Pedro Martinelli é fundamentalmente fotojornalista. Foi assim que começou há quase trinta anos. Trabalhou nos principais jornais e revistas do Brasil, como O Globo, Veja, Placar, mas não se limitou a fotografar notícias. Em sua carreira fez trabalhos para várias revistas especializadas. Nunca esqueceu, porém, sua base jornalística. Agora, com toda essa bagagem, Pedro resolve correr atrás do seu sonho: fotografar o homem da Amazônia – o caboclo, mistura do índio com o colonizador, que há mais de quatrocentos anos habita a região e é, na verdade, uma das raízes do povo brasileiro.
Pedro de Oliveira e Simonetta Persechetti

Princípios: Depois de onze anos dirigindo o Estúdio Abril (pertencente à Editora Abril), como você teve a idéia desse trabalho sobre a Amazônia?

Pedro Martinelli: Essa idéia nasceu antes de eu começar a trabalhar no Estúdio. Aprendi a enxergar a Amazônia quando morei lá com os irmãos Villas-Boas, em 1970. Trabalhava para o jornal O Globo, e fui enviado para acompanhar o contato com os índios gigantes. Lá comecei a entender a Amazônia. Depois fui trabalhar na Veja e fiz várias matérias na região, mas na verdade me sentia um predador. Estava predando a informação. Íamos lá, passávamos uma semaninha para fazer um especial. Alguns fotógrafos eram enviados: um para Rondônia, outro para Mato Grosso e outro para o Acre, voltando uma semana depois com o material. Aquilo me deixava magoado. Sentia que havia muita história para ser contada. Por isso, de dez anos para cá comecei a comprar tudo o que saía sobre a Amazônia. Percebi que a idéia que as pessoas têm da região é totalmente irreal e absurda. É uma Amazônia de fauna, flora e índios. São livros lindos, poéticos e românticos, com fotos aéreas que mostram o rio, a exuberância da floresta, o jacaré de boca aberta, o macaquinho, o tucano e o índio na festa de Quarup (cerimônia indígena tradicional). Mas ninguém se preocupou em contar a história do indivíduo que habita essas margens do rio; quem é esse caboclo, como ele vive, qual sua história. Então, ao longo desses onze anos em que dirigi o Estúdio, fui montando meu projeto, pesquisando, lendo vários autores. Nesse tempo chegou aqui o Jacques Cousteau. Fiquei animado, pensando que ele fosse dar uma contribuição diferente. Que nada! Ele chegou aqui, mergulhou e disse que o boto era cor-de-rosa. O que é mentira. Ele é cinza ou branco, a luz que incide nele dentro d’água é que dá essa impressão. Enfim, mais uma história exótica, turística. Percebi que havia então a brecha desse homem que nós acabamos atropelando, o caboclo amazônico, e resolvi trabalhar no resgate dessa história. Por isso fui para lá.

Princípios: Você está lá há quanto tempo?

Pedro Martinelli: Há um ano. Mas calculo que ficarei lá uns cinco anos, até porque não acredito que alguém possa fazer alguma coisa razoavelmente séria sobre a Amazônia em menos tempo. Aliás, isso nós fizemos a vida inteira, como jornalistas. Vamos lá, pegamos o “micro” do nada e inventamos uma história, como faz a televisão. Chega a equipe, filma tudo num dia, vai embora e dá sua opinião. É isso que não quero fazer. Primeiro, é preciso entender. Depois, conviver. Só então você fala. Resumindo, pretendo melhorar a qualidade da informação sobre a Amazônia, para que as pessoas tenham um melhor entendimento do que acontece por lá. O esforço e a dignidade de um homem que faz as coisas com as mãos, nas condições mais terríveis do mundo. Essa história visual é que precisa ser contada. O que existe até agora é um monte de palpiteiros engravatados, sentados em seus escritórios, falando sem nunca ter passado mais de dois dias na região. Quando estão lá, saem em lanchas maravilhosas com ar condicionado, e vão emitindo opinião. Vêem derrubada e acham que estão destruindo a Amazônia. Vêem o peixe-boi sendo morto e dizem que está em extinção. Um monte de besteira. É preciso ver as coisas dos dois lados, é preciso conviver, entender o problema. Precisa saber por que o caboclo mata o peixe-boi. Com certeza, porque tem alguém interessado que vai lá e estimula a matança. Nesse contexto, a fotografia tem um papel importantíssimo. Não tem conversa. Ela não é um papel que aceita qualquer coisa, está lá. Eu sou fotojornalista, fotógrafo documental. Não me interessa se isso é correto ou não, é ecológico ou não. Estou fazendo uma documentação importante. Quero que as escolas, as universidades possam entender melhor como é a Amazônia, sem ficar dando muito palpite, porque palpite errado atrapalha. Eu gostaria que as pessoas entendessem é que não adianta – de São Paulo, Nova Iorque ou Paris – tentar preservar a Amazônia. É preciso preservar o caboclo. Se ele for preservado, ele vai preservar a Amazônia, ele sabe como fazer isso, cortar a madeira na hora certa, não fazer derrubadas, matar só o peixe que ele precisa comer.

Princípios: Quais histórias você já fez?

Pedro Martinelli: Fiz uma história legal, a da juta. Fui documentar porque fecharam muitas fábricas por falta de estímulo, por falta de incentivo. Para se ter uma idéia, o sujeito que planta a juta ganha R$ 0,35 por quilo. O que é um desastre. Não imagina o que é plantar juta debaixo d’água, com jacaré, sucuri e acidentes de monte! Essa juta é vendida em Manaus para a indústria por R$ 1,00. Então, por que o caboclo vai se matar plantando juta?

Na Amazônia tem gente que estimula a depredação trocando produtos por tartaruga e pirarucu

Fotografei a pessoa que mergulha para pegar a juta. O processo é o seguinte: eles plantam a juta na várzea. Depois da colheita, ela tem de ficar oito dias de molho debaixo d’água, para amolecer a fibra. Oito dias depois, o rio já subiu um metro. Então ele precisa mergulhar, pegar o feixe e trazer para cima. Aí senta em cima da canoa, um pau flutuante, e começa a lavar o caule e tirar a casca. Depois, vai para casa e põe no varal para secar. Ela precisa ficar bem seca, porque se não altera o peso, e o comprador sabe se ela está seca ou não. Em seguida, ela chega na indústria, uma indústria que está em extinção porque o Brasil importa juta do Paquistão para poder manter as fábricas em Manaus. Agora, enquanto estiverem pagando R$ 0,35 o quilo para o caboclo, ele vai preferir ficar com o arpão e pescar um peixe que vai vender a R$ 0,70, ou então viver da extração da castanha, ou até mesmo da pesca da tartaruga, do pirarucu. Porque tem gente na Amazônia cuja função é lotar um barco com açúcar, café e fumo e ir de casa em casa dos ribeirinhos para trocar isso por tartaruga, pirarucu salgado. São atravessadores, especuladores que ganham em cima disso. Eles é que estimulam a depredação. É aí que tem de se fazer o controle. Tem de controlar os barcos que chegam a Manaus e Belém. Lá é que está a tartaruga. Porque se ninguém comprar a tartaruga, o caboclo não vai matar. Vai matar para comer, para sobrevivência. Nas fotos que fiz agora, documentei um fechadinho que se chama curral, é a geladeira do caboclo. Havia seis tartarugas no seco e cinco na água. É como um galinheiro. Se ele precisa, vai lá, mata e come a tartaruga. Os peixes ficam dentro da canoa com água, como se fosse um aquário. Ele mata o que precisa para comer. Mas chega uma pessoa e oferece R$ 3,00 por tartaruga, ele começa a pegar mais e a matar mais. Não tem sábado ou domingo em Manaus que você não receba um convite para ir comer tartaruga. Três ou quatro festas por dia, e todas com tartaruga. É a mesma coisa com a madeira. Por que encher o saco do cara que está derrubando madeira? Pega a nota fiscal e vê quem está derrubando essa madeira. Se não tiver comprador, ninguém vai derrubar a troco de nada. Se estão derrubando é porque tem alguém por trás disso. Vai ver a quantidade de navios que saem daqui cheios de toras para o Japão!

Princípios: Já que você falou de madeira, como é a história do pau-rosa?

Pedro Martinelli: É a mesma história da juta. Desde a derrubada das árvores, do caboclo que carrega nas costas as toras de duzentos quilos, seu esforço, comendo macaco no meio do mato, até chegar à usina que mói a madeira. Depois repete esse processo, passo a passo, tudo isso para fazer o famoso Chanel n. 5. Aliás, todos os perfumes amadeirados usam o pau-rosa. Agora inventaram o sintético, porque o pau-rosa está em extinção. Mas é insubstituível. Todos os grandes perfumistas franceses querem o pau-rosa brasileiro.
Para se ter uma idéia, o caboclo ganha um salário por mês e gasta tudo em pinga. O patrão desconta tudo dele: fumo, calção, pilha de rádio, tudo. O caboclo fica três meses no mato e uma semana na cidade. Nessa semana, ele fica o tempo todo bêbado, vinte e quatro horas ligado, gasta tudo em pinga e cerveja. Aí chega o patrão e pede para voltar para o mato, porque sabe que não vai beber, porque lá a bebida não chega. Ele escova os dentes três vezes por dia, penteia o cabelo, enfim, fica saudável. Vem o intermediário que compra o pau-rosa por R$ 15,00 o litro e vende por R$ 35,00. A essência chega em Paris a R$ 80,00 o litro.

Em fazendas sem cercas, caboclos que vão pegar castanha são mortos para assustar os demais

Agora vou atrás do peixinho ornamental. Já viram alguma matéria dizendo que o Brasil é o maior exportador de peixinho ornamental? Quero contar como é a vida desse pescador. Onde ele dorme, suas dificuldades de trabalho. Eles pescam com uma lanterna que ligam em uma bateria, tomam choques perigosos porque colocam a lanterna dentro d’água para atrair os peixes, que são apanhados com uma redinha. E esses peixes vão para o Japão. É assim que estou trabalhando. Farei essas histórias também com a borracha e a castanha. Aliás, a coleta da castanha é um grande problema. Lá existem fazendas enormes, mas não existem cercas, então os caboclos chegam lá para pegar castanhas e encontram jagunços que matam dois ou três para assustar todo mundo. Agora estou atrás de imagens que Imagem 06
Imagem 07 ninguém fez ainda, as fotos da seca da Amazônia. Isso nenhum turista viu.

Princípios: Nesse trabalho sobre a Amazônia você deve ter tido uma preocupação estética diferente para conceber as imagens. Como é isso?

Pedro Martinelli: Sem dúvida. Pesquisei todos esses livros sobre a Amazônia, a que chamaria de livros turísticos, para dar de presente de Natal. Livro bonito para se ter em casa na mesa de centro e dizer aos amigos: “Olha como a Amazônia é bonita!”. Não fui lá para fazer isso, mas para fazer a minha história, que é a história do caboclo, que visualmente já é inédita. Resolvi fazer o trabalho em preto e branco para dar um tom ao mesmo tempo poético e dramático. Entrei na Amazônia com dois objetivos: primeiro, pessoal – conhecer o ponto de vista dessas pessoas pelas quais tenho a maior admiração, uma admiração profunda pelo homem que vive lá, o trabalhador da Amazônia. É preciso ter humildade para encostar nele, ouvi-lo, compreendê-lo. Essa é a minha ótica. Nós atropelamos a história do caboclo. Para o bando de cá, que está muito mais ligado em Miami e Disney World, o caboclo não existe na Amazônia. É só fauna, flora e índio. Mas o caboclo vive lá há mais de 400 anos. É o produto do colonizador que chegou aqui e transou com a índia, e nasceu o caboclinho. É a história do Brasil. Está no livro do Darcy Ribeiro (O povo brasileiro – a formação e o sentido do Brasil). Para mim, isso é fantástico. Lê-se o livro e se vê o caboclo na sua frente. Darcy é um gênio, ele ficou lá pouco tempo, mas compreendeu tudo e está contando de onde nós saímos. Isso para a criança, para o jovem, é bárbaro.
É isso que quero contar. Acredito nisso. Não adiantaria nada eu querer mostrar algo em que não acredito. Meu trabalho é documental, e gostaria que servisse para que os jovens, nas escolas, nas universidades, entendessem a Amazônia. A fotografia nasceu para isso. Além de ser uma forma de expressão, é um documento. Não tem contestação. Quando você fotografa alguém cortando uma árvore, ele está cortando uma árvore; quando está tomando banho, ele está tomando banho. Só quero fotografar o lado digno desse homem. Não vou lá para fazer pobreza e miséria, porque seria falso.

Veja publicou a história do pau-rosa. A Folha, a da juta e esta revista publica um portfólio

Princípios: Então o papel da fotografia é de ser memória de uma sociedade?

Pedro Martinelli: Lógico, de memória. Não tenho dinheiro para fazer esse trabalho. Não tenho nenhum patrocínio. Estou fazendo isso por minha conta. Vou para São Paulo trabalhar, fotografar. Com o que ganho aqui, vou para lá e gasto nesse trabalho. Não consegui ganhar nada esses anos, mas também não estou devendo nada para ninguém, não vendi minha alma para ninguém. A fotografia é isso aí.
Quando a Veja publicou a história do pau-rosa foi bárbaro. Contou a minha história e em preto e branco. Quando a Folha deu duas páginas do primeiro caderno de domingo sobre a juta eu achei o máximo. É assim que se forma opinião.

Princípios: Como você pretende divulgar esse trabalho?

Pedro Martinelli: Fazendo tudo o que for possível. A idéia é fazer um livro sobre essas reportagens. Pretendo também fazer exposições. Esse é um trabalho de documentação, conta a história do homem da Amazônia. Em 1997, faço trinta anos de fotojornalismo. Então acredito que terei uma história para ser contada.

Princípios: Especialmente lá fora, no exterior, existe uma preocupação muito grande com a biodiversidade da Amazônia, que é considerada hoje o celeiro do mundo. Como você vê esse problema?

Pedro Martinelli: A Amazônia, para o brasileiro, é Manaus, é pororoca, encontro das águas, rio Negro. Mas Pantanal também é Amazônia, é pré-Amazônia. Mato Grosso é Amazônia legal. No Mato Grosso – voltei agora, vinte e três anos depois – vi a maior devastação da minha vida. O Mato Grosso vai acabar. Não estão tomando nenhuma medida, simplesmente acabando. Antigamente, se extraía madeira nobre e se metia fogo. Depois vieram os projetos agrícolas. Mas agora existe a necessidade de ocupar a terra pelos fazendeiros. Estrada na Amazônia é puro interesse político. Porque depois que passa a estrada ocupa-se a fazenda. Isso acompanhei em 1970, quando fui cobrir o índio. Decolava de Cuiabá, e até Peixoto de Azevedo eram três horas e vinte de vôo, e aquilo era um tapete verde. Mas a Cuiabá-Santarém estava vindo. Dois meses depois, voava e a estrada já estava lá, longe. Era estrada de interesse. Hoje essa ocupação é mais rápida. Mete-se o trator e ateia-se fogo. Hoje a região é um paliteiro negro. Isso também é Amazônia, pelas minhas contas. Isso está acabando.

A verdadeira depredação não é visível do avião: lixo, plástico nos rios… Manaus é uma imundície

O problema do Parque Nacional do Xingu é virar uma ilha, porque as fazendas já estão encostando nele. O crime maior é que as cabeceiras dos rios que passam dentro do Xingu já estão poluídas. Isso tem que ser cuidado. Na Amazônia de que eles falam, ou no estado do Amazonas, que não inclui Belém, pela própria geografia já é difícil fazer uma extração. Nós não vamos ver as grandes derrubadas na Amazônia, mas sim uma depredação invisível. Então, se se continuar vendo as fotos aéreas, se verá que ainda tem muita terra, mas por baixo… Agora, ninguém fala do lixo, da sujeira, plástico nos rios. Manaus é uma imundície. Nunca vi ninguém trabalhar nisso. Nunca vi ninguém fazer um trabalho com a população ribeirinha. Explicar o que pode e o que não pode jogar no rio. Esse trabalho de conscientização ninguém faz. É mais fácil cuidar do macaco de cara vermelha aqui na serra do Arara, que é perto do Rio de Janeiro. Ninguém faz isso, ninguém se preocupa com isso. Não me conformo com isso…

EDIÇÃO 40, FEV/MAR/ABR, 1996, PÁGINAS 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45