Falar em apartheid não é exagero
Recentemente regressado da Palestina e de Israel, o deputado comunista no Parlamento Europeu (PE), João Ferreira, relatou ao Avante! o ponto da situação nos territórios e sublinhou que a consolidação e avanço da ocupação israelita é acompanhada pela promoção de uma política racista de Estado, não sendo exagerado dizer que os sionistas estão a instituir um regime de apartheid.
A deslocação integrada numa delegação de deputados do Grupo Confederal da Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Verde Nórdica (GUE/NGL), realizou-se a propósito da participação numa conferência sobre o reconhecimento, pela Assembleia-Geral das Nações Unidas (AG), do Estado palestiniano com a fronteiras de 1967 e capital em Jerusalém Leste, organizada pelo Partido do Povo Palestiniano.
A iniciativa e os encontros mantidos por João Ferreira com Mahmmud Abbas e Salam Fayad, presidente e primeiro-ministro da Autoridade Nacional Palestiniana (ANP), respectivamente; com membros do Conselho Legislativo da Palestina, e dirigentes da Fatah, da FPLP e FDLP, permitiu perceber que sobre o reconhecimento formal na ONU, previsto para Setembro, ainda subsistem várias incógnitas.
«Salvo erro, hoje há 117 países que reconhecem o Estado da Palestina independente, soberano e com a capital em Jerusalém Leste», lembrou. A questão é que o reconhecimento pela AG da ONU «obriga a uma apreciação favorável do Conselho de Segurança», e como os EUA já disseram que vão usar o direito de veto, tal encontra-se bloqueado à partida.
«Não quer isto dizer que o pedido não avance», pois «havendo um antagonismo entre a votação em plenário e o veto dos EUA, isso é por si só um facto evidente de que são os norte-americanos que impedem o Estado da Palestina», explicou. No entanto, «outras hipóteses estão em cima da mesa. Pode-se avançar para uma resolução que apele ao reconhecimento», disse.
A União Europeia tem, neste contexto, «um papel de charneira», explicou João Ferreira. «É membro do Quarteto [para a paz no Médio Oriente], e, bem ou mal, tem um peso determinante. Desde logo pela influência sobre outras nações. Depois, porque em Dezembro de 2009 e de 2010, aprovou resoluções onde reconhecia precisamente o Estado da Palestina com as fronteiras de 1967 e com capital em Jerusalém Leste».
Sabemos, continuou, que «entre o papel e a prática vai uma grande distância», mas também por isso ganha importância a visita, insistiu o eurodeputado comunista, recordando que, na sequência da viagem, o Partido questionou a Comissão Europeia «sobre a postura que a UE assumirá na AG das Nações Unidas a propósito do reconhecimento do Estado da Palestina; sobre os esforços que irão ser feitos para o fim dos colonatos e a construção de novos nos territórios ocupados, para a retirada das tropas invasoras, incluindo dos Montes Golã, na Síria, e do Sul do Líbano, para o regresso dos refugiados palestinianos e o fim dos bloqueios que pesam sobre a as populações de Gaza e da Cisjordânia; para a demolição do muro que separa Jerusalém Leste da Cisjordânia».
Em face do incumprimento dos mais elementares direitos humanos, João Ferreira perguntou ainda «que implicações retira desse facto a CE para o Acordo de Associação com Israel», e como pode a União garantir, no âmbito desse protocolo, que não serão importados produtos originários dos colonatos israelitas, ou que empresas de «segurança» e «defesa» – entre as quais as que produzem os famosos aviões não-tripulados usados nos bombardeamentos –, não beneficiarão dos fundos europeus doados para investigação.
Ocupação em marcha
Para além do contacto com as autoridades palestinianas, o eleito do PCP no PE pôde ainda «acompanhar a evolução da situação no terreno», oportunidade para confirmar que «a ocupação consolida-se e avança».
«Esse é um dado importante» que ocorre «ao arrepio de tudo quanto são resoluções da ONU». A prática israelita em Jerusalém Leste visa «varrer os palestinianos da cidade», considerou João Ferreira. Como é que isso se faz?, questionámos.
«Nos bairros onde estivemos, uma parte das casas foi demolida», sobretudo os que «têm uma história e vivência palestiniana já enraizada. Os Israelitas têm, aliás, desde há alguns anos, planos de demolição precisos», por exemplo «para o bairro de Silwan, contíguo às muralhas da cidadela e frente ao famoso Monte das Oliveiras.
«Noutros casos – disse – os colonos ocupam casas com a total conivência da polícia». Para João Ferreira, foi particularmente chocante o testemunho de uma família expulsa por ultra-ortodoxos. «Chegaram armados e com cães. Correram com uma família inteira que ali estava há 50 ou 60 anos para a casa do lado, penduraram bandeiras israelitas, e, desde então, convivem paredes meias as vítimas e os carrascos, separados somente por um quintal, onde activistas de vários países montaram uma tenda para se interporem ao terror que os israelitas vinham mantendo procurando desalojar definitivamente os habitantes palestinianos», sintetizou.
«Portanto», prosseguiu João Ferreira dominando a revolta, «seja por via das demolições, da ocupação violenta, da contenção das áreas habitadas por palestinianos e pela não autorização de obras de requalificação das casas, com a consequente degradação do parque habitacional; seja ainda pela não construção de escolas e outras infra-estruturas, os ocupantes que administram o território desta maneira e ainda cobram impostos, têm como objectivo promover o êxodo das populações palestinianas. Isto leva-nos à questão de Jerusalém Leste como capital de um Estado palestiniano independente, soberano e viável», referiu.
Para o eurodeputado comunista, «sem Jerusalém como capital, o Estado palestiniano muito dificilmente será viável. Israel está a implementar a visão oposta», isto é, «a de um Estado sem continuidade territorial entre a Cisjordânia Norte e Sul», cortando justamente «o coração económico e populacional daquela região».
Aqui entra a questão do muro, «uma das faces mais brutais desta ocupação», sublinhou. «Vimos ruas que até há poucos anos eram núcleos vibrantes de vida social e comercial e hoje estão desertas» contrastando «com bairros claramente sobrepovoados».
«Com o muro, separaram as comunidades das escolas ou dos hospitais, tornando a vida sempre mais difícil aos palestinianos para os expulsarem definitivamente», frisou ainda.
Racismo é política de Estado
Do lado de Jerusalém Ocidental, João Ferreira não relatou ao Avante! melhores notícias, constatando junto da população e nos encontros com dirigentes do Partido Comunista de Israel, com deputados eleitos no knesset [parlamento israelita], e com activistas de ONG’s, a política de discriminação aberta de que são alvo os palestinianos nos territórios ocupados e os árabes cidadãos de Israel.
«Uma grande percentagem dessa população é pobre», sendo igualmente evidentes as «diferenças abissais nas taxas de analfabatismo, de mortalidade infantil ou de desemprego», bem como «na distribuição dos fundos do Orçamento de Estado para as áreas de maioria árabe-israelita, ou na rede de serviços públicos francamente desproporcional», notou.
«As desigualdades surgem nas conversas, e eu questionei-me sobre se seria um exagero falar em apartheid, tendo em conta o que isso significou na África do Sul em termos de diferenças sociais, de segregação e racismo promovido como política de Estado.
«De facto, e isto é muito relevante no actual contexto histórico, observa-se que falar em apartheid não é exagero», tanto mais, salientou, que «ao nível legislativo está a avançar um conjunto de normas que visa três grandes objectivos: continuar e aprofundar a ocupação; perseguir todos os que, nos territórios ocupados ou em Israel, lutam pela causa palestiniana e pelos direitos da população árabe; e institucionalizar um regime de apartheid».
Concretamente, «tal traduz-se no envolvimento do Estado na vida pessoal dos cidadãos, através, por exemplo, da lei da nacionalidade», a qual «limita os casamentos entre a população de Israel e da parte ocupada.
«Aplica-se nas questões de propriedade de terra que visam legitimar as ocupações e as expropriações», e na «punição severa das organizações sociais e políticas que agem a favor da Palestina». Esta última lei «é colocada em causa até pelos israelitas e por todas as estruturas que apelam ao boicote dos produtos oriundos dos colonatos. Repara que o simples apelo ao boicote é criminalizado! Não é preciso demonstrar a existência de um prejuízo material efectivo resultante desse apelo», esclareceu João Ferreira.
Resistir é possível
Apesar das práticas fasciszantes animadas por uma superestrutura de molde autoritário e terrorista, João Ferreira valorizou o facto de «nos terem transmitido que uma maioria da população israelita apoia a solução de um Estado palestiniano, o que revela uma evolução face há uns anos, em que os protestos eram genericamente pela paz».
A «mudança qualitativa» sobressai, também, porque «há cada vez mais israelitas que percebem que, como Karl Marx dizia, “não pode ser livre um povo que oprime outro povo”. Apercebem-se não apenas da repressão nos territórios ocupados, mas que ela é aplicada pelo mesmo Estado que os oprime», disse.
«Os camaradas diziam-nos, a propósito destas recentes mobilizações de massas em Israel, que surgem aqui e ali alguns sectores da elite económica, política, social, camadas de intelectuais do regime e antigos oficiais das Forças Armadas a demarcarem-se de Netanyahu, dizendo que ele tem ido longe demais», contou João Ferreira antes de deixar transparecer que, no balanço desta visita, ficam memórias cruas, amargas e duras. Mas fica, sobretudo, uma força anímica maior para dinamizar a solidariedade e a luta pelos direitos do povo palestiniano.
É que, em rigor, após mais de 60 anos de consolidação e avanço da ocupação israelita, pouco mais resta aos palestinianos senão o afecto fraterno e a acção dos demais povos do mundo. Com os revolucionários na primeira linha, seja qual for o posto de combate que ocupam.
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Fonte: jornal Avante!