Um novo feminismo

Pertenço à geração de mulheres para as quais os livros de Simone de Beauvoir, especialmente O segundo sexo1 e Memórias de uma moça bem comportada, tiveram uma importância decisiva: ajudaram a nomear um mal-estar difuso e a entender a situação da mulher como produto da história e da sociedade. Mais do que isso, a experiência de Simone e seu pacto amoroso com Sartre exerceram um fascínio extraordinário. Simone não queria ter filhos, nem criar família, tampouco viver como uma burguesa acomodada.

É um desses casos em que vida e obra se encontram, porque, ao adotar o existencialismo filosófico, ela fez de seu projeto de vida – produzir uma obra de valor universal – o objeto de suas reflexões e de seu trabalho teórico. Sua biografia remete aos personagens de seus romances e estes aludem às experiências reais de Simone – ela na intimidade, Sartre, a relação entre ambos –, rompendo com convenções burguesas e apresentando um estilo de vida pouco convencional.

Como deixar de admirar a ousadia dessa mulher que vivia num quarto de hotel – distante das atividades familiares típicas das mulheres de classe média –, da intelectual que gerou uma rica produção de romances, autobiografias, biografia de Sartre, ensaios filosóficos? Em O balanço final, escrito aos 63 anos, Simone comenta: “Viver sem tempos mortos: esse é um dos slogans de maio de 1968 que mais me tocaram, porque o adotei desde minha infância”2.

Ninguém nasce mulher

O impacto do Segundo sexo foi extraordinário. A versão norte-americana vendeu cerca de 750 mil exemplares e Simone transformou-se na referência do feminismo do século XX. No entanto, vinte anos depois, a própria autora reconhecerá os limites de seu trabalho que, embora útil às militantes, “não era um livro militante”. Além disso, naquele momento ela ainda acreditava que a condição feminina evoluiria com o tempo e por isso lhe pareciam justas as críticas das feministas americanas dos anos 1970:

Que a mulher seja fabricada pela civilização, e não biologicamente determinada, é um ponto que nenhuma feminista coloca em dúvida. Elas [as norte-americanas] se afastam de meu livro no plano prático: recusam-se a confiar no futuro, querem desde já dirigir seus destinos. Foi nesse ponto que mudei: dou-lhes razão.3

A partir dessa autocrítica, Simone afirma que feminismo é lutar por reivindicações propriamente femininas, paralelamente à luta de classes, e se declara feminista: “Em resumo, no passado achava que a luta de classes deveria ter prioridade sobre a luta dos sexos. Hoje considero que as duas devem ser travadas ao mesmo tempo”4.

Com essas palavras, Simone define a novidade do feminismo dos anos 1970: uma nova concepção política da questão do poder e o repúdio à crença ingênua na marcha da humanidade para um crescente progresso – mais do que tudo, um feminismo militante. Simone de Beauvoir foi o ponto de partida de toda uma geração de feminista, mas ela não era, nem se propunha a ser uma militante feminista; era uma intelectual ligada a Sartre e ao projeto editorial da revista Les Temps Modernes.

A geração política

Em entrevista concedida em 1970, Hannah Arendt exprimiu sua admiração pelas revoltas estudantis de 1968 nos seguintes termos:

Abstraindo as diferenças nacionais, que naturalmente são muito grandes, e levando em conta somente que se trata de um movimento global – algo que nunca aconteceu nesta forma antes – e considerando (…) o que realmente diferencia esta geração em todos os países das gerações anteriores, (…) é sua determinação para agir, sua alegria em agir, e certeza de poder mudar as coisas pelos seus próprios esforços.

[…]

Esta geração descobriu o que o século XVIII chamou de “felicidade pública”, que significa que quando o homem toma parte na vida pública abre para si uma dimensão de experiência humana que de outra forma lhe ficaria impedida e que de certa maneira constitui parte da “felicidade” completa.5

Vinte anos depois, Immanuel Wallerstein, no discurso de abertura do seminário 1968 as a Global Event6, afirmou que 1968 foi uma revolução no sistema mundial e uma revolução desse próprio sistema. Concordando com Arendt, o autor aponta para a novidade do que acontecia naquele momento, e vai além, ao afirmar que 1968 foi um momento de ruptura histórica, que criou um “antes” e um “depois”. Após 1968, ficava difícil afirmar que o proletariado ainda era a única vanguarda revolucionária. Nesse sentido, os grupos “minoritários”, cujos interesses eram desconsiderados em nome da revolução proletária que aboliria todas as formas de opressão, decidiram não mais esperar pela “salvação” no futuro. Assim, “a importância real da revolução de 1968 deve-se menos à sua crítica ao passado do que às questões que levantou para o futuro”7.

Essa é a novidade: o aparecimento, em várias partes do mundo ocidental, de uma juventude extremamente politizada e militante, unida na mesma recusa ao imperialismo norte-americano, ao “aparelhismo” e burocratismo dos partidos comunistas, aos graves equívocos políticos do socialismo soviético e aos valores burgueses e conservadores. Os jovens defendem os direitos civis das mulheres e dos negros, lêem Marcuse e professam uma profunda admiração por Ernesto Che Guevara. Em sua maioria, estudantes secundaristas e universitários foram os novos atores coletivos dos anos 1960 e 1970 e as principais vítimas da repressão político-militar das ditaduras na América Latina.

Ditaduras militares e a presença das mulheres na resistência armada

No Brasil, a Nova Esquerda forma-se na crítica ao imobilismo político dos comunistas e na oposição radical ao golpe militar de 1964, o primeiro na sucessão de golpes e ditaduras militares que assombraram os países do Cone Sul. As condições políticas em que se dá o rompimento da legalidade democrática no Brasil (1964) e no Chile (1973) são assemelhadas: em ambas, governos legitimamente eleitos, cujos atos não feriam os pressupostos constitucionais, conheceram uma polarização social fortíssima e o boicote norte-americano. É importante assinalar que em ambos os países amadureciam processos de desenvolvimento dos movimentos sociais, como foi o caso das Ligas Camponesas dos anos 1960, um atuante movimento de trabalhadores rurais. Os movimentos estudantis também já estavam em ebulição, como ocorreu na longa greve em torno do aumento da participação estudantil nos órgãos de poder da universidade, ocorrida na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, na rua Maria Antonia, em 19628.

Para a juventude que aspirava a maior liberdade na vida pessoal, a ditadura foi um duro golpe. A agitação e a efervescência entre os anos 1965 e 1969, com seus festivais de música e de cinema e os grandes encontros estudantis, foram substituídas pelo medo da atuação impune do terrorismo de Estado contra os “subversivos”. A moral cristã era tão onipresente que, nas invasões realizadas pela polícia no Crusp (residência estudantil da USP) as pílulas anticoncepcionais e as bombas molotov constituíam, com o mesmo status, prova incriminadora. Uma estudante em cuja bolsa fossem encontradas pílulas era considerada puta. Essa é uma dimensão de gênero que tem sido deixada de lado na produção acadêmica sobre o tema das revoltas estudantis contra a ditadura militar.

No Brasil dos anos 1960 e 1970, a presença das mulheres na luta armada representou uma profunda transgressão ao que era designado como próprio ao sexo feminino. Mesmo sem formular uma proposta feminista deliberada, as militantes “comportaram-se como homens”: pegaram em armas e assumiram um comportamento sexual que punha em questão a virgindade e a instituição do casamento, transformando-se, como apontou Garcia9, “em um instrumento em si de emancipação”. A transgressão de gênero teve, na repressão e na tortura, uma dimensão punitiva específica.

A radicalidade da experiência da luta armada deixou marcas profundas nos jovens de ambos os sexos. A mudança dos códigos instaurou uma nova ordem de relação entre homens e mulheres. Insisto na dimensão da juventude e no fato de a grande maioria ser constituída por solteiros. Foi no exílio que muitos criaram família e onde se acirrou a contradição de gêneros. As queixas das ex-guerrilheiras não se diferenciavam muito do normal das mulheres, especialmente no tocante às tarefas domésticas e aos cuidados com os filhos. Por outro lado, ante o machismo reinante nas concepções dos partidos comunistas oficiais, a participação das mulheres na luta armada foi uma enorme ruptura com relação às lutas e movimentos sociais anteriores, nos quais predominavam os homens.

O feminismo e a experiência do exílio

A partir de 1973, o golpe de estado no Chile, o acirramento da repressão política na Argentina e a permanência da ditadura militar brasileira, em plena prosperidade do “milagre brasileiro”, concentraram em Paris centenas de fugitivos. Além dos exilados, o clima de terror e a repressão política reinantes no Cone Sul estimulavam a saída de universitários para pós-graduações na Europa. A França se tornou o epicentro do asilo político, reforçando os laços entre a esquerda francesa e os militantes políticos. Na época, o Partido Comunista Francês era uma organização respeitada, com forte composição operária, presença sindical e atuação ideológica.

Para mim, como para muitos outros que viveram em Paris nos anos 1970/1980, o sentido da palavra “republicano” ganhou um significado muito forte de educação, saúde e cultura para todos. Passamos a enxergar com outros olhos a experiência de uma bem-sucedida medicina socializada e de escolas públicas com qualidade. Com o crescimento eleitoral, a esquerda francesa estava no auge e a França tornou-se o grande centro irradiador do feminismo europeu.

O país vivia uma ebulição social e a liberalização do aborto era uma reivindicação nacional, encabeçada pelas feministas com o apoio dos partidos comunistas e socialistas. A esquerda mantinha uma atitude de solidariedade para com os exilados políticos: estudantes e exiladas foram acolhidas pelos movimentos de libertação da mulher e puderam participar do debate no interior das esquerdas.

O feminismo do Debate e do Coletivo

Os brasileiros exilados na França organizaram-se em vários grupos políticos, divididos entre as diversas tendências da esquerda brasileira, dos marxistas-leninistas aos maoístas, passando pelos guevaristas. No final dos anos 1960, um pequeno grupo, sob a liderança intelectual de João Quartim, criou a revista Debate, que adquiriu um grande prestígio e permaneceu ativa até 1979, constituindo uma etapa importante para que as feministas brasileiras ligadas ao Debate percebessem a necessidade de uma militância direcionada para a questão da mulher.

O discurso da militância no exterior visava, inicialmente, o conjunto dos exilados. Disso não destoava a publicação do grupo Debate, que se posicionava a serviço da “reorganização dos comunistas” de forma geral. Uma parte considerável das militantes do grupo não tinha qualquer vocação feminista e os artigos sobre “opressão” remetiam à literatura dos clássicos marxistas e se apropriavam das análises da New Left Review. O empenho teórico do Debate gerou uma grande quantidade de textos que propunham uma análise marxista do trabalho feminino e da família, mas as questões sobre sexualidade eram descartadas, uma temática que a maioria não considerava importante tampouco passível de discussão.

Ao mesmo tempo, a liberdade oferecida pela cidade permitiu um estilo e vida que colocou as condições para o confronto de gênero. Nesse contexto, não é de estranhar o desencanto de muitas militantes, desiludidas com os grupos políticos dominados por questiúnculas e personalismos, que buscaram outras alternativas de participação política, aproximando-se dos grupos feministas. Assim surgiu o Coletivo de mulheres no exterior ou Ciclo de mulheres brasileiras, cujas participantes, muito jovens e a maioria sem filhos, haviam sido direta ou indiretamente ligadas à luta armada. Aos poucos, o Coletivo de mulheres transformou-se na mais dinâmica, atuante e influente organização no exterior.

A importância dos grupos feministas formados no exílio europeu também é ressaltada por Ana Maria Araujo, exilada uruguaia na França10, para quem o movimento de mulheres latino-americano, não obstante seus laços com o feminismo europeu e norte-americano, “à medida que se consolidava como movimento social enraizado na realidade nacional e continental, adquiria – de forma muito mais profunda que a esquerda, sua própria especificidade latino-americana”.11 Para Araujo, um dos mais importantes grupos de mulheres latino-americanas organizados no exterior foi o Círculo de Mulheres Brasileiras, que defendia, ao mesmo tempo, um feminismo de esquerda (favorável ao aborto) e de “massa” (propondo políticas públicas de Estado).

A imprensa alternativa feminista

As restrições impostas pela ditadura militar ao direito de organização política e sindical forçaram a oposição a limitar seus objetivos a questões locais, entre outros movimentos contra o custo de vida, clubes de mães e associações de vizinhos, movimentos por creches e postos de saúde. Assim, uma das principais características assumidas pela resistência popular foi a criação de novos tipos de organização. O contato direto entre militantes políticos e movimentos populares e sua interpenetração transformaram a prática política no país.

Nos anos em que a repressão militar liquidava, fisicamente, muitos oponentes12, o movimento feminista apareceu comprometido com a luta pelas “liberdades democráticas”, exercendo um papel ativo na campanha nacional pela anistia desde 1975. Durante esse ano, que marca o início da Década da Mulher da Organização das Nações Unidas, as feministas organizaram reuniões com mulheres de diferentes setores sociais, especialmente nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, para discutir seus problemas específicos. Dadas as profundas diferenças culturais e sociais da sociedade brasileira, o alcance do movimento de mulheres variou enormemente, concentrando-se nos principais centros urbanos.

A partir de 1974, as primeiras feministas do Debate retornaram ao Brasil e participaram do primeiro grupo feminista em território nacional, o Nós mulheres. Uma vez articuladas, deram início a uma dupla produção: a prática de discussão de “textos de formação”, de bibliografia marxista, e a publicação de textos jornalísticos para “as massas”. O primeiro editorial do jornal Nós Mulheres, escrito por duas ex-militantes do Debate, trata da dupla jornada de trabalho (em casa e fora dela) e propõe uma série de reivindicações, nas quais as políticas de Estado aparecem como solução.

A produção do Nós Mulheres e do Brasil Mulher, que reunia militantes de origem maoísta, esteve marcada pela permanência das teses marxistas, que tinham a economia e a política como eixos, segundo o duplo princípio: a) a importância da infra-estrutura econômica, isto é, a centralidade da luta anticapitalista; b) a importância da atuação na esfera pública (mas numa organização menos hierarquizada). Isso faz sentido na medida em que, numa sociedade com o grau de desigualdade social como a brasileira, toda e qualquer reivindicação de melhoria de vida passa pela dimensão econômica. Nesse sentido, o marxismo, enquanto teoria das classes sociais, torna-se uma referência permanente. Ao mesmo tempo, as posições do Nós Mulheres sobre sexualidade, família e relações de gênero eram muito mais avançadas, em termos de feminismo, do que as das demais publicações de mulheres naquele momento.13

O processo de redemocratização fortaleceu os grupos ativistas dos direitos sociais e políticos e promoveu algumas vitórias sensíveis com respeito aos direitos da mulher. Campanhas nacionais denunciando a morte de mulheres por crimes “de honra”, a denúncia do sexismo dos livros escolares, as campanhas contra o assédio sexual são algumas das conquistas que marcaram o final da Década da Mulher. Como veremos adiante, a transformação do contexto político resultante destas novas militâncias – em que o feminismo marcou presença – ampliou o cenário do embate político e a relação dos movimentos sociais com o Estado.

A visibilidade e a capacidade de mobilização do feminismo político nos anos 1970, de certa forma, reordenaram o espaço político. É importante, historicamente, reviver a importância da imprensa alternativa e o lugar privilegiado que ocupou na reorganização da esquerda e na própria fundação do PT. Nesse sentido, o jornal Em Tempo constitui o melhor exemplo.

O Em Tempo era uma frente de esquerda que reunia militantes da APML [Ação Popular Marxista-Leninista], do MR8 [Movimento Revolucionário 8 de Outubro], do MEP [Movimento pela Emancipaçao do Proletariado], da Polop [Política Operária], de diferentes grupos de inspiração trotskista e grupos independentes. Comum a todos eles, a perspectiva crítica em relação aos dois partidos comunistas mais tradicionais do Brasil: o PCB e o PCdoB. O objetivo era construir uma frente legal chamada “Esquerda Revolucionária” (o número 0 saiu em fins de 1977). Em Tempo dava uma dimensão pública e legal para posições políticas definidas no interior das organizações ainda clandestinas, divulgando a luta pelas liberdades democráticas e a campanha pela anistia e apoiando o movimento estudantil.14

No mesmo texto em que desenvolve a tese da importância da imprensa alternativa na luta política contra a ditadura militar, Maria Paula Nascimento Araújo destaca a presença ativa dos jornais feministas. A autora comenta que o jornal Em Tempo, “pressionado pela imprensa feminista, de grande vigor na época”, realizou a cobertura de encontros sindicais de mulheres em 1978 e, em matéria de página inteira, “como organizar as mulheres”. Em Tempo dialogava com os principais jornais feministas da época: o Brasil Mulher e Nós Mulheres.15

Por uma lógica cruel, o próprio potencial político do movimento de mulheres em São Paulo provocou uma nova fase de disputas políticas entre as diferentes correntes da esquerda (entre outras, MR8, PCdoB) em oposição às feministas independentes. A luta pelo controle político do movimento de mulheres afastou as feministas do Nós Mulheres das comemorações políticas do 8 de março, ocasião em que eram realizados concorridos encontros de mulheres. Paulatinamente, o feminismo político dos anos 1970 foi sendo substituído por uma nova geração de feministas homossexuais que privilegiavam a questão da violência contra a mulher, dando origem ao SOS-Mulher. Esse deslocamento, entre outras conseqüências, instituiu o lugar da “vítimas indefesas da violência masculina”, deixando de considerar, por exemplo, a violência doméstica em que a agressora é uma mulher.

A institucionalização progressiva: ongs, conselhos, etc.

Entre outras, a experiência institucional realizada através da Fundação Ford serviu de paradigma para a institucionalização de grupos e militantes feministas e para a introdução da ideologia e das práticas das organizações não-governamentais (ONGs). Outra financiadora importante tem sido a holandesa Netherlands Organisation for International Development Cooperation (Novib), que atua até hoje. A constituição das ONGs foi o primeiro passo da institucionalização de uma série de grupos e propostas de trabalho e a fixação de uma agenda comum, no início ditada pelo movimento e, paulatinamente, passando ser influenciada pelas organizações financiadoras internacionais.

Nas primeiras eleições livres, em 1982, a oposição ganhou o governo do estado de São Paulo e foi criado o primeiro Conselho da Condição Feminina, inspirado no similar francês. Esse é o ponto de inflexão, que abre um campo de atuação dentro do aparelho de Estado, criando, em várias cidades do Brasil, delegacias especiais para mulheres, serviços de atendimento às vítimas de violência e programas de saúde das mulheres. Ao mesmo tempo, os conselhos da condição feminina foram perdendo sua autonomia e se transformando em órgãos diretamente subordinados às políticas do governador em exercício, o que, via de regra, significou sua despolitização e perda de eficácia. A relativa despolitização do movimento correspondeu ao seu enquadramento às regras jurídicas e ao “mercado financiador” monopolizado pelas Fundações Ford, Rockefeller e MacArthur diante de uma oferta cada vez maior de serviços para a mulher, transformando parcela das feministas em profissionais competentes de políticas sociais.

A vitória de Fernando Henrique Cardoso (presidente do Brasil de 1995-2002) e a criação da Comunidade Solidária possibilitaram o surgimento de novos postos de trabalho e novas teias de interesse entre governos e conselhos de mulheres no âmbito federal, estadual e municipal. A mesma trajetória – dos pequenos grupos heroicos do feminismo dos anos 1970, sua “deriva” para formação das ONGs e a luta pelo poder dentro aparelhos de Estado – ocorreu em todos os países latino-americanos, à medida os movimentos sociais conquistaram maior espaço, conhecem as contraditórias conseqüências de “ser governo”. Anette Goldberg (1989) faz análise semelhante, assinalando a opção “participacionista-liberal”, segundo a qual parte da esquerda, “que se havia formado em torno da idéia de “revolução” e de “socialismo”, foi sendo paulatinamente reconduzida e redirecionada.16

As palavras de ordem de autonomia e novos métodos de fazer política foram esquecidos e os grupos “minoritários” transformaram as ONGs em alternativas de trabalho, em estratégias de sobrevivência – um meio de vida. A internacionalização da pauta feminista sob a hegemonia do modelo norte-americano implicou (o que não deixava de ser um dado político) na despolitização crescente do feminismo organizado, um enquadramento que alimentou disputas intelectuais estéreis (igualdade versus diferença) extremamente dependentes dos interesses estratégicos norte-americanos, no qual a luta contra os “fundamentalismos” deixa de fora o capitalismo e o cristianismo.

Extraindo as consequências

O objetivo principal da produção teórica feminista foi deslocar o debate da inferioridade social da mulher do âmbito da biologia (mulher “inferior” fisiologicamente, devido ao tamanho do cérebro ou à diferença hormonal) para o âmbito da sociedade e das relações de poder. Por essa razão, muitas feministas insistiam na importância dos grupos exclusivamente de mulheres, segundo o princípio da “não-mixidade”. Intimidadas com a presença dos homens e cansadas de ser manipuladas em assembleias, as mulheres preferiam grupos menores, relações mais pessoais, e tiraram proveito do aprendizado com o Movimento de Libertação das Mulheres (MLF) francês. O curto tempo de vida dos grupos refletia a lógica de evitar a consolidação de lideranças.

Ora, com o processo de reorganização partidária dos anos 1980, grande parte das feministas atuantes entraram no PT, outras no PCdoB. Assim, a questão das cotas mínimas de mulheres nos partidos políticos foi de tamanha ineficácia que ninguém fala mais nisso – seria esse um sinal de menor participação das mulheres? Depende do que seja considerada atividade política. Quem trabalha com temas ligados aos movimentos sociais sabe da importância do ativismo feminino. O problema não reside aí e sim no fato de que o contexto mundial mudou. As mulheres que foram a força do feminismo na década de 1970 eram jovens, estudantes, artistas, intelectuais, num mundo altamente politizado. Como vimos, a profissionalização do feminismo via “eficiência de gestão em iniciativas” redundou na sua despolitização, preço ideológico de troca por verbas e financiamentos.

A condição da mulher transformou-se profundamente na maior parte dos países do mundo ocidental. As mulheres vivem cada vez mais, com menor número de filhos, com maior leque de possibilidades e opções sexoafetivas. No Brasil contemporâneo, aumenta o número de pessoas vivendo sós; as famílias consideradas “normais” (pai, mãe e filhos) constituem apenas metade dos arranjos familiares; cerca de 30% das famílias são uniparentais; as famílias homossexuais e as crianças nascidas de inseminação artificial fazem parte da “desordem da família”.

Ao mesmo tempo, apesar das conquistas jurídicas obtidas nos lugares do mundo ocidental onde o feminismo foi atuante, as mudanças se dão nos limites das sociedades de classe e, numa sociedade tão desigual quanto a brasileira, as oportunidades e possibilidades são limitadas, transformando o sonho de ser modelo ou esportista de sucesso no grande ideal dos adolescentes. Outra conseqüência do fundamentalismo do mercado são as crescentes taxas de desemprego disfarçado ou subemprego. A maior pobreza das mulheres implica, entre outras coisas, que elas sejam as mais atingidas pela (falta de) qualidade dos serviços públicos; mais desfavorecidas pela incompetência da Justiça (atrasos nas pensões, etc.). Vale dizer, a questão estratégica dos direitos de seguridade social afeta principalmente as mulheres pobres.

Ausência de uma cultura laica e republicana

O que acontece quando a sociedade não consegue criar nem compartilhar dos mesmos valores morais? Mais ainda, quando os valores morais dependem das religiões, na ausência de valores laicos e republicanos? Quais as conseqüências da ausência de valores morais laicos, tendo em vista o convívio público educado, respeitoso, baseado nas regras de uma cidadania republicana? O fato de que as lutas políticas assumam, hoje, também a forma de lutas religiosas tem como pressuposto a inexistência de sistemas morais alternativos aos religiosos. O recrudescimento do islamismo é acompanhado pela expansão de seitas religiosas que, apesar de concorrerem com igrejas instituídas há mais tempo, permanecem na mesma ideologia da “vontade divina”. Assim, permanecemos na esfera do pecado, dos crimes cometidos contra a vontade divina. A instituição religiosa continua sendo a matriz da moralidade pública. Nesse contexto, não há que se estranhar o interdito da legalização do aborto em toda a América Latina, com exceção de Cuba.

Um exemplo melancólico de submissão aos ditames da Igreja Católica é o do ex-líder sandinista, Daniel Ortega, recém-eleito presidente da Nicarágua, declarar-se cristão e contra o aborto, comprovando os limites de projetos revolucionários atados ao moralismo cristão e os limites que o machismo e o tradicionalismo impõem aos movimentos de libertação nacional na América Central.

Na Itália, nos anos 1970, a esquerda uniu-se, apoiou as feministas, enfrentou o papa e venceu. Divórcio e aborto foram legalizados. No Brasil, um ditador protestante impôs o divórcio em 1977! Permanecem as restrições legais ao aborto; por outro lado, temos uma próspera indústria de aborto pago, policiais corruptos que fecham os olhos e a pior parte cabendo às mulheres pobres, clientela preferencial dessas mesmas igrejas…

Mesmo o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) – o primeiro que tentou modificar as relações de gênero na prática, com comissões mistas em todos os níveis – também esbarrou nos limites das agremiações em que o catolicismo é a ideologia dominante. E aqui temos o círculo vicioso: as igrejas são as fontes de moral diante do abandono do Estado; e as igrejas são contra o aborto, que as mulheres pobres fazem em piores condições e ainda pedem perdão ao padre. Poucas feministas têm a coragem de enfrentar as igrejas, dada sua presença nos movimentos sociais. Nesse sentido, é necessário questionar o fiasco latino-americano ao enfrentar o poder da Igreja e ressaltar a importância das virtudes republicanas, do sentido da coisa pública.

Sujeito do desejo ou vítima do destino?

Diferentemente de outras revoluções, a de 1968 tinha como objetivo mudar o mundo e não tomar o poder, no sentido de apropriar-se do poder de Estado. Em certo sentido, fomos a geração do contrapoder – contra o poder da Igreja, do Estado, da Família, do Homem Branco, etc. Retornando ao elogio de Arendt aos jovens de 1968 por sua “determinação para agir, alegria em agir e certeza de poder mudar as coisas pelos seus próprios esforços”, vemos como essas características desaparecem quando o “sujeito” da reivindicação torna-se o sujeito dependente da caridade e de políticas compensatórias. De fato, do ponto de vista subjetivo, a característica mais forte do movimento de 1968 foi a afirmação de desejo de toda uma geração. Como sujeitos de seus desejos, sofreram as conseqüências de seus atos e os riscos que deles decorriam. Não o fizeram por um impulso suicida, mas porque se opunham, moral e eticamente, a um regime que instaurou o terrorismo de Estado. Nesse sentido, faço minhas as considerações da psicanalista Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes:

No Brasil dos anos 1960, o militante é alguém que se consolidou como sujeito de seu desejo, isto é, alguém que decidiu apostar no que achou que valia a pena. Não sabia, contudo qual era a pena nem supôs o quanto valia sua aposta. Juntou suas energias, na alvorada da vida adulta, e, instigado pelos ideais externos de liberdade, de autonomia política e de independência nacional, aliados aos ideais internos de compromisso com o novo e com o pleno, se pôs ombro a ombro com os que, como ele, faziam o mesmo. (…)

Foi assim que, pela vida psíquica, a necessidade do novo, do revolucionário, do radical e do risco permanente encontrou fértil acolhida no militante que apostou na vida a serviço de uma ideia, a serviço de um projeto que não fosse individual e que servisse a muitos e a seu país.17

Em contraposição a essa posição de sujeito desejante, a política do vitimismo, hoje predominante no contexto das políticas compensatórias, reflete-se na baixa cidadania dos programas assistenciais. As mulheres são submetidas à humilhação de terem de provar que são pobres e infelizes para convencer a atendente de que necessitam do Bolsa-Família. Também se presenciam cenas de humilhação nas iniciativas filantrópicas em que uma cesta básica vem acompanhada de um sermão e de regras de conduta. São formas de tutelagem e de infantilização incompatíveis com a ideia de autonomia e responsabilidade. O que deu exemplaridade à França foi exatamente a universalidade dos direitos à saúde e educação que desenvolvem o sentido de cidadania. A maior parte das políticas sociais facultativas termina por colocar o usuário num lugar subalterno, negando as bandeiras da via republicana e da eficácia dos direitos.

* Agradeço ao CNPq e à Capes pelo apoio à pesquisa Trinta anos de feminismo, cujos resultados são apresentados no presente texto.

NOTAS

1 Simone de Beauvoir, O segundo sexo, 2 vols. (São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1960).
2 Simone de Beauvoir, Balanço final (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), p. 40.
3 Idem, ibidem, p. 493.
4 Idem, ibidem, p. 492.
5 Hannah Arendt, Crises da República (São Paulo, Perspectiva, 2006), p. 174-175.
6 Immanuel Wallerstein, “Révolution dans le systéme mondial”, Les Temps Modernes, nos 514-5, maio-junho de 1989, p. 165.
7 Idem, ibidem, p. 176.
8 Alfred Stepan, estudioso do tema, aponta que cerca de 20% dos oficiais brasileiros foram atingidos por expurgos após o golpe de 1964. João Quartim de Moraes, Liberalismo e ditadura no Cone Sul (Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, 2001).
9 Marco Aurélio Garcia, “O gênero na militância: notas sobre as possibilidades de uma outra história da ação política”, Cadernos Pagu nos 8-9, Núcleo de Estudos de Gênero Pagu/Unicamp, 1997.
10 Ana María Araujo comenta que: “Seguramente es el ‘Círculo de mujeres brasileñas’ el primer grupo consolidado de mujeres latinoamericanas en Francia. (…) El regreso de estas mujeres a su patria después de la amnistía de 1979, la profundidad de sus planteos y la práctica social adquirida como grupo de mujeres brasileñas en Europa, representan un aporte importante en la construcción del movimiento de mujeres en Brasil”. Ana María Araujo, “Hacia una identidad latinoamericana: los movimientos de mujeres en Europa y América Latina”, Nueva Sociedad, no 78 Caracas, Venezuela, julho-agosto de 1985.
11 Idem, ibidem, p. 90.
12 Em 1976, ademais das mortes ocorridas no quadro da Operação Condor, várias militantes do PCdoB foram assassinadas no episódio que ficou conhecido como “a chacina da Lapa”, nome do bairro em que se encontrava o local da reunião, na cidade de São Paulo, além do assassinato da estilista Zuzu Angel no Rio de Janeiro. Nos anos 1970, o filho de Zuzu Angel – Stuart, ativista contra o regime militar –, foi preso e morto nas dependências do DOI-Codi. A partir daí, Zuzu entraria em uma guerra contra o regime pela recuperação do corpo de seu filho, envolvendo até os Estados Unidos, país de seu ex-marido e pai de Stuart. Essa luta só terminou com o seu assassinato em 1976 por integrantes do regime militar, forjado como acidente automobilístico no Rio de Janeiro, no túnel que leva hoje seu nome.
13 Rosalina Santa Cruz, em sua tese de doutoramento que tem a imprensa feminista como objeto, conclui que a maior diferença entre o Brasil Mulher e o Nós Mulheres residia na questão da autonomia do movimento das mulheres, independentemente dos partidos políticos, defendida com exclusividade pelo Nós Mulheres, que “surge, afirmando-se como um jornal feminista, defendendo um feminismo que prioriza a diferença entre homens e mulheres, autônomo e independente dos grupos e partidos políticos. Na prática, a semelhança entre os dois jornais está no conteúdo das matérias, na matriz teórica marxista e no público para o qual foram dirigidos os dois jornais”.
14 Maria Paula Nascimento Araújo, “A luta democrática contra o regime militar na década de 1970”, em A. R. Reis, M. Ridenti e R. P. S. Motta (orgs.), O golpe e a ditadura militar 40 anos depois (1964-2004) (Bauru, Edusc, 2004), p. 172.
15 Idem, ibidem.
16 Anette Goldberg, “Feminismo no Brasil contemporâneo: o percurso intelectual de um ideário político”, Boletim Bibliografico de Ciências Sociais (BIB), no 28, Rio de Janeiro, 1989.
17 Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes, A subversão do eu, disponível em http://www.estadosgerais.org/historia/subversao.ahtml.

BIBLIOGRAFIA

ARANTES, Maria Auxiliadora de Almeida Cunha. A subversão do eu. Disponível aqui.
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Maria Lygia Quartim de Moraes é Professora do Departamento de Sociologia do IFCH e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu, ambos da UNIVAMP. É autora (com Rubens Naves) do livro Advocacia pro bono em defesa da mulher vítima da violência (Campinas/São Paulo, Editora da Unicamp/Imprensa Oficial, 2002), e ministrou, no primeiro Curso Livre Marx-Engels, a aula de introdução ao livro Sobre o suicídio, de Karl Marx,