Acreditar na imutabilidade do status quo, sem refletir sobre a realidade, é típico do pensamento conservador. Este soma, à recusa da historicização do real, a aversão à reflexão teórica. Mas o conservadorismo, ele próprio, possui uma história. Surgiu em resposta aos philosophes iluministas do século 18, que entendiam ser possível traçar o destino da sociedade de forma racional e libertar os indivíduos dos grilhões das redes sociais arcaicas – família, igreja, cultura. Contestavam a senha moderna para a privatização dos valores morais, que minou a moralidade objetiva e o argumento da autoridade, fazendo tudo que era sólido desmanchar no ar.

Frente a esse movimento de cunho progressista contra o Ancien Régime, os conservadores obrigaram-se a elaborar um discurso sobre a importância de manter os costumes e as instituições existentes: a garantia da vida humana que o individualismo liberal ameaçava destruir. Quem melhor expressou o modo de pensar do conservadorismo foi um irlandês com carreira política na Inglaterra, Edmund Burke (1729-1797), ao criticar os princípios da Revolução Francesa (1789). Jogo encardido.

Para Burke, as pregações entusiasmadas sobre a igualdade e a liberdade põem em risco as crenças, hábitos e preconceitos, tidos como positivos, para cimentar a hierarquia social e a propriedade. A estabilidade política implica o respeito às leis eternas do universo criado por Deus, que houve por bem introduzir a desigualdade na natureza e na sociedade. É prova de sensatez, pois, aceitar a divisão em extratos e classes sociais. Também o Estado – a referência é o modelo inglês instituído após a Revolução Gloriosa (1688) – é um legado divino. Condensa “a associação de toda ciência, de toda arte, de toda virtude e de toda perfeição… uma associação não apenas entre os vivos, mas entre os mortos e os que irão nascer”.

Seus defeitos crônicos ou corrupções endêmicas não justificam o fervor dos brados revolucionários. Cobram os cuidados de um filho solidário e dedicado perante o pai enfermo. Essa estatolatria tinha uma função: preservar os preceitos da tradição em um contexto cindido por conflitos políticos, sociais e econômicos.

A ideia de igualdade não passa de uma “monstruosa ficção”. O sonho dos republicanos jacobinos (e o dos socialistas), calcado no igualitarismo de direitos, descamba no caos. A liberdade, na libertinagem. Em vez de rupturas, Burke aconselha a manutenção do sistema, com um alerta anti-utópico: “Uma democracia perfeita é a coisa mais sem-vergonha do mundo”. Apesar das mazelas agravadas no século 19 pelo processo de urbanização e industrialização, que trouxeram à tona a “questão social”, o conservadorismo resistiu ao chamado romântico das mudanças e fez do constitucionalismo um freio às reformas estruturais que as ruas pediam. A ordem, a qualquer custo, deve prevalecer sobre a justiça social. Ainda: explorando o medo das “elites” (a burguesia) diante do radicalismo das demandas das “classes perigosas” (os trabalhadores), pôde inclusive domesticar e absorver o liberalismo em defesa do capital e contra o trabalho. Explica-se que não exista, hoje, ninguém mais parecido com um conservador do que um (neo) liberal.

Neoconservadorismo

O conservadorismo anda de costas para o futuro, com o olhar no passado, como o Angelus Novus na tela de Paul Klee (1879-1940). Define-se pelo contraste com a dinâmica do progressismo. Interpreta a integração das multidões na esfera política, critério indissociável da construção democrática na atualidade, como um sinal de decadência da civilização ocidental. Reage com apelos aristocráticos ao individualismo, fazendo eco do filósofo espanhol Ortega y Gasset (1883-1955) para quem as massas são incapazes de raciocínio e de uma ação independente. O neoconservadorismo estadunidense do Tea Party bebe – sem moderação – nessa fonte, ao reatualizar a gramática burkeana, exceção feita ao culto do Estado. Com ousadia (para atacar os direitos trabalhistas) e subserviência (para reduzir os impostos dos ricos), o núcleo duro da reação mundial não hesita em potencializar a acumulação por via das desregulamentações (que comprometem o contrato social) para desmantelar as conquistas sociais do Welfare State.

Síntese entre um “modo de vida” e um “estilo de pensamento” que conduz ao que o fundador da sociologia do conhecimento, Karl Manheim (1893-1947), denomina de “ideologia total”, o neoconservadorismo é uma visão social do mundo. Adapta a espiral alucinante da hipermodernidade ao arcabouço legal e constitucional da sociedade, assegurando os privilégios da minoria endinheirada e perpetuando a exclusão que aflige as maiorias empobrecidas, no campo e na cidade. As pressões modernizantes convertem-se em aperfeiçoamentos que modificam para conservar e conferir maior eficácia ao sistema, dentro das normas jurídicas. Seu lema inspira-se em uma famosa passagem do romance O leopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957): “Se queremos que tudo permaneça como está, é necessário que tudo mude”.

Esvazia-se o significado inovador da atividade política. A conflitividade é retirada da cena pública, vira um simples mal-entendido que a capacidade de gestão administrativa pode equacionar em nome da prosperidade geral. Nada que a “boa administração” não resolva, parafraseando Paulo Mercadante (A consciência conservadora no Brasil, 1972). A condição é que o Poder Executivo esteja sob comando dos grupos que sempre governaram o Estado, as elites – da agricultura, da indústria, do comércio. Fecha-se, assim, o círculo da representatividade legítima (sic). Não espanta a hostilidade a Lula da Silva por ter entrado no Palácio de Alvorada, a morada histórica do patronato, não como sindicalista para um beija-mão no governante de plantão ou como torneiro-mecânico para prestar algum serviço manual, mas como presidente da República. Simbolicamente, isso exprimiu uma imperdoável quebra de paradigmas e de modelos.

Lulismo

Para alguns analistas, o lulismo remeteria a uma matriz gerencial de Estado e de governabilidade política, mas não a um projeto de desenvolvimento para o país. Segundo essa versão, o lulismo resulta da fusão ocorrida entre o poder da burocracia partidária (que apropriou-se do controle das campanhas eleitorais, da agenda dos candidatos, da linha de marketing, etc) e o poder do saber técnico (composto por assessores de diversas áreas, economia, comunicação, publicidade, etc). A arquitetura partidária daí decorrente tornou-se mais profissional, centralizadora e personalista, deixando para trás as práticas políticas de valorização dos núcleos que agiam para descentralizar as deliberações tomadas pelo PT, através de múltiplas concertações. O consenso, antes elaborado de baixo para cima, passou então a apoiar-se na confiança das bases nos seus dirigentes, por uma tácita mas efetiva delegação. O deslocamento dos processos decisórios favoreceu a figura carismática de Lula, que galvanizou a militância partidária.

A Carta ao Povo Brasileiro (2002) teria publicizado o lulismo que, no governo, completou “a modernização conservadora iniciada por Vargas porque reafirmou o Estado como demiurgo da sociedade civil e das relações sociais no Brasil”, tutelando a integração “das massas urbanas e rurais ao mercado de consumo de classe média”, sem mexer na teia de poder. Embora a diferença de grau de centralização política do varguismo fragilize o cotejo, aqui interessa o nexo destacado pelo sociólogo Rudá Ricci (Lulismo: da era dos movimentos sociais à ascensão da nova classe média brasileira, 2010). Reforçaria a tese o fato de a liderança de Lula assentar-se na classe C, moral e politicamente ultraconservadora: 52% da população total, o equivalente a 94,9 milhões de habitantes, dos quais 29 milhões chegaram a tal patamar entre 2003 e 2009. “Desconfiam do que é público, não vêem muita utilidade na democracia”. A descrição é compartilhada pelo cientista político André Singer (Raízes sociais e ideológicas do lulismo, 2010). Mas o galo agourento quiçá cacareje noutro poleiro. No ressentimento e no ódio das antigas classes médias que não querem o “seu” imposto convertido em benefícios sociais aos moradores da senzala, observa o professor André Marenco (“Vem aí uma era conservadora?”, Zero Hora, 06/11/2010).

Ricci não é o único a arriscar uma analogia entre as personagens políticas, de penetração popular, mais emblemáticas da história recente. Dois expoentes da intelligentsia ativeram-se sobre o paralelo. Francisco de Oliveira fustigou para que Lula assumisse e reatualizasse o papel de Getúlio Vargas, desta vez para empreender com a participação ativa dos trabalhadores as transformações na economia e na sociedade que o velho caudilho tentou e fez, pelo alto. Para Luís Werneck Vianna, em contrapartida, Lula já seria a imagem e semelhança de Getúlio, por capitanear um transformismo, praticar a conciliação de classes e oscilar do resgate do social e do Estado aos interesses do mercado, da aplicação da disciplina fiscal e monetária às políticas sociais compensatórias (IHU On-line, 20/02/2009). O que reitera as comparações é a ideia de que Lula e o PT não foram capazes de encaminhar um projeto de futuro para o país. Será?

Estado de bem-estar social

Por partes. Há que relativizar a suposta filiação do lulismo a alguma vertente nativa do conceito de “revolução-restauração”. As alterações assinaladas no funcionamento do PT não devem conduzir à magnificação das questões organizativas, na esteira do estudo clássico de Robert Michels (1876-1936) sobre a evolução da Social-Democracia na Alemanha.

Um partido político constitui-se em torno de um programa, fundamentalmente. Por essa razão, sobrevive à repressão nos regimes autoritários, ao desmantelamento organizacional e até ao aniquilamento dos seus membros. A propósito, o programa petista retém o essencial desde a fundação: reconstrução e democratização do Estado, inclusão social, desconcentração das terras, mesmo que tenha incorporado aspectos de extração neoliberal, como a estabilidade monetária recomendada pelo Consenso de Washington. Quanto aos condicionantes ideológicos da classe C, também não devem ser superdimensionados. O consumo de produtos tipo celulares, DVDs, passagens aéreas não basta para inserir esse segmento no american way of life e afastá-los da perspectiva democrático-republicana.

Afirmar que o presente choca o ovo da serpente e prospecta a irrupção vulcânica de um neoconservadorismo que espalhará larvas antipetistas pelo território nacional, com a migração da nova classe média para a direita, é suprimir as mediações que concorreriam para evitar a conjuntura profetizada de forma sensacionalista. A exemplo das políticas públicas orientadas para alternativas coletivas de qualidade, que podem inibir o consumismo individual e elevar o nível de consciência do povo. O que se tem de certo, no momento, é o processo inclusivo de larga escala acionado no governo Lula, que generalizou nas camadas de baixa renda a noção de “ter direito a ter direitos”. Embrião de uma mentalidade emancipada, enfim, do jugo colonial e escravagista. O primeiro passo para a formação de um outro senso comum na sociedade foi dado. A aposentadoria forçada pelos eleitores de figuras deletérias para a República, como Tasso Jereissati (CE), Arthur Virgílio (AM), Marco Maciel (PE), José Carlos Aleluia (BA), César Maia (RJ) é um indicativo do virtuosismo dessa incipiente conscientização. O segundo passo aguarda o governo Dilma.

A presidenta não inicia do zero. Avançou-se na configuração do projeto reclamado de Estado-nação, conforme mostram vários itens duradouros da agenda governamental: o aumento permanente do salário mínimo com ganho real de 53% nos últimos anos, a ampliação da oferta de crédito e as medidas para erradicar a miséria, como o Bolsa Família, e facilitar a inclusão social, como o Pró-Uni, a par da política externa soberana e de encaminhamentos para a integração latino-americana. Ao invés de esvaziar, realçou-se o significado inovador (progressista, sim) da atividade política. O próprio PAC, em ocasiões criticado e desqualificado por atender programas de infraestrura, energia e logística de interesse do capital privado nacional e transnacional, cumpre um papel estratégico ao investir bilhões em saneamento básico, o que diminui a mortalidade infantil – além de gerar empregos. As transferências de recursos do Pré-Sal para um fundo de combate à pobreza, enfrentamento das mudanças climáticas, desenvolvimento da educação, saúde pública, cultura, ciência e tecnologia ajudarão igualmente a compor o projeto que tem por epicentro o fortalecimento do exercício da cidadania. O futuro já não é uma promessa.

Epílogo

É tempo de progressismo, não de neoconservadorismo. Há pedras no meio do caminho, porém. Sem uma reforma tributária impulsionada por vigorosa mobilização social não será viável juntar às políticas distributivas (de repartição da renda) as políticas redistributivas (de taxação do capital na fase de arrecadação), indispensáveis para alcançar a justiça social. Dessa articulação, ainda sub judice, que vai testar a aliança do PT com o PMDB no Congresso, depende em grande proporção o pacto político para consolidar o Estado de bem-estar social no Brasil.

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Luiz Marques é professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Fonte: Carta Maior