Retrospectiva 50 anos tenta exorcizar fantasmas da TV Globo através do “tautismo”
Competentes jornalistas como Caco Barcelos e Ernesto Paglia colocados frente a frente numa mistura de “Roda Viva” da TV Cultura com o “Galeria dos Famosos” do Domingão do Faustão. E todos confrontados com suas imagens do passado (mais novos, mais magros e com mais cabelos) na expectativa de que depois a câmera em close arranque algum tipo de emoção dos experientes profissionais. A retrospectiva “Jornal Nacional – 50 Anos de Jornalismo”, projeto idealizado pelo apresentador William Bonner (ansioso e sempre meneando a cabeça na tentativa de exorcizar os fantasmas da história da TV Globo), mostra de forma didática em seus cinco episódios o que foi o início e o que será o fim da hegemonia da emissora: o modelo melodramático de jornalismo que ajudou a encobrir informações no auge da ditadura e o tautismo (tautologia + autismo) atual como manobra desesperada para sobreviver aos novos tempos de queda de audiência.
Quando fazia a faculdade de jornalismo lá pelo início da década de 1980, minha geração via na TV Globo uma referência negativa para qualquer estudante que iniciava a carreira. Brincávamos com o tique melodramático dos repórteres que buscavam muito mais os sentimentos do entrevistado do que depoimentos objetivos da realidade. “O que você está sentindo?…”, era a pergunta clichê feita para a vítima de uma enchente no Sul do País naquele momento, com água até a cintura, dirigida por um repórter da Globo em uma canoa, protegido por uma capa de chuva e o rosto consternado.
Esse traquejo em destacar a emoção no lugar da objetividade certamente foi a resultante de uma emissora de TV que cresceu em meio e através da ditadura militar nos anos 1970: numa mídia visual que mantinha uma relação tão simbiótica com o regime militar (o Jornal Nacional cresceu na esteira da estatal Embratel com torres repetidoras espetadas por todo o País com dinheiro público para a transmissão de sinal privado), o viés sentimentalista e melodramático era a estratégia de ao mesmo tempo mostrar e sonegar informações.
Pois a série retrospectiva do Jornal Nacional, dentro das comemorações dos 50 anos da emissora, não perdeu esse traquejo ao expor brilhantes jornalistas como Caco Barcelos, Ernesto Paglia e Sandra Passarinho a um programa com o mesmo espírito do quadro “Galeria dos Famosos” do Domingão do Faustão: vemos em todos os episódios a insistente confrontação das imagens de época dos jornalistas (mais jovens, mais magros e com mais cabelos), para depois cortar e enquadrar em close o jornalista na atualidade, como que tentando arrancar algum olhar marejado de lágrimas ou uma expressão qualquer de emoção- para assistir à série retrospectiva do JN clique aqui.
Constrangimento e tautismo
O mote do projeto de William Bonner é mostrar a “emoção” e o “lado humano” dos profissionais que trazem as notícias para os telespectadores todas as noites. Mas tudo que conseguiu foi confirmar esse traquejo sentimentalista cultivado desde os tempos da ditadura e o tautismo (tautologia + autismo) atual da emissora – sobre esse conceito clique aqui.
O resultado foram olhares constrangidos, cabisbaixos e sorrisos amarelos dos experiente jornalistas globais a cada close. A exceção foi Caco Barcelos que, confrontado com a sua imagem de início de carreira e a apresentação com falsa intimidade de William Bonner (“Temos aqui Caco Barcelos, maaagrooo!), rebateu contextualizando sua foto: “e lá atrás uma manifestação, a periferia como sempre…”, fazendo contraponto à rasgação de seda metalinguística reinante.
Esse traquejo sentimentalista que anima o projeto idealizado por Bonner entra em contradição direta com a tentativa da emissora nas suas comemorações de 50 anos de tentar descolar as suas origens da ditadura militar – afinal, a insistência em apresentar a emoção no lugar da informação foi a principal estratégia da TV Globo para censurar informações ao descontextualizar a própria notícia.
A insistência de Bonner em querer demonstrar que a TV Globo foi vítima da censura criou situações involuntariamente engraçadas, como no momento em que Glória Maria relatou que dentro das redações da emissora havia uma lista de temas proibidos de serem abordados. Ansioso (demonstrado pela insistência com que meneia a cabeça a cada fala), Bonner rapidamente interveio: “lista criada pelos censores…”, certamente temendo a ambiguidade do depoimento da jornalista, um verdadeiro ato falho que apenas revela a própria autocensura que Roberto Marinho impôs dentro do espírito de apoio à “revolução de 1964” – de resto, confirmado pelo editorial do próprio no Jornal O Globo na “comemoração” dos 20 anos da “revolução”: “Temos sido fiéis aos seus objetivos…”, escreveu Marinho – sobre isso clique aqui.
Também é sintomático o breve depoimento gravado de Armando Nogueira (1927-2010). Responsável pela implantação do telejornalismo da emissora e diretor por 25 anos, Nogueira parece ter se queimado desde o depoimento dado no documentário inglês Brasil: Muito Além do Cidadão Kane nos anos 1990 onde detonou a manipulação no Jornal Nacional na edição do debate entre Collor e Lula em 1989.
Na retrospectiva, Bonner qualificou esse episódio como “erro” de um telejornalismo que ainda aprendia a “viver na democracia”. Mas, pelo que demonstrou a série idealizada por ele, a emissora ainda não aprendeu sua lição: o “espírito de 1964” ainda assombra um ex-estudante egresso da ECA/USP e que fez a sua sorte nos corredores da TV Globo.
A “revolução epistemológica” de William Bonner
Mas a série retrospectiva do Jornal Nacional também demonstrou o desespero tautista de uma emissora que vislumbra o seu próprio abismo: a chegada do Instituto de pesquisas alemão GfK que confrontará os números de sempre do Ibope e o crescimento das tecnologias de convergência (Internet e dispositivos móveis), ameaças reais a sua hegemonia.
Por isso, a retrospectiva do JN não se dirigiu aos telespectadores que acompanharam o crescimento da emissora – esses já sabem de todos os seus pecados. Bonner se voltou aos jovens, numa tentativa de recriar uma história da emissora mais leve e sem culpas.
Nessa tentativa desesperada, Bonner criou uma verdadeira revolução epistemológica tautista: a Globo não foi testemunha ocular da História – ao contrário, a História só quis criar notícias para que a TV Globo as transmitisse! E tudo acompanhado pela música grandiloquente que abre e fecha os episódios da retrospectiva.
Por algum destino manifesto, a História supostamente sempre permitiu aos repórteres da Globo exclusividade e pioneirismo. As imagens exclusivas da Globo do Projeto Apollo da NASA, a deferência como o técnico da Itália Enzo Bearzot tratou em toda Copa de 1982 o repórter Ernesto Paglia, a amizade exclusiva de Galvão Bueno com Airton Senna, a forma como praticamente a emissora salvou a cidade do Rio de Janeiro nas enchentes de 1966, a emissora que virou notícia de si mesma com o sequestro de William Waack por forças de segurança de Saddam Hussein na Guerra do Golfo etc.
O mais sintomático foi a crônica do impeachment do presidente Nixon em 1974 escrita por Jorge Pontual que demonstra esse auto-centrismo da TV que vê a realidade a partir de seus próprios termos: “Captamos as imagens de Nixon como um ator antes de novela, como um político que fez sua carreira dominando a televisão e, às vezes, sendo vencido por ela.”. Mais uma vez a História permitiu exclusividade à Globo com as oportunas imagens de bastidores de Nixon antes de anunciar ao vivo pela TV sua renúncia.
Repetição e metalinguagem
Esse destino manifesto parece acompanhar a Globo desde o início nos anos 1960, como revela a platitude dita por Fátima Bernardes sobre as imagens de Rogério Gomes (o “Papinha”) no centro de controle da NASA em 1969: “Está tudo lá o que fazemos até hoje – próximo ao fato e apontando para quem está em casa o que ele está vendo”.
Somando a outra máxima bombástica, dessa vez dita por Glória Maria, de que “devemos acreditar em tudo” e que, por isso, “no Jornalismo não existem dúvidas, existem confirmações” (sabe-se lá o que quis dizer com esse raciocínio sinuoso…), a série de retrospectivas do JN comprova a atual tendência tautista da TV Globo como estratégia desesperada pela manutenção do monopólio midiático e publicitário – o exercício repetitivo de metalinguagem de uma emissora que insiste em demonstrar que supostamente cumpre algum tipo de vocação ou destino histórico e a percepção autista de que a História só se manifesta onde estão os repórteres e as câmeras da TV Globo.
Por isso, assistir aos cinco episódios dessa retrospectiva do JN tornou-se obrigatório para qualquer estudante de mídia: estão ali de forma didática o início e o fim da hegemonia da TV Globo – o sentimentalismo que ajudou a encobrir as informações no auge da ditadura e o tautismo como manobra desesperada em adiar o fim do seu “destino manifesto”.
Publicado em Revista Forum