Araguaia: Decisão da OEA abre caminho para julgar crimes da ditadura
A decisão da OEA vai alterar o paradigma da tutela de direitos humanos no país e será o grande objeto de estudo nos próximos anos. Juristas, juízes e advogados estarão a partir de agora obrigatoriamente envolvidos nas questões de direito internacional.
Contundente e incisiva, a Corte Interamericana não só condenou o país a reparar danos de familiares das vítimas, como determinou que as violações de direitos humanos dos anos de chumbo sejam, enfim, investigadas e julgadas, retirando todos os obstáculos jurídicos para os processos penais.
Ao fazê-lo, expôs de forma constrangedora a decisão anterior do STF.
As execuções sumárias, os desaparecimentos forçados e as sessões de tortura foram impingidas a cidadãos na época da ditadura. Mas a culpa pela condenação do país se deu justamente em face da "interpretação que a justiça conferiu à lei da anistia".
O que surpreende no caso é a ausência de novidade.
A jurisprudência da Corte Interamericana já era pacífica quanto à impossibilidade de anistias para impedir o julgamento de crimes de lesa-humanidade, como se caracterizam os desaparecimentos forçados do Caso Araguaia.
Sentenças anteriores referentes ao Peru e Chile prenunciavam a decisão, mas o STF ignorou a incompatibilidade de nossas leis com as regras da Convenção Americana.
O controle de convencionalidade passou a ser obrigatório, desde que o Brasil, de forma livre e espontânea, reconheceu a competência da Corte, em 1998.
Outros países do continente, como Argentina, Chile, Peru, Colômbia e Uruguai, mencionados na decisão, vêm resolvendo as pendências jurídicas de suas ditaduras com alterações em âmbito legislativo ou judicial.
Os ministros brasileiros aderiram à ideia do perdão cordial, talvez imaginando que, no fundo, os nossos ditadores tenham sido melhores que os outros.
Gastaram horas de julgamento para afirmar o suposto caráter consensual da anistia, aprovada em 1979, por um congresso com parlamentares biônicos e ainda sem eleições gerais.
A Corte Interamericana, todavia, explicou que o problema nem era a forma da anistia, mas o seu conteúdo. Certas violações são tão graves, que o direito interno não pode impedir o julgamento.
A regra não vale apenas para o Brasil ou a América Latina. A ONU já disciplinou que acordos de paz não devem prometer anistia por crimes de guerra nem por infrações graves aos direitos humanos.
Recentemente, o próprio STF retirou de vigência artigo de nossa Constituição, justamente por sua contrariedade ao Pacto de San José da Costa Rica. Proibiu a prisão civil por dívida, nos casos de depositário infiel.
Acatar o direito internacional não pareceu, então, nenhuma barbaridade para os ministros.
No caso dos crimes da repressão, no entanto, o STF se limitou a analisar o direito interno, a despeito dos inúmeros alertas emitidos quanto à jurisprudência internacional.
Marcio Sotelo Felippe já nos havia explicado em precioso artigo, que veio à tona, logo após a decisão do STF. O 'nome da rosa', disse ele, eram razões de estado, conveniências políticas que, no julgamento, pesaram mais do que a proteção da dignidade humana.
Mas o direito internacional dos direitos humanos não tem lugar para conveniências que ocultem violações tão graves.
As reações de alguns ministros do STF à decisão da Corte também surpreenderam.
O presidente, Cezar Peluso, disse que "a decisão só gera efeitos no campo da Convenção Americana", como se isso representasse pouco. Indagado quanto a possíveis processos criminais, antecipou o que pode ser por ele mesmo decidido: "É só recorrer ao STF. O Supremo vai conceder habeas corpus na hora".
Para o ministro Marco Aurélio, o governo está submetido ao julgamento do STF e não pode afrontá-lo para seguir a corte da OEA – como se a ela o Estado brasileiro também não estivesse submetido.
Num exemplo bem acabado de soberba jurisdicional, o STF tomou para si o "Non ducor, duco" da bandeira paulista. Exige ser seguido, mas repele seguir decisões internacionais.
De acordo com os ditames do tribunal da OEA, porém, isso pode nos colocar como uma espécie de corsários da lei.
Operadores do direito talvez estejam se perguntando, se o STF não segue a Convenção Americana, que o Brasil se obrigou a respeitar, como exigir que os demais agentes sigam as suas decisões?
Mas a questão que a partir de agora vai incomodar delegados, promotores e juízes é ainda mais delicada: a Corte afirma que, reconhecida a Convenção, é responsabilidade do Estado e, por consequência, de todos os seus agentes, respeitá-la e fazê-la cumprir.
Portanto, as determinações de que as investigações sejam feitas em prazo razoável, e os casos submetidos a julgamento, não podem ser simplesmente ignoradas.
Entre as demais imposições da Corte Interamericana ao Estado brasileiro, está a de implementar programa ou curso permanente e obrigatório sobre direitos humanos a todos os níveis hierárquicos das Forças Armadas.
Ante o teor da decisão internacional, que imputa responsabilidade pela omissão do Estado às interpretações da lei, talvez fosse conveniente estender esta obrigatoriedade para os membros do Judiciário, em todos os seus níveis.
*Juiz de Direito em São Paulo. Foi presidente da Associação Juízes para a Democracia. Coordenador de "Direitos Humanos: essência do Direito do Trabalho" (LTr) e autor de "Crime Impossível" (Malheiros) e do romance "Certas Canções" (7 Letras). Responsável pelo Blog Sem Juízo.
Fonte: Terra Magazine