Lá vem ele: “Como foi que os governos e as populações conseguiram aceitar essas dívidas enormes e ainda recomendar estímulos fiscais adicionais. Muitos gastos públicos e déficits orçamentários não têm justificativa, a não ser o populismo e o grande perdedor da crise vem sendo a social-democracia europeia, a equivalência política da economia keynesiana”.

Um raciocínio escabroso em sua simplicidade. Aslund parece imaginar que as políticas econômicas se desenvolvem em um ambiente a-histórico, movendo-se entre duas abstrações: a racionalidade dos economistas e o populismo das urnas. O economista americano reproduz a obsessão dos conservadores de todos os tempos e lugares com o “vício” populista dos governos social-democratas do pós-guerra.

Prêmio Nobel de Economia em 1986, James Buchanan empreendeu a crítica mais ácida e claramente hostil ao que se convencionou chamar de “era keynesiana”. Buchanan, de forma quase profética, não hesitou em afirmar que as democracias ocidentais enfrentariam déficits e dívidas insustentáveis nas últimas décadas do século XX. Ele atribui essa caminhada em relação aos déficits e às dívidas à baixa resistência dos governos às demandas dos eleitores e dos grupos de interesses.

Ironicamente, foram as políticas “neoliberais” de Reagan, Thatcher & cia. que, a pretexto de reduzir o papel do Estado na economia, impulsionaram os déficits e as dívidas para limites insustentáveis. Nos Estados Unidos entrou em voga a “economia da oferta” e sua filha dileta, a curva de Laffer, que preconizavam a redução de impostos para os ricos “poupadores” e empresas. Assim falavam os adeptos da supply side economics: os sistemas de tributação progressiva da renda desataram o desincentivo à produção e à poupança geradora de novo investimento. A macroeconomia de Reagan defendia a tese do “gotejamento” (trickle down): as camadas trabalhadoras e os governos receberiam os benefícios da riqueza acumulada livremente pelos abonados empreendedores sob a forma de salários reais crescentes e aumento das receitas fiscais. Mas desde os anos 1980, a economia americana presenciou outra realidade à sombra da globalização.

À exceção dos anos 1990, o período em que se desenvolveu a “bolha da internet”, a hipótese do trickle down não entregou o prometido. A migração da grande empresa para as regiões de baixos salários, a desregulamentação financeira e a prodigalidade- de isenções e favores fiscais para as empresas e para as camadas endinheiradas não promoveram a esperada elevação da taxa de investimento no território americano e, ao mesmo tempo, produziram a estagnação dos rendimentos da classe média para baixo, a persistência dos déficits orçamentários e o crescimento do endividamento público e privado. A procissão de desenganos foi acompanhada da ampliação dos déficits em conta corrente e da transição dos Estados Unidos de país credor para devedor.

No primeiro trimestre de 2007 o estoque total de endividamento do setor não financeiro nos Estados Unidos chegou a mais de 35 trilhões de dólares, ou seja, mais do que o dobro do PIB. Esta cifra inclui, além do endividamento privado – sobretudo as famílias –, o débito público total, federal, estadual e municipal e o passivo financeiro das agências públicas encarregadas de bancar o financiamento da aquisição da casa própria. Mais impressionante foi o crescimento da dívida intrafinanceira: às vésperas da crise, o endividamento entre as instituições financeiras chegou a 120% do PIB, fruto das imprudências da alavancagem e da criatividade das inovações engendradas pelos gênios da finança.

A dívida total cresceu seis vezes mais do que o PIB, com uma participação crescente dos governos federal, estadual e municipal. As grandes corporações trataram de reduzir seu ritmo de endividamento buscando a rápida “desalavancagem” para estabilizar a relação dívida/patrimônio líquido. As famílias, no entanto, não se atemorizaram, assumindo novos compromissos ou rolando os antigos a uma velocidade ainda elevada. Assim, a dívida das famílias saltou para 130% da renda disponível.

As famílias norte-americanas empreenderam uma “fuga para frente”, que culminou com o “estouro” da bolha e a reversão do efeito riqueza decorrente da uma queda dos preços dos imóveis.

Restou ao governo arcar com déficits fiscais graúdos produzidos por gastos rígidos e receitas cadentes, para não falar do esforço para manter os bancos pecadores à tona. Tudo isso para enfrentar uma recuperação lenta, insegura, com ameaças de recaída na recessão.

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Fonte: CartaCapital