China mais América Latina: cada vez mais inevitável
É a segunda maior economia do mundo, principal comprador mundial de trigo, soja, arroz e carne, consumidor de mais de 40% do zinco, alumínio, cobre e carvão que o planeta produz. Com quase 1,4 bilhão de habitantes, é o maior financiador do Tesouro estadunidense, máxima fonte de reservas internacionais e credor número um da América Latina.
Em outras palavras, a China é inevitável. O debate acerca de tratar-se de um novo imperialismo ou uma alternativa nova para o desenvolvimento é imprescindível, mas não nos pode levar a esquecer que, atualmente, ninguém pode escapar de algum tipo de vínculo com o gigante asiático.
Neste contexto, o novo pré-convênio assinado pela Argentina em fevereiro, para uma futura “aliança estratégica” com a China, é a grande aposta do governo de Cristina Kirchner. Não só para superar as dificuldades econômicas de 2014, mas também para um plano de desenvolvimento a médio prazo.
O acordo permite avançar em projetos sobre energia, tecnologia aeroespacial, mineração, comunicações e finanças, além de impulsar a construção de uma quarta planta nuclear, duas represas hidroelétricas e importantes obras de infraestrutura, que incluem transporte ferroviário e capacidade portuária, tudo isso financiado com empréstimos sob melhores condições que as oferecidas pelos mercados internacionais.
Por ser um ano dominado pelas eleições presidenciais de outubro, a União Industrial Argentina (UIA) e seus principais tentáculos midiáticos não demoraram em criticar o acordo, acusado de contribuir para uma “reprimarização” da economia argentina, que destruiria fontes de trabalho e inundaria o mercado nacional de produtos chineses.
Uma crítica mais que suspeita, já que a UIA defendeu fortemente o neoliberalismo nos anos 90 e publicou, em fevereiro passado, uma proposta econômica que promoveria a flexibilização trabalhista. Mas, sobretudo, a entidade ignora um fato concreto: desde antes do pré-convênio, o comércio bilateral argentino-chinês já vem se caracterizando por uma crescente tendência de primarização.
China, Argentina, América Latina
A China é o segundo maior sócio comercial da Argentina, que por sua vez é o quarto maior sócio comercial latino-americano da China.
A Argentina vende óleo e grãos de soja, couro, alimentos e petróleo, mas importa computadores, motos e diversos tipos de produtos manufaturados, alguns deles com alto valor agregado.
O comércio tem sido deficitário para a Argentina desde 2008, seguindo a típica curva de intercâmbio de produtos primários por manufaturados: as exportações de commodities crescem em menor velocidade que as de manufaturas.
Esta estrutura se repete em toda a América Latina. Se a Argentina concentra suas vendas para a China na soja e nos alimentos, o Brasil tenta competir nesses setores e no de petróleo, além de exportar também minerais e madeira, a Colômbia o faz com petróleo e minerais, Peru e Chile se concentram em cobre, ferro e seus derivados, Venezuela em petróleo e Bolívia em minerais diversos: em todos os casos, a China devolve exportando manufaturas com alto valor agregado.
A queda da ALCA, o projeto para a criação de um mercado comercial unificado do continente americano (que sucumbiu em 2005), junto com essa crescente presença chinesa, produz uma mudança radical na estrutura econômica regional neste século. Um artigo de dois acadêmicos brasileiros, Marcos Antônio e Eduardo Costa Pinto, publicado esta semana na revista Voces de Argentina, mostra que entre 2002 e 2011 as exportações latino-americanas para os Estados Unidos caíram de 57,4% para 35,1%, enquanto as importações diminuíram de 47,1% para 30,3%.
A China aproveitou essa mudança não somente no setor comercial, mas também no financeiro. Em 2014, o país asiático emprestou à América Latina 22,1 bilhões de dólares, montante superior aos 20 mil que Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), conjuntamente, destinaram à região nesse mesmo ano.
O que fazer?
Nesse cenário de mudanças constantes, e com particularidades próprias – como o do conflito com os chamados fundos abutres, a pressão sobre o valor da moeda argentina e às eleições que se aproximam – a Argentina resolver fazer uma aposta forte na opção chinesa.
O governo assegura que o novo acordo garantirá que todos os investimentos terão em seus objetivos o fortalecimento da indústria do país, o aumento da oferta de emprego e a incorporação de tecnologia de última geração.
O ministro do Planejamento, Julio de Vido, classificou as críticas que a UIA fez sobre o acordo como “campanha de desinformação”. Segundo ele, o acordo “trará muitos benefícios, porque incluem um financiamento de 100% para importantes obras de infraestrutura, garantindo uma participação de pelo menos 50% das empresas nacionais como sócias nos projetos”.
As represas hidroelétricas terão financiamento chinês de 4,7 bilhões de dólares e serão construídas por um consórcio entre a Gezhouba e empresas argentinas, pretendendo gerar ao menos 7 mil postos de trabalho.
No caso da quarta central nuclear do país (Atucha III), o acordo prevê uma participação do país sul-americano em ao menos 70% dos insumos.
Jogo de interesses
As críticas divulgadas oficialmente pela UIA geraram divisões internas na organização.
Um ex-líder industrial, o empresário metalúrgico Juan Carlos Lascurain, criticou duramente a holding Techint, por representar o setor mais concentrado do empresariado metalúrgico.
“Quando o Governo decide finalmente dar a obra à China, porque os asiáticos irão financiá-la, se está negociando também a participação da indústria argentina. As hidrelétricas terão uma alta necessidade de conteúdo local no que diz respeito à mão de obra civil, que é a parte mais importante, e depois vem a parte do equipamento eletromecânico. As turbinas que virão serão importadas, mas também há uma quantidade de equipamentos eletromecânicos que podem ser produzidos em nosso país. Houve uma operação midiática contra esse acordo”, afirmou Lascurain.
Um acadêmico da Universidade Nacional de La Plata, Matías Mancini, apoia o acordo com a China porque “contribuirá para amenizar os desequilíbrios comerciais entre os dois países, aliviar a escassez de divisas e garantir financiamento para obras de infraestrutura vitais para o desenvolvimento da economia argentina em longo prazo”, mas alerta que a possibilidade de potenciar uma nova relação bilateral depende de uma complexa articulação entre Estado, sociedade e setor empresarial.
“O desafio para o Estado argentino é articular um sistema nacional de inovação com provedores de tecnologia local a partir da proteção das pequenas e médias empresas metalúrgicas e mecânicas, e de produção de tecnologia, a partir de certos núcleos dinamizadores como impulsados pelas empresas estatais Invap e Nucleoeléctrica Argentina. Esse caminho, que questiona os grandes grupos empresariais locais e sua associação com os interesses das potências dominantes, e o comando desses grupos sobre os grandes projetos nacionais, é o que está em disputa atualment””, analisa Mancini.
Mercosul
Um tema igualmente complexo é a maneira com que a expansão dos vínculos comerciais bilaterais entre cada país do Mercosul e a China se transforma em obstáculo para a integração industrial interna do bloco.
Uma pesquisa feita por Marta Bekerman, Federico Dulcich e Nicolás Moncaut calculou, que entre 1998 e 2011, a Argentina perdeu pouco mais de 6% de sua participação nas importações brasileiras, enquanto a China incrementou sua presença no mercado brasileiro em mais de 12%.
“Os casos das indústrias siderúrgica e têxtil são os que melhor revelam essa tendência a favor da China, que saltou de níveis irrelevantes no passado para abocanhar uma fração importante do mercado brasileiro. Por outro lado, a indústria como petroquímica (caucho e plástico) e a de equipamentos de grande porte (elétricos, eletrônicos, reatores nucleares, etc), mostra uma China que avança ainda mais forte, para se posicionar como um dos principais provedores do mundo, ocupando nichos em que a Argentina não pode se posicionar”, argumenta o estudo.
O futuro do Mercosul terá que incorporar este tema essencial em seu debate. A possibilidade de conflito ou complementaridade com a agenda dos BRICS também deve entrar na equação.
Uma coisa está clara, no momento em que a China está mudando de um modelo baseado na exportação a outro com maior preponderância de seu consumo interno (oferecendo um oásis de quase 1,4 bilhão de consumidores), o gigante asiático passa a oferecer oportunidades e desafios. Dependerá de nossos países saber aproveitá-los.
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Tradução de Vitor Farinelli para Carta Maior