A luta contra o racismo só avança com democracia
O jornalista Maurício Pestana argumenta que as conquistas contra o racismo só são possíveis em sociedades democráticas.
O fantasma que assombra a democracia
Dos traumas que tive na vida, o último que me livrei foi o de ir ao velório. Encarar de frente a cara de um morto, nem pensar. Afinal, entre seis e dez anos de idade presenciei muitos corpos pelo caminho da escola primária onde estudava. O bairro era o Jardim Santo André, divisa entre os municípios de três cidades industriais nos anos 70, Santo André, Mauá e São Paulo, traduzindo periferia dessas três cidades. Por serem regiões industriais, berço do sindicalismo combativo do ABC que ousava desafiar a ditadura militar, nosso bairro servia também de desova de um tal “Esquadrão da Morte”, a polícia política do regime. Em geral, eram cadáveres sem roupa ou documento. Sempre que isso ocorria era uma festa para a criançada, afinal a aula era cancelada e a diretora ia chamar as autoridades para levar o defunto. Engraçado que por muitos anos as imagens daqueles corpos ficaram em minha mente, daí o surgimento do trauma para enterros.
Qualquer pessoa da minha geração, que vivenciou na infância o período duro da recente história política deste país, o regime militar, sabe do alto preço que pagamos ao sair das trevas daquele período. Parte da minha geração, já na juventude e mais politizada dos anos 80, ficou marcada por movimentos de redemocratização do país, pintamos as caras e fomos as ruas na luta por eleições livres e diretas. No meu caso, com foco na denúncia das desigualdades sociais e raciais no Brasil, tempos difíceis quando, por conta dos 20 anos de autoritarismo, parcela da sociedade padecia de uma verdadeira amnésia sobre esses problemas, afinal, uma das bandeiras da ditadura era propagar que o Brasil era o único país do mundo a gozar a sonhada “democracia racial” fazendo muitos acreditarem mesmo nisso.
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Todos os avanços na direção da equidade racial e muitos na área social foram conquistas daquela geração pós-ditadura, o que garante inclusive nos dias de hoje o direito de nos manifestarmos livremente contra o racismo. Conquistamos na Constituição de 1988 o racismo como crime inafiançável, a lei que obriga o ensino da história da África e seus descendentes em todos os níveis escolares, a Lei de Cotas, que destina 20% das vagas nas universidades para pessoas negras, as políticas afirmativas que hoje se estendem, e até mesmo o Executivo federal, e muitos municípios, como São Paulo, e até mesmo setores do Judiciário e, mais recentemente, o reconhecimento de Zumbi dos Palmares como herói da pátria e o Dia da Consciência Negra como feriado nacional. Todos esses foram avanços que jamais se tornariam realidade em um regime autoritário.
O Brasil amanheceu estarrecido ao saber que o fantasma daquele nefasto período esteve recentemente mais próximo do que imaginávamos, e desta feita mais violento ainda, incluindo a morte de altas figuras da República. Se isso se confirmasse, não resta a menor dúvida de que todas as nossas conquistas cairiam por terra, até porque é da natureza dos regimes autoritários o questionamento e a anulação de qualquer avanço obtido sob as bases populares, democráticas. Isso tudo nos alerta de que defender a democracia é simplesmente defender a mãe de todas as nossas conquistas, pois não existem equidade, respeito e avanços para uma sociedade mais justa e igualitária em regimes de exceção, e a própria história recente do nosso país mostra isso.
A lição que podemos tirar do esgoto que tem emergido nos fatos revelados esta semana é que a maior de todas as lutas que devemos priorizar é a luta incondicional de defesa da democracia. Não existe equidade, igualdade e direitos iguais se não existir democracia – é o que a nossa história nos mostra. Ainda é cedo para projetarmos o desenrolar desses tristes e nefastos fatos que ocorreram na passagem do governo anterior a este que aí está, mas uma coisa é certa: se confirmado tudo o que está sendo divulgado pelos principais órgão de imprensa deste país, o desfecho desse episódio só pode ser um, a punição de todos os envolvidos, porque pior que um regime autoritário é uma democracia desrespeitada e desacreditada.
Maurício Pestana é jornalista, presidente do conselho editorial da revista Raça e comentarista para áreas de Diversidade e Inclusão da CNN Brasil.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.