Depois das derrotas sofridas pelo socialismo, como o desaparecimento da União Soviética e a derrocada dos países do Leste europeu, o debate alcançou maior relevância e tem sido alvo de intensa controvérsia em todo o mundo. Supostamente teria ficado patente a incompatibilidade do Estado socialista com a liberdade política, o desenvolvimento econômico e o progresso social. O fracasso das primeiras experiências de edificação do socialismo atestaria, segundo este ponto de vista, a ineficácia e a inutilidade do planejamento econômico, ao qual se atribuía qualidade inata de burocrático.

Também o panorama de intensa e prolongada crise econômica e social nos países capitalistas desenvolvidos, onde inelutavelmente o chamado Estado de bem-estar social entrou em bancarrota, projeta o assunto. Naqueles países, argumenta-se, seria necessário promover cortes nos benefícios sociais adquiridos pelas classes trabalhadoras, reformular as legislações laborais, reduzir salários, redimensionar os direitos previdenciários.

A redução do Estado como fator de “modernidade” é invocada com particular ênfase em relação aos países dependentes do Terceiro Mundo. Estes só teriam condições de vencer os obstáculos ao seu desenvolvimento, superar os fatores de crise e ultrapassar o estádio de pauperização em que se encontram se promovessem a “reforma do Estado”, tornando-o mínimo.

As forças renovadoras da sociedade, sobretudo as classes trabalhadoras, interessadas na construção de uma nova sociedade de progresso, liberdade e justiça social, submetem o Estado burguês à rigorosa crítica, conscientes de que o primeiro passo decisivo para promover a transição do capitalismo ao socialismo é a conquista do poder político e a construção de um Estado profundamente democrático, de base popular. A secular experiência de luta das classes trabalhadoras permite a generalização do princípio de que o poder político é indispensável para proceder às mudanças que se fazem necessárias ao progresso da humanidade. A crítica necessária ao Estado burguês atual, do ponto de vista das forças revolucionárias, volta-se contra seu conteúdo de classe e as formas de dominação política. Cada vez mais as instituições políticas da burguesia elitizam o poder, excluem as massas populares da vida pública, reprimem as justas reivindicações populares, recorrem à violência e até ao fascismo, confirmando a tese enunciada por Lênin de que na época do imperialismo, do capitalismo monopolista, predomina na vida política a reação em toda a linha. Somente nesse sentido a crítica ao Estado é justa e se conforma à modernidade.

“A campanha contra o Estado é a expressão política da chamada nova ordem mundial”.

Não é esse, porém, o escopo da crítica ao Estado presente em aparatosas campanhas publicitárias, em certas teses acadêmicas e no discurso político dos representantes das classes dominantes. A par de ser profundamente anti-socialista, a campanha contra o Estado é a expressão política da realidade objetiva do mundo no quadro da chamada nova ordem. Nesse sentido, é componente essencial da estratégia de dominação do imperialismo sobre os povos e nações dependentes.

Na fase atual de seu desenvolvimento, em que predomina a internacionalização da economia, o imperialismo erige um sistema de dominação neocolonial que atenta contra a existência dos Estados nacionais. O combate às eventuais barreiras ao domínio dos países poderosos sobre os mercados e fontes de matérias-primas e energéticas dá lugar a uma forte pressão pela reestruturação profunda dos Estados nacionais, verdadeira operação-desmonte dos resquícios da soberania desses países, responsável pela implantação de um sistema ainda mais elitista, concentrador, centralizado, autoritário e inteiramente vulnerável à dominação estrangeira.

Sob o fraudulento pretexto de extinguir o Estado obeso, burocrático e ineficiente, de livrá-lo de encargos tidos como supérfluos, os arautos do neoliberalismo visam a converter os Estados nacionais dos países dependentes em meros aparelhos administrativos com funções secundárias, sem nenhum compromisso com o fomento ao desenvolvimento nacional e a defesa da soberania, o que inexoravelmente os transforma em presas fáceis dos potentados imperialistas. A vasta ofensiva contra as soberanias nacionais inclui a desnacionalização das economias, a desindustrialização de setores fundamentais, a abertura indiscriminada dos mercados internos à penetração dos produtos estrangeiros e se estende às esferas territorial e da defesa. Os países do chamado Primeiro Mundo não consentem que as nações do Terceiro Mundo se potencializem economicamente. A lógica de ferro da internacionalização atua no sentido de transformá-las em dependências ou economias anexadas, complementares, num processo de divisão internacional do trabalho no qual a essas nações está reservado o papel de importadoras e meras produtoras de determinados artigos ditados pela demanda internacional.

“No Brasil, pretende-se transformar o Estado num aparelho administrativo de tipo colonial”.

No caso específico do Brasil, faz-se sistemática propaganda solapando as bases do Estado nacional, que estaria assumindo desnecessariamente atividades que poderiam ser desempenhadas pelo setor privado. O que se pretende, no entanto, é tirar funções do Estado relacionadas com o desenvolvimento do país e com o fortalecimento da soberania nacional. Transformá-lo num simples aparelho administrativo de tipo colonial destinado tão-somente a gerir os serviços de saúde, educação, habitação, meio ambiente, além de coletor de impostos e repressor policial aos movimentos sociais e progressistas.

Faz-se ainda campanha insidiosa tentando demonstrar que as Forças Armadas não têm papel importante a realizar. Seriam parasitárias e onerosas aos cofres públicos. Cortam-se verbas necessárias à manutenção das Três Armas e ao reforçamento da defesa nacional. Sob pressão norte-americana, desativam-se empresas que produzem meios de defesa, com tecnologia própria, ou permite-se que passem ao controle das multinacionais armamentistas. Desse modo, desarma-se a nação brasileira face a prováveis agressões externas visando ao domínio de território nacional rico em minérios.

Apesar do fracasso do processo golpista da revisão constitucional, o patrimônio nacional continua ameaçado pela privatização de empresas estatais essenciais ao desenvolvimento do país. A par da política privatizacionista, adotam-se medidas que liquidam a reserva de mercado para setores fundamentais ao desenvolvimento nacional, como o da informática, ao passo que o governo e a maioria conservadora do Congresso capitulam diante das pressões norte-americanas para o reconhecimento de patentes, o que atingirá de morte a indústria brasileira dos fármacos e a biodiversidade da qual é rica a região amazônica.

Opor-se decididamente a tal orientação não significa deixar de assinalar que o Estado brasileiro é antiquado e que as Forças Armadas possuem forte componente autoritário e antidemocrático em sua formação. Mas é ineludível que sem Estado Nacional e sem Forças Armadas Nacionais não pode haver nação soberana, assim como sem a preservação do patrimônio econômico do país, do seu mercado, das suas empresas e da sua integridade territorial não haverá independência.

* Presidente nacional do PCdoB. Esta opinião-síntese foi apresentada no debate sobre o tema “O Estado e a modernidade”, realizado no seminário organizado pelo IPAS, no Rio de Janeiro, em 1994.

EDIÇÃO 34, AGO/SET/OUT, 1994, PÁGINAS 9, 10