadá.
O Partido Democrata fez sua campanha como se os EUA estivessem com a economia crescendo, oferecendo bons empregos, com baixa inflação, acreditando que o eleitorado iria votar contra a ameaça de Trump à democracia de baixa intensidade que vigora no país há décadas, ameaça que é verdadeira e foi repetida algumas vezes de viva voz pelo candidato.
A campanha de Trump por sua vez prometeu de novo melhorar a vida do povo, reconheceu que a economia do país vai mal e que ele será o líder que resolverá os problemas mais sentidos pelo povo, promessa típica de demagogos fascistas. O lema Make America Great Again (MAGA), ou Fazer a América Grande de Novo em português, foi requentado para dar nova esperança e abraçar as aspirações do povo por um país forte e próspero. Não resta dúvida que a sua campanha atacou mulheres, homossexuais, transgêneros, minorias raciais e principalmente os imigrantes, que há muito se tornaram o bode expiatório para a decadência dos Estados Unidos. Não faltaram mentiras de todo tipo (por exemplo, imigrantes haitianos comem gatos em uma cidade do estado de Ohio) e ofensas aos imigrantes, sem os quais a economia do país entrará em profunda recessão, segundo estudos de diversos economistas respeitados.
Embora para aqueles que vivem no chamado Sul Global, incluindo o Brasil, a política externa imperialista de guerras eternas, sanções econômicas, apoio ao genocídio de Israel e aos fascistas da Ucrânia, ameaças a quem se opõe a chamada ordem internacional baseada em regras, e o impacto da vitória do Trump nos seus países seja a questão principal, esta política externa não é fator determinante do voto da grande maioria do eleitorado. Já foi assim quando o eleitorado se manifestou em massa contra a guerra do Vietnã. Não cabe dúvida que muitos se queixam dos enormes gastos militares e da falta de investimento na infraestrutura dos transportes, pontes, estradas, escolas, etc. E vale destacar que sem dúvida teve peso contra o Partido Democrata o apoio ao genocídio em Gaza, que influiu na abstenção da juventude universitária e no voto dos muçulmanos em algumas cidades de Michigan onde esses tem grande presença.
Ao fim e ao cabo há que explicar como um candidato racista, homofóbico, misógino, em resumo, neofascista, ganhou tantos votos da classe trabalhadora dos EUA? Será que a maioria da classe trabalhadora dos EUA, inclusive a parte mais oprimida dela como latinos e negros, concorda com o neofascismo? Será que trabalhadores sindicalizados agora resolveram apoiar o neofascismo como resposta ao seu desencanto com o sonho americano?
A resposta óbvia é que não foi por estas posições que Trump ganhou a eleição. Ao contrário, ganhou apesar de ter estas posições, que não contam com o apoio de grande parte de quem votou nele. Como afirmou recentemente o senador independente Bernie Sanders, “os trabalhadores abandonaram o Partido Democrata porque o Partido Democrata abandonou os trabalhadores.” De fato, o Partido Democrata já foi representante dos interesses dos trabalhadores e sindicatos. Nas últimas quatro décadas, principalmente a partir da administração de Bill Clinton, se afastou muito do partido de Roosevelt e John Kennedy. Como resultado, o eleitorado que comumente vota, cerca de 2/3 dos que poderiam votar, votou outra vez contra os democratas, mais que a favor de Trump.
Se este é o caso, há que buscar a resposta naquilo que considero essencial. O imperialismo dos EUA está em decadência há algumas décadas. O país se desindustrializou e gerou desemprego estrutural para milhões de trabalhadores, particularmente nos estados conhecidos como Cinturão da Ferrugem (rust belt), onde havia grande presença da manufatura. Cidades como Detroit, Cleveland, Pittsburgh, que no passado eram cidades industriais do meio oeste, passaram a ser dependentes de turismo e serviços e perderam grande número de habitantes. A partir da década de 1970 os EUA passaram a ser dominados pelo capital financeiro, pela indústria de seguros, e setor imobiliário (Finance, Insurance e Real Estate, ou FIRE, em inglês). O neoliberalismo se tornou hegemônico e os empregos industriais foram inicialmente para as maquiladoras do México e a seguir para a China. As políticas de corte social-democrata do New Deal foram substituídas por políticas neoliberais. A ideologia neoliberal se tornou hegemônica.
Segundo o economista político Michael Hudson, os EUA estão desde então divididos entre credores e devedores. Os credores fazem parte do 1% da população, com domínio dos oligarcas bilionários como Elon Musk, Jeff Bezos, Warren Buffett, a família Walton, Bill Gates, entre muitos outros. Os bilionários representam os interesses do capital financeiro especulativo, como Black Rock, State Street, Vanguard, da indústria bélica, e de Wall Street em geral. São donos da Amazon, Walmart, Microsoft e tantos outros conglomerados. Ganham muito dinheiro com a inflação dos ativos e das dívidas. A grande maioria da população paga dívidas crescentes de empréstimos obtidos em bancos para comprar casa própria, pagar ensino superior e comprar carros. Em outras palavras, é uma população fortemente endividada.
Esta grande burguesia oligárquica manda literalmente nos dois partidos através do financiamento das campanhas, que em 2024 atingiu cerca de 15 bilhões de dólares. Elegem o Congresso, os governadores, os deputados estaduais, e justificam a visão do povo de que os EUA tem os melhores políticos que o dinheiro pode comprar, sabedoria popular que se fortaleceu com a decisão do Supremo Tribunal Federal que legalizou as corporações como portadoras de direito de opinião como se fossem cidadãos. Na prática criaram uma cidadania corporativa para encher os cofres dos partidos e candidatos apoiados pelos bilionários. Falta pouco para os deputados e senadores dos dois partidos vestirem a camisa ou usarem abertamente a propaganda dos oligopólios nos seus ternos e gravatas no Congresso.
Quanto a política externa, ambos partidos são dirigidos por neoconservadores que no essencial estão de acordo sobre enfraquecer a Rússia, a China e o Irã para manter a hegemonia unipolar dos EUA e seus aliados ou vassalos ocidentais através de guerras híbridas e quentes se necessário for. Segundo o ex-analista da CIA, Ray McGovern, trata-se da dominação do que ele denominou MICIMAT, abreviação para Military Industrial Complex, Intelligence, Media, Academy and Think Thanks. Esta sigla expande o tradicional Complexo Militar Industrial ao incluir a CIA, a mídia (incluindo a chamada midia social), as universidades e os think tanks (como o Conselho de Assuntos Externos e a Corporação Rand) na rede de instituições que produzem e reproduzem as políticas imperialistas dos Estados Unidos.
Dado este quadro geral, não é surpresa que o povo americano tem poucas opções partidárias e oscila entre os dois partidos do duopólio até que perca a paciência e promova de novo grande transfomação na estrutura partidária. Alguns analistas importantes da esquerda americana acreditam que este dia chegará, mas ninguém sabe quando. No passado já houve mudanças importantes nestes dois principais partidos. Os Republicanos foram o partido abolicionista de Lincoln enquanto os Democratas eram os conservadores contra a abolição da escravidão. No século 20, a partir da Depressão dos anos 30 houve inversão. Os Democratas passaram a defender pelo menos parcialmente os trabalhadores e seus sindicatos enquanto os Republicanos se tornaram conservadores e abertamente a favor dos oligopólios. Já houve até o razoavelmente grande partido socialista de Eugene Debs, que teve votação expressiva para presidente em 1912, mesmo estando na cadeia.
Com a administração Trump é provável que ganhem os bilionários, os grandes bancos, as grandes empresas que controlam Wall Street, os cristãos evangélicos que o apoiam, os produtores de armamentos, a indústria de petróleo e gás, os sionistas, e os reacionários de todos os matizes. Quem perderá serão os sindicatos combativos, os imigrantes indocumentados, os idosos, os pobres, grande parte das mulheres, dos negros, latinos e asiáticos, e todos aqueles que dependem de regulamentação de direitos e proteção social por políticas públicas, desde a proteção do meio ambiente até o direito ao aborto e ao planejamento familiar, até o direito à sindicalização, reunião e opinião. Em resumo, teremos avanços do neofascismo no Poder Executivo, em particular nos ministérios e agências que favorecem os interesses populares, e provável crescimento de magistrados na Suprema Corte e Tribunais de Apelação alinhados com a extrema-direita trumpista.
Os movimentos populares dos EUA terão que organizar o povo contra este retrocesso conforme o fizeram no governo de Trump entre 2016 e 2020. Naquele período foi possível paralisar o avanço da extrema-direita através de manifestações massivas de uma frente democrática antifascista contra os republicanos e voltar a ter maioria democrata no Senado nas eleições de 2022. A catastrófica resposta do governo Trump para conter a pandemia de COVID-19 deixou claro para a sociedade a demagogia e total falta de empatia com o enorme sofrimento das famílias das vítimas. O episódio do assassinato de George Floyd pela polícia em Minnesota foi emblemático deste período. Este desgaste associado à crise econômica estrutural que persiste desde 2008 fez com que os democratas voltassem à Casa Branca em 2020. No entanto, quatro anos depois estes mesmos democratas pagaram o preço de terem feito muito pouco para responder ao que mais importa para grande parte do povo estadunidense. O futuro dirá até que ponto os neoconsevadores terão sucesso daqui para a frente e até quando os trabalhadores americanos continuarão oscilando entre votar na Coca ou na Pepsi Cola.
Eduardo Siqueira, professor na Universidade de Massachusetts, Boston, EUA.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.