Às vésperas da Revolução de Outubro, Lênin afirmava que a situação particular da Rússia a colocava a "meio caminho" entre o Ocidente e o Oriente. Isto tanto do ponto de vista geográfico como de desenvolvimento econômico-social. Ou seja, entre os países imperialistas da época, a Rússia era a potência mais atrasada, guardando uma série de características próprias dos países dependentes, coloniais e semicoloniais.

Por isto, ao tomar o poder, os bolcheviques ainda encaravam a sua revolução como uma "ponte" para a vitória de revoluções, mais ou menos imediatas, nos países capitalistas mais desenvolvidos. O jovem poder soviético apostava no surgimento de crises revolucionárias por toda a Europa, em função da destruição e do colapso provocados pela Primeira Guerra Mundial. Desta forma, o auxílio estatal de nações socialistas mais desenvolvidas garantiria a passagem da URSS ao sistema socialista, que se espalharia rapidamente pelo mundo, em oposição ao capitalismo.

No início a ruptura

Assim, desde o início, o poder soviético se orientou para a ruptura com o mercado capitalista mundial da era do imperialismo. Do ponto de vista das relações econômicas externas, isto se materializava numa política que admitia unicamente relações de comércio com os países capitalistas, e vetava qualquer fluxo de capital. Dentro desta perspectiva, o Comitê Executivo Central de Toda a Rússia logo tomou uma medida de grande impacto simbólico e alcance histórico – o cancelamento de toda a dívida externa do antigo regime com as potências capitalistas centrais. Em janeiro de 1918, o próprio Lênin caracterizou esta medida como "um primeiro golpe no capital bancário, financeiro internacional, exprimindo a certeza de que o Poder Soviético continuará firmemente neste caminho até a vitória da insurreição operária internacional contra o jugo do capital".

Outra medida de grande significado revolucionário, tomada pouco depois, foi a renúncia pelo poder soviético a todo capital investido pelo antigo Império Russo em países dependentes. Em 1921, a URSS assinou um acordo com o governo do Irã renunciando a todas as propriedades russas nesse país. Além das quantias em dinheiro, valores em papel e propriedades do antigo Banco Russo de Empréstimos, foram devolvidas ao Irã todas as instalações russas: caminhos de ferro, equipamento portuário, estações telefônicas, estações telegráficas, cais de embarque, armazéns etc. Neste mesmo ano, outro acordo idêntico foi firmado com o governo da Turquia. O significado destes acordos era evidente – o poder soviético repudiava e rompia com a política imperialista de exportação de capital para países dependentes, coloniais e semicoloniais.

Mesmo no tocante às relações de comércio com os países capitalistas, Lênin considerava fundamental defender a independência econômica do Estado soviético em relação ao mercado capitalista mundial. Por isso, em abril de 1918, o Conselho de Comissários do Povo tomou outra medida histórica – decretou o monopólio estatal de todo o comércio exterior. Todas as operações comerciais com o exterior passaram a ser conduzidas por organismos especialmente montados para este fim, vinculados ao Comissariado do Povo do Comércio Externo. Fora destes organismos, ficou expressamente proibida a assinatura de qualquer contrato de importação ou exportação. Foi a arma encontrada pelo poder soviético para romper com a estrutura desigual de comércio do mercado capitalista mundial.

Esta perspectiva de ruptura com o mercado capitalista mundial não era encarada como um "modelo ideal", a ser implementado de forma mecânica e dogmática, independente das condições históricas. Pelo contrário, era um desafio a ser enfrentado de forma concreta pelo poder soviético com tarefas adequadas ao contexto de cada fase do seu desenvolvimento. Em outras palavras, era preciso abordar politicamente o problema da ruptura com o capitalismo, achando soluções originais e criativas que permitissem avançar nesse caminho na situação particular da sociedade soviética.

Este desafio se impôs com força sobretudo a partir da derrota da vaga revolucionária no Ocidente, no início da década de 1920. Já ficava claro que o jovem poder soviético não contaria com o apoio estatal imediato de Estados socialistas mais desenvolvidos. Mesmo nestas condições, Lênin considerava possível a construção do socialismo na URSS, com base na aliança operário-camponesa interna. Mas esta ruptura com o capitalismo já não se daria tão rapidamente quanto antes se pensava. Era necessário passar por um período de concessões temporárias ao capitalismo, para recompor a economia destruída pela guerra e avançar no desenvolvimento das forças produtivas. Este período foi batizado de Nova Política Econômica (NEP), e tinha como objetivo central criar as bases materiais para a socialização plena da economia mais adiante.

Na NEP, concessões

No terreno das relações econômicas externas, a NEP adotou as seguintes concessões para o fluxo de capital entre a URSS e os países capitalistas:

1. As concessões, onde forças produtivas da economia soviética eram alocadas a capitalistas estrangeiros por prazos de tempo pré-determinados;
2. o arrendamento (aluguel) de forças produtivas para capitalistas estrangeiros;
3. o pagamento de salários elevados para técnicos e especialistas estrangeiros;
4. a montagem de empresas mistas, associando capital estrangeiro a empresas soviéticas;
5. a obtenção de empréstimos junto a bancos capitalistas estrangeiros.

Todas estas medidas eram apresentadas abertamente como concessões em direção ao capitalismo, que deveriam ser suspensas assim que fosse possível. Lênin, em particular, as comparava a muletas sobre as quais o debilitado Estado soviético tinha de se apoiar até se restabelecer. Mas ao mesmo tempo em que defendia a sua necessidade, conclamava os trabalhadores soviéticos a se manterem vigilantes contra os perigos que as concessões acarretavam para o socialismo:

"Ocultar às massas que a atração dos especialistas, por meio de salários extraordinariamente elevados, é um desvio dos princípios da Comuna (de Paris) significaria descer ao nível dos politiqueiros burgueses e enganar as massas. Explicar abertamente como e por que demos uma passo atrás, discutir publicamente quais os meios que temos para recuperar o tempo perdido, significa educar as massas e aprender com a experiência, aprender juntamente com elas a construir o socialismo" (2).

"Não dissimulamos de modo nenhum os perigos que estão ligados a esta política (de concessões) na República Soviética Socialista, e além disso num país fraco e atrasado. Enquanto a nossa República Soviética continuar a ser uma zona isolada, de fronteira, de todo mundo capitalista, seria uma fantasia e uma utopia completamente ridículas pensar na nossa total independência econômica e no desaparecimento destes ou doutros perigos" (3).

Apesar do interesse por parte do poder soviético, o fluxo de investimentos estrangeiros para a URSS durante a NEP nunca alcançou maiores proporções. Segundo Alec Nove, nos anos 1924-1925, somente 4.260 operários trabalhavam nas 13 empresas estrangeiras "concessionárias" mais importantes (4). Em 1928, a produção das 68 empresas "concessionárias" não passava de 0,6% da produção industrial global da URSS. No terreno dos empréstimos bancários os resultados também foram magros. A URSS só conseguiu alguns créditos comerciais de curto prazo. Nos círculos financeiros imperialistas havia predominado a opção de tentar sufocar economicamente o jovem poder soviético.

Fim das concessões

Após a morte de Lênin, Stalin deu continuidade a esta política formulada pelo grande dirigente da primeira revolução socialista no mundo. No final dos anos 1920, o Estado e o partido soviéticos concluíram que já estavam amadurecidas as condições para terminar as concessões ao capitalismo e avançar na construção completa da base econômica do socialismo. Uma medida fundamental tomada em 1928 foi a de tornar o rublo soviético inconversível nos mercados monetários ocidentais. Isto marcava a intenção soviética de cortar todos os fluxos de capital com os países capitalistas. Ao lançar o
Primeiro Plano Quinquenal, no mesmo ano, as concessões territoriais, as empresas arrendadas e as empresas mistas foram progressivamente eliminadas. Os empréstimos bancários ainda continuaram operando por mais algum tempo. A dívida externa da URSS passou de 415 milhões de rublos-ouro em 1929 para 1 bilhão 400 milhões em 1931 (cerca de 720 milhões de dólares na época). A partir deste ano, o poder soviético adotou a política de limitar os créditos contraídos junto a bancos capitalistas, até a sua virtual eliminação. No final de 1933, a dívida já tinha caído para 415 milhões de rublos-ouro e no fim de 1935 era de apenas 120 milhões de rublos-ouro. Em 1938, com a conclusão da construção da base econômica do socialismo na URSS, a dívida já havia sido praticamente eliminada (5).

Este processo de ruptura da economia soviética com o mercado capitalista mundial foi violentamente interrompido com a invasão nazista na Segunda Guerra Mundial. Neste período, o fluxo de capital entre a economia soviética e os países capitalistas foi restabelecido em função do esforço de guerra dos países aliados contra o nazi-fascismo.

Para a União Soviética, o desdobramento mais importante da derrota das forças nazi-fascistas na Segunda Guerra Mundial foi a formação de um campo de Estados socialistas no mundo. A URSS deixou de ser o único e isolado país socialista no cenário internacional. Surgiram vários Estados no Leste europeu, e a própria China na Ásia, a partir de 1949, também orientados para a construção do socialismo. No seu livro Problemas econômicos do socialismo na URSS, de 1952, Stalin analisava as consequências desse desenvolvimento para o mercado capitalista mundial nos seguintes termos:
"A desintegração do mercado mundial único e universal deve ser considerada como o resultado econômico mais importante da Segunda Guerra Mundial e de suas consequências econômicas. Esta circunstância determinou um aprofundamento ainda maior da crise geral do sistema capitalista mundial (…) Uma consequência econômica da existência dos dois campos opostos foi a desagregação do mercado mundial único e universal; hoje temos a existência paralela de dois mercados mundiais, também opostos um ao outro" (6).

Esta análise levava à diferenciação das relações econômicas externas da URSS com os países capitalistas e com os países socialistas. Entre estes, deveriam se desenvolver ao máximo relações de "cooperação” e "assistência econômica mútua", com a URSS colaborando para a mais rápida industrialização dos seus parceiros. Assim, admitia-se a circulação de capital entre os países socialistas para a consecução de projetos comuns. Nestes termos, foi fundado em 1949 o Conselho de Assistência Econômica Mútua (CAME) com a função de coordenar o funcionamento do mercado socialista mundial dentro de uma ótica de ruptura com o mercado capitalista mundial. Por isso mesmo, os países socialistas voltaram a suspender os fluxos de capital entre o bloco e os países capitalistas, bem como se recusaram a aderir aos organismos econômicos e financeiros internacionais criados pelo mercado capitalista no fim da guerra, entre os quais se destacavam o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (o BIRD, ou Banco Mundial).

Orientação revisionista

Em meio a avanços e recuos, e condicionada pelas particularidades históricas de cada fase do seu desenvolvimento, a política do poder soviético orientou-se, desde o início da revolução, pela perspectiva de ruptura com o sistema capitalista mundial. Essa política, no entanto, sofreu uma alteração fundamental a partir de meados da década de 1950. Sobretudo com a consolidação da liderança de Nikita Kruschev, a União Soviética adotou uma orientação inteiramente diferente – a da progressiva reintegração no mercado capitalista mundial.

O primeiro início de uma mudança na política da URSS veio pouco depois da morte de Stalin. Em agosto de 1953, a União Soviética concedeu um crédito no valor de 30 milhões de dólares para a Argentina, destinado à compra de equipamento petrolífero soviético. Daí em diante, os créditos bancários soviéticos para países capitalistas dependentes cresceram feito uma bola de neve. Em 1955, esses créditos já totalizaram 136 milhões de dólares, boa parte para a construção da companhia siderúrgica de Bhilai na Índia. Em 1956, o total desses créditos alcançava 222 milhões de dólares, investidos em diferentes projetos no Afeganistão, Egito, Índia, Indonésia, Irã, Paquistão, Nepal, Sudão e Síria, entre outros. Em 1959, os créditos soviéticos para os países capitalistas dependentes chegaram a 885 milhões de dólares, concentrados, sobretudo, em países da Ásia e do Oriente Médio. Já era evidente de que não se tratava de "alguns casos isolados" e sim de uma nova política do Estado soviético nas suas relações econômicas com os países capitalistas dependentes.

Contagiado pelo "entusiasmo" de Kruschev com sua nova política, o economista soviético Konstantin Ostrovitianov chegou a afirmar no seu discurso para o 21° Congresso do PCUS, em 1959 que "o rublo está penetrando no mercado mundial, onde suplantará o dólar progressivamente" (7). Afora o tom voluntarista, este discurso revelava as bases da nova política soviética – a URSS passava a concorrer com os Estados Unidos nos marcos do mesmo mercado mundial, ou seja, nos marcos do mercado capitalista mundial.

Dentro desta nova política de reintegração no mercado capitalista mundial, a URSS iniciou, igualmente, uma grande ofensiva para a obtenção de empréstimos bancários junto às principais potências capitalistas. O primeiro crédito foi concedido pela Inglaterra em 1958, para a construção de uma fábrica de celulose. No ano seguinte foi a vez da Alemanha Federal. Em seguida vários países capitalistas europeus concederam créditos para a URSS, como a França, que liberou um total de créditos de 322 milhões de dólares só em 1964.

O restabelecimento do fluxo de capital entre a URSS e os países capitalistas ocidentais (não mais como uma concessão temporária, mas como um elemento permanente e integrado do seu desenvolvimento) conduziu a economia soviética, de 1954 a 1964, para a progressiva reintegração no mercado capitalista. Mas este processo não se deu sem percalços e contradições. Em particular, três "obstáculos", herdados do período socialista anterior voltado para o rompimento com o capitalismo, dificultavam uma reintegração mais plena – a inconvertibilidade do rublo nos mercados monetários do Ocidente, o monopólio estatal das relações e econômica da URSS com o exterior e a proibição dos investimentos diretos de capital ocidental na economia soviética.

Gráfico (p. 47)

A liderança que assume a direção do partido e do Estado soviéticos em meados dos anos 1960, encabeçada por Leonid Brejnev, inaugurou uma segunda fase de reintegração no mercado capitalista mundial, marcada por tentativas de contornar os obstáculos que citamos acima. Até esta época, os créditos dos bancos capitalistas ocidentais para a URSS eram pagos em "moeda forte", ou seja, moedas conversíveis nos mercados monetários do Ocidente. Isto colocava limites ao volume de empréstimos que a URSS podia contrair, já que o pagamento dos juros e do principal dependia da receita obtida em moeda conversível nas suas exportações.

Endividamento

A solução encontrada pela liderança soviética para este problema foi a de desenvolver formas de pagamentos em produtos, e não em moeda conversível. É o que a literatura soviética chama de "acordos de compensação". Do lado ocidental, este tipo de operação só era possível com uma estreita articulação dos bancos com grandes empresas monopolistas que se comprometiam a fornecer os equipamentos ou comprar as mercadorias soviéticas que voltavam como pagamento. Os acordos só eram possíveis, portanto, em função do alto grau de integração de indústrias e bancos capitalistas no que Lênin chamava de capital financeiro da era do imperialismo.

Gráfico (p. 47)
Montante da dívida externa global (9)

O fato é que o fluxo de empréstimos bancários ocidentais aumenta enormemente durante a "administração" de Brejnev. A Tabela 1, ao lado, mostra a evolução da dívida externa da URSS com o Ocidente de 1965 a 1985. A tabela 2 ilustra o peso crescente dos créditos ocidentais para a economia soviética, calculando a proporção da dívida externa da URSS para o capital de investimento total no interior da sua economia. Fica claro que não se trata, aqui, do recurso temporário e limitado a uma "concessão", e sim a assimilação de um componente "permanente" e de importância crescente para a economia soviética.

Acompanhando o processo de ampliação e diversificação dos investimentos de capital ocidental na sua economia, a União Soviética também ampliou e diversificou a sua própria exportação para os países capitalistas, sobretudo os países capitalistas dependentes. Além de incorporar os mesmos mecanismos de "acordos de compensação", nos seus créditos para os países "em desenvolvimento" (que também aumentaram enormemente no período de Brejnev), a URSS passou a adotar, também, diferentes modalidades de investimentos diretos no mundo capitalista.

Até o início dos anos 1980, a União Soviética havia montado mais de 130 empresas em países capitalistas do Ocidente (tanto nos países "centrais" quanto nos países dependentes) (10). A maior parte destas empresas foi criada na década de 1970. Algumas tinham sido criadas ainda na década de 1920, com um papel de auxílio ao comércio externo da URSS, mas tiveram, agora, suas atividades reorientadas para abarcar diversas esferas da economia, inclusive a da produção. Entre estas empresas de capital soviético no Ocidente, se destacam sete bancos que operam em grandes centros financeiros como Londres, Paris, Viena, Zurique e Luxemburgo. Estes bancos passaram a operar ativamente no chamado "mercado do eurodólar" na Europa a partir da década de 1960, participando, inclusive, de inúmeras operações de empréstimo para o Brasil em conjunto com grandes bancos capitalistas ocidentais. Nesta base os ativos dos bancos soviéticos no Ocidente pularam de 222 milhões de dólares em 1958 para 8,7 bilhões em 1978.

Do ponto de vista das relações de comércio da URSS com o exterior, também foram implementadas uma série de mudanças. Foram tomadas seguidas medidas para "descentralizar" o monopólio estatal do comércio exterior. Assim, o número de empresas especializadas vinculadas ao Ministério do Comércio Exterior para operar no mercado mundial foi ampliado inicialmente para 45 no final da década de 1970, e logo depois para 60. Mas esta descentralização ainda se deu nos marcos da manutenção do monopólio estatal do intercâmbio econômico com o exterior.

Durante o período de Brejnev, a União Soviética procurou se constituir em pólo alternativo, no mercado mundial, aos três "centros" do capitalismo ocidental – Estados Unidos, Europa Ocidental e Japão. Neste sentido, ela procurou explorar conflitos políticos nos países capitalistas dependentes que questionassem a hegemonia destes centros, procurando abrir mercado para os seus próprios investimentos. Isto a levou a recorrer, em grande medida, a apoios e ações militares para a abertura de mercados, sob a bandeira de um pretenso "antiimperialismo". Mas o fato é que o seu atraso econômico e tecnológico em relação às potências imperialistas ocidentais, fora do âmbito militar, tornava difícil a consolidação das posições soviéticas no mercado mundial.

Além da perda de importantes "aliados", como Egito e Iraque, este quadro criava situações muito incômodas para a URSS, como a de Angola, onde armas soviéticas nas mãos de tropas cubanas protegem o patrimônio de grandes empresas petrolíferas norte-americanas contra ataques de grupos contra-revolucionários financiados pelos governos dos Estados Unidos e da Africa do Sul! No início dos anos 1980, a URSS vinha claramente perdendo posições no mercado mundial – sobretudo em relação ao grande ascenso do Japão e da própria Europa Ocidental – e se sentia sufocada pelo peso da sua corrida armamentista com o imperialismo norte-americano.

Ao mesmo tempo, tornava-se evidente o esgotamento dos mecanismos da segunda fase de reintegração no mercado capitalista mundial. A política de "contornar" os obstáculos à reintegração chegara aos seus limites. Os complicados trâmites dos "acordos de compensação" não davam às empresas monopolistas ocidentais suficientes garantias para que estas elevassem o patamar das suas aplicações na economia soviética. A não-conversibilidade do rublo, e as limitações burocráticas criadas pelo monopólio estatal do comércio exterior, restringiam a rapidez e a flexibilidade das opções de investimento dos empresários ocidentais. O mesmo tipo de problemas emperrava os investimentos soviéticos nos países capitalistas dependentes. A continuidade do processo de reintegração exigia que este entrasse numa terceira fase, onde os obstáculos herdados do passado fossem enfrentados de frente, e não simplesmente "contornados" como na época de Brejnev. Reintegração total

Esta terceira fase de reintegração no mercado capitalista mundial é deflagrada com a ascensão de Mikhail Gorbachev à liderança do Estado soviético. Um dos primeiros movimentos feitos por Gorbachev é justamente o de tentar estabelecer acordos com os Estados Unidos para "reduzir tensões" entre os dois países e viabilizar acordos parciais de desarmamento que permitissem a ambos reverter parte dos gastos bélicos para a modernização tecnológica de outros setores das suas economias. No momento presente, isto seria de interesse também para o próprio governo norte-americano, às voltas com graves dificuldades financeiras (expressas no seu astronômico déficit público) e com uma guerra comercial cada vez mais intensa com o Japão e a Europa Ocidental.

Do ponto de vista das relações econômicas com o exterior, Gorbachev não demorou em atacar de frente os obstáculos que dificultavam uma integração maior da URSS no mercado capitalista mundial. Neste terreno, sua medida mais significativa foi a liberação, a partir de janeiro de 1987, de investimentos diretos de capital ocidental na economia soviética através da montagem de "empresas mistas". Desde o início, o Estado soviético garantiu uma série de incentivos para estes investimentos diretos de capital ocidental. As empresas mistas só começaram a pagar impostos dois anos depois de realizar os seus primeiros lucros. A partir daí, estariam sujeitas ao imposto regular de 30% que opera na economia soviética. Os lucros reinvestidos na URSS ficariam isentos de impostos. Já os remetidos para o exterior teriam de pagar 20% de imposto (no caso da lei brasileira de remessa de lucros o imposto é de 25%).

As "joint ventures" tem garantias plenas para a sua operação na URSS. Tem autonomia financeira e administrativa, podendo comercializar os seus produtos inteiramente à margem do plano estatal. Podem buscar mercados externos por iniciativa própria. Em caso de liquidação, a empresa ocidental tem direito de repatriar integralmente sua
parte no capital da empresa mista.

No início deste ano, entrou em vigor uma nova legislação ampliando ainda mais as concessões para os investimentos diretos de empresas ocidentais. O teto de 49% de participação ocidental no capital das "joint ventures" foi levantado, e hoje já é permitido ao capital estrangeiro controlar até 90% das empresas mistas. Estas ficaram desobrigadas de obedecer à legislação trabalhista soviética, bem como a política salarial oficial da URSS. Foi autorizada, também, a ampla utilização de mão-de-obra estrangeira, e abandonou-se a exigência de que os principais cargos de direção fossem ocupados por cidadãos soviéticos.

Este conjunto de novas medidas acelerou enormemente os investimentos diretos de capital ocidental na economia soviética. O número de empresas mistas criadas nos quatro primeiros meses deste ano foi igual ao de todo o período de 1987 a 1988: 200. Já com base na nova legislação, cinco empresas monopolistas gigantes dos Estados Unidos – Chevron, Kodak, Johnson & Johnson, Nabisco e Arher Daniels Midland – assinaram um acordo no dia 31 de março prevendo o investimento de 10 bilhões de dólares para a montagem de empresas mistas em associação com 23 empresas soviéticas e alguns ministérios. Mas a maior parte das empresas que vêm se instalado na União Soviética é oriunda da Europa Ocidental. Uma novidade dentro desta política, anunciada pelo principal assessor de Gorbachev, o economista Abel Aganbeguian, na sua visita ao Brasil em maio, foi a decisão de criar "zonas livres para exportação", onde o capital ocidental poderá se instalar e produzir diretamente para a exportação (é a versão soviética das ZPE's propostas pelo presidente Sarney para o Brasil).
Segundo Aganbeguian, à primeira destas zonas já está sendo montada na fronteira da URSS com a Finlândia.

Ao mesmo tempo, a União Soviética ampliou o volume dos empréstimos contraídos junto a bancos ocidentais. Em 1985 e 1986, a URSS contraiu empréstimos no Ocidente no valor de 11 e 12,5 milhões de dólares, respectivamente. Descontando os pagamentos efetuados de obrigações passadas nesses dois anos, a dívida externa da União Soviética com bancos capitalistas ocidentais alcançou 38,2 bilhões de dólares em 1986. Isto equivale a 13,5% dos investimentos internos da economia soviética nesse ano.

Rublo conversível

Para viabilizar a intensificação do fluxo de investimentos ocidentais para a economia soviética, as autoridades soviéticas decidiram, por fim, transformar o rublo em moeda conversível nos mercados monetários ocidentais. Mas esta transformação deverá ser implementada de forma gradual e não imediata. Como é reconhecido abertamente num artigo do economista soviético Yuri Konstantinov, antes de tornar o rublo plenamente conversível, a URSS precisa se tornar mais competitiva no mercado mundial, principalmente no setor de bens e manufaturados de alta tecnologia (11). Sem elevar a sua competitividade, a União Soviética se veria forçada a exportar basicamente matéria-prima e combustível, cujos preços vêm sofrendo uma acentuada queda nos últimos tempos. Ou seja, a URSS seria vítima e não beneficiária da estrutura desigual do comércio no mercado capitalista mundial. E isto implicaria a quebra da hegemonia soviética inclusive no âmbito do mercado do CAME.

A liderança soviética pretende tornar o rublo plenamente conversível até meados da década de 1990. Mas desde já estão sendo implementadas medidas que instituem a conversibilidade, ainda que de forma limitada. Assim o governo já autorizou empresas com moedas ocidentais em caixa, fruto das suas exportações, a vender essas moedas no interior da URSS, com a cotação do rublo flutuando livremente, à margem da cotação oficial. Aganbeguian informou, ainda, que face à pressão de empresários ocidentais, o governo soviético está estudando a possibilidade da introdução imediata de uma segunda moeda nacional, desde já plenamente conversível nos mercados monetários ocidentais.
As autoridades ainda não se decidiram quanto a esta medida, pois temem que ela levaria ao esvaziamento completo do rublo.

Dentro desta nova fase de reintegração no mercado capitalista mundial, Gorbachev virtualmente eliminou o monopólio estatal do comércio exterior. A partir de 1987, 23 ministérios e as 80 empresas mais importantes da URSS foram autorizados a se relacionar diretamente com parceiros econômicos ocidentais, sem ter de passar pelo Ministério das Relações Econômicas Exteriores. Já vimos antes como as empresas mistas também foram autorizadas a estabelecer vínculos econômicos diretos com a exterior. No âmbito do CAME, o governo liberou o estabelecimento de "laços diretos" entre empresas da URSS e de outros países membros do conselho, passando inteiramente à margem dos planos estatais e das empresas de comércio externo dos países envolvidos. Segundo um estudo da Unctae, até julho de 1987, 640 acordos deste tipo já estavam em operação na URSS e outros 114 já estavam acertados (12).

Acompanhando todas estas medidas, as autoridades da URSS também reviram sua postura perante os organismos econômicos e financeiros internacionais do mercado capitalista. Em 1986, a URSS solicitou oficialmente a sua admissão no GATT (organismo que procura regular as relações de comércio no mercado mundial). A liderança soviética indicou, também, o seu interesse numa aproximação e até mesmo admissão ao FMI e ao Banco Mundial, seguindo, assim, os passos revisionistas de Polônia, Hungria e China. Em maio deste ano, uma delegação da URSS participou pela primeira vez de uma reunião do Banco Mundial em Paris.

Assim, as medidas implementadas pela perestroika de Gorbachev, no terreno das relações econômicas externas, coroam o processo de reintegração da economia soviética no mercado mundial, iniciado em meados da década de 1950. Do ponto de vista teórico/ideológico, isto se expressa no que Gorbachev chamou de "novo pensamento" na política externa. A contribuição "original" de Gorbachev neste terreno é a defesa aberta da necessidade de substituir a análise de classe da situação internacional por outra calcada nos "interesses gerais de toda a humanidade" (13).

A introdução da análise de classe dos fenômenos sociais, de forma profunda e consequente, foi uma contribuição e inovação fundamental da teoria marxista, sobretudo ao revelar os limites dos próprios pressupostos do liberalismo. Ela revelou a impossibilidade de garantir a plena realização humana e o florescimento da individualidade da maioria dos membros da sociedade, se estes objetivos humanistas estiverem desvinculados da perspectiva de suprimir a divisão dessa sociedade em classes. A análise de classe, marxista, é que dá ao humanismo bases reais e consequentes. Neste terreno, como em outros, Gorbachev dá um passo atrás em relação à autêntica revolução operada por Marx no pensamento social.

A consequência deste "novo pensamento" de Gorbachev é o abandono de qualquer vestígio de postura "antiimperialista". Ele mesmo deixa isso mais do que claro no seu famoso livro Perestroika:
"Tenho repetido em inúmeras ocasiões que não alimentamos quaisquer animosidades em relação aos interesses ocidentais. Sabemos que Oriente Médio, Ásia, América Latina e outras regiões do Terceiro Mundo, assim como a África do Sul, são importantes para a economia norte-americana e da Europa Ocidental, em primeiro lugar como regiões fornecedores de matéria-prima. Não desejamos de modo algum forçar o rompimento desses laços e tampouco provocar rupturas em relações de interesse econômico mútuo historicamente estabelecidos" (14).

No caso específico da América Latina, o raciocínio é o mesmo:
"Não faremos qualquer tentativa para nos beneficiarmos do sentimento antiamericano, não o estimularemos, nem temos qualquer disposição de intervir nos laços tradicionais que unem América Latina e EUA" (15).

Como se vê, de novo este pensamento não tem nada. Representa, na verdade, a aceitação da velha e conhecida política imperialista de partilha do mundo em esferas de influência. É justamente a negação da perspectiva verdadeiramente nova inaugurada pela revolução socialista soviética: a do rompimento com o mercado capitalista mundial, formado nos últimos seis séculos com base em mecanismos nada humanistas como a pilhagem colonial, o genocídio de povos indígenas, o monopólio mercantil, a troca desigual e, por fim, a espoliação do capital financeiro.

* Luís Fernandes é colaborador de Princípios, é mestre em Ciência Política pelo Iuperj e professor-conferencista na Escola de Serviço Social da UFRJ.

Notas
1. LÊNIN, V. I. "Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado", publicado nas suas Obras Escolhidas, Volume 2, Edições Avante!, Lisboa, 1978, p. 449.
2. LÊNIN, V. I. "As Tarefas Imediatas do Poder Soviético", publicado nas suas Obras Escolhidas, Volume 2, Edições Avante!, Lisboa, 1978, p. 567.
3. LÊNIN, V. I. "VIII Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia", publicado nas suas Obras Escolhidas, Volume 3, Edições Avante!, Lisboa, 1979, p. 413.
4. NOVE, Alec. An Economis History of the URSS, Penguin Books, Middlesex, 1984, p. 89.
5. Ibid., p. 212.
6. STALIN, J. Problemas Econômicos do Socialismo na URSS, Anita Garibaldi, São Paulo, 1985, p. 26 e 27.
7. "Vneocherednoi XXI S'ezd KPSS. Stenografischeskii otchet 3", Gospolitizdat, Moscou, 1959, p. 160.
8. Este gráfico foi composto com dados extraídos dos relatórios dos bancos ocidentais, que constam dos seguintes artigos publicados pela Comissão Econômica Conjunta do Congresso norte-americano: FARRELL, J. "Soviet Payments Problems in Trade with the West" (1973); ERICSON, P. e MILLER, R. "Soviet Foreign Economic Behavior: a Balance of Paymente Perspective" (1979); MEINTYRE, J. "The USSR's Hard Currency Trade and Payment Position" (1987).
9. Este gráfico foi composto com base nos dados sobre a dívida externa soviética das fontes acima e nos dados oficiais soviéticos sobre o volume dos investimentos internos da sua economia para os anos correspondentes.
10. OBMINSKY, E. "Open for Stocktaking", International Affairs, 8-1988, Moscou, p. 37.
11. KONSTANTINOV, Y. "Can the Ruble Become a Convertible Currancy?" , International Affairs, 3-1988, Moscou.
12. Unctad, "USSR New management mechanism in foreigll'economie relattions", UNCTAD/ST/TSC/l0, 2 de outubro de 1987, p. 12.
13. GORBACHEV, M. Perestroika, Editora Best Seller, São Paulo, 1987, p. 169.
14. Ibid., p. 209.
15. Ibid., p. 222.

EDIÇÃO 17, JUNHO, 1989, PÁGINAS 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51