Dois impulsos básicos – e complementares – estão presentes na formação do imaginário das sociedades modernas: a conquista da igualdade jurídica entre os homens (deixando para trás sociedades rigidamente estratificadas, que predominaram amplamente ao longo da história) e o estabelecimento de níveis crescentes de igualdade social (ou de níveis menos chocantes de desigualdade). Todas as sociedades que se modernizaram responderam, de alguma forma, a esses dois desafios.

A primeira conquista, cuja importância não deve ser subestimada, finca raízes firmes no capitalismo maduro triunfante. Reintroduzir castas ou estamentos fixos sem a possibilidade jurídica de mobilidade, numa sociedade que se define como governada pela interação livre de portadores de mercadorias, implicaria uma imensa e quase impensável fratura ideológica no próprio sistema Mas, nesse mesmo sistema, a segunda conquista a de níveis crescentes de igualdade social está condenada a ser planta frágil. Pode florescer em certos períodos, mas sempre sob a forma de conquistas políticas, a serem politicamente defendidas. Se é verdade que o mercado, regente fundamental das interações, exige homens juridicamente iguais, o mesmo mercado, ao funcionar, repõe e amplia a desigualdade social, que por isso precisa ser amenizada pela intervenção de mãos bem visíveis.

Por não se inscreverem na lógica do modo de produção, as conquistas sociais permanecem sob ameaça, como mostra o fracasso da experiência social-democrata, esgotada depois de vinte ou trinta anos vividos numa conjuntura (a do segundo pós-guerra) que hoje sabemos ter sido excepcional. Quando a superestrutura política se sobrepõe em demasia às tendências imanentes à estrutura econômica, fortalecendo instituições e valores que criam dificuldades aos processos de livre troca, a acumulação de capital se debilita. O sistema reage, pressionado por seus próprios impulsos e pela concorrência internacional.

Acelerar a renovação da base tecnológica, iniciando um novo ciclo que fragilize os trabalhadores já adaptados aos modos anteriores de produzir, tem sido uma das formas mais recorrentes – e talvez a mais importante – dessa reação. Se, como hoje, esse movimento consegue ganhar suficiente amplitude, aumentam os graus de liberdade na ação do capital, de novo senhor quase absoluto das decisões de investir. Resta aos trabalhadores uma ação defensiva.

Nesses períodos, o pensamento (neo)liberal ganha impulso, com sua argumentação
legitimadora de mais espaço para a regulação mercantil. Muitos desavisados passam a considerá-lo como expressão de uma "ciência". Ao contrário do que tem sido enfatizado pelo intelectual medíocre que ocupa a presidência da nossa República, a base de todo esse processo não é uma pretensa racional idade técnica, à qual só nos restaria aderir, mas exatamente o contrário: a racionalidade técnica só se constitui dessa forma porque é serva de uma "racionalidade" que mal e mal se esconde atrás dela.

A função de harmonizar as economias privadamente reguladas, de um lado, e os processos de socialização necessários ao funcionamento dessas mesmas economias, de outro, tem sido desempenhada, tradicionalmente, por um conjunto de instituições, muitas das quais estatais. O fato novo, sob esse aspecto, é a extensão dos processos que enfraquecem os fundamentos sócio-culturais das sociedades nacionais (pilares daquelas instituições) e debilitam a ação dos Estados.

Os neo liberais postulam – e têm conquistado – maior liberdade de movimentação para capitais, empresas e técnicas, reduzindo o poder regulamentador das nações com relação a esses fluxos. E a globalização – movimento necessariamente capenga, pois nem tudo é fluido, nem tudo se desloca sem fricções. Em primeiro lugar, uma parcela enorme de atividades econômicas e sociais não é negociável no mercado internacional (educação, saúde, energia, "tecnologias sensíveis", redes físicas de transportes, infra-estrutura urbana, terra agricultável, água doce, luz do Sol, muitos tipos de serviços), embora seja decisiva para definir os níveis de produtividade e de competitividade das atividades negociáveis. Em segundo lugar, e mais importante, a globalização tampouco inclui – e não poderá incluir – a população em si mesma. Não está em curso a formação de um mercado de trabalho globalmente unificado. Ao contrário: com o aumento das barreiras ao deslocamento de pessoas, o mundo do trabalho permanece circunscrito aos espaços nacionais em que historicamente se constituiuo rápido e Consciente debilitamento das instituições que operam nos espaços nacionais sinaliza, portanto, um projeto político que (a) perpetua um sistema internacional assimétrico, em termos de poder, e (b) na prática, renuncia ao enfrentamento da questão social. O próprio processo civilizatório fica ameaçado em amplas regiões do mundo, consideradas supérfluas, habitadas por gente desnecessária, algumas das quais no Brasil. com a desigualdade social considerada agora como um valor positivo, impulsionador do desenvolvimento, a solidariedade recua, renovando-se a tendência à barbárie.

Isso se toma mais grave quando se enfoca outra característica básica do cenário atual: o aprofundamento da fratura entre as esferas produtiva e financeira da acumulação de capital. Os sinais de alarme se multiplicam na literatura internacional especializada: é claro que a assimetria crescente entre essas esferas não é sustentável. Mesmo assim, os próprios países centrais têm dificuldade de reagir, emparedados diante de um "poder de veto" – informal, mas terrivelmente eficaz que o capital passou a deter sobre as políticas de todos os Estados. As soberanias nacionais estão fragilizadas até mesmo sobre as respectivas moedas, enquanto a formação de um governo mundial efetivo ainda é uma possibilidade longínqua, politicamente inviável.

Tanto pelo lado da reação à barbárie social quanto pela possibilidade de crise financeira global, as tendências hoje predominantes provavelmente não se desdobrarão de forma linear nos próximos anos. Tudo indica que elas estão aproximando o mundo de trans-
formações ainda muito difíceis de discernir. Os adesistas, quase sempre entusiastas da assim chamada Revolução Técnico-Científica, deveriam buscar na história o ensinamento de que nenhum processo desse porte foi levado a bom termo capitaneado por transformações puramente tecnológicas, e isso tampouco ocorrerá agora. A Revolução Industrial clássica só pôde prosseguir porque as alterações tecnológicas a ela associadas promoveram inúmeras mudanças econômicas, sociais, políticas e culturais que influenciaram reciprocamente a velocidade e o curso do desenvolvimento tecnológico, tudo terminando por se encaixar num novo "modo de regulação" da sociedade, que culminou, neste século, na criação dos mercados de massa. Ninguém ainda demonstrou que esteja em curso a construção de um novo "modo de regulação" abrangente, embora essa possibilidade tampouco possa ser descartada para algum futuro. Seja como for, a imagem atual é cinzenta: as taxas de crescimento do centro capitalista permanecem medíocres, a fragmentação social se agrava, aparecem sinais de instabilidade financeira (o maior banco japonês está sob intervenção, o segundo maior banco inglês quebrou, o monumental déficit americano só faz aumentar) e a mais bela aposta em termos de mercados emergentes e devidamente "ajustados", o México, já fracassou.

Pela sua continentalidade, sua dotação de recursos e a base produtiva que constituiu em seu território, o Brasil é um dos poucos países que podem reagir – seja sob a forma de um projeto alternativo, seja, pelo menos, sob a forma de um programa mínimo de construção de salvaguardas. Mas a tendência hoje predominante não é nenhuma das duas: nossa elite embarca na aventura do "ajustamento", tentando fazer dela um caminho sem volta, queimando as caravelas como Cortez. Culpa de uma elite irresponsável, sem dúvida, mas com a cumplicidade da esquerda. Nem uma nem outra construíram um projeto alternativo – que, pelas razões acima esboçadas, teria que ser um projeto nacional, já que o espaço nacional é insubstituível se se quer definir metas claras, utilizar elementos de planejamento econômico e tratar seriamente a questão social. Numa palavra, se se quer formar uma verdade coletiva, forte o bastante para contrariar a marcha da insensatez.

Num processo excepcional, comparado com o resto do mundo, o Brasil manteve sua unidade territorial no século XIX e a confirmou, de forma negociada, no alvorecer do século XX. Consolidou-se um país-continente, porém pobre, periférico e exótico (pela língua, pelas raças, pela herança cultural, pela posição geográfica). Na década de 20, por sua vez, uma série de movimentos político-militares, sociais e culturais amalgamaram elementos de uma nascente identidade nacional. Em seguida, o país assumiu o desafio do desenvolvimento, que se transformou em projeto político hegemônico com a Revolução de 1930. Ela pôs em marcha acelerada três movimentos estruturais que mudaram a nossa face: a industrialização, a urbanização e a integração espacial do vasto território legado pelas gerações passadas. Tais movimentos formaram a espinha dorsal de um ciclo de desenvolvimento que durou cinqüenta anos. Tendo clara a distinção entre passado (população rural, base produtiva agrícola e fragmentação territorial) e futuro (população urbana, base produtiva industrial e integração territorial), a sociedade brasileira viveu em um tempo claramente orientado e, por isso, sentiu-se portadora de um projeto.

Como ocorreu em vários momentos da nossa história, esse movimento, embora transformador, não foi revolucionário. Ao contrário, manteve estreitíssimo vínculo com o passado, consubstanciando-se na ação de um Estado simultaneamente desenvolvimentista (na economia) e conservador (na sociedade). Nossa matriz produtiva foi profundamente alterada; nossas relações sociais e de poder, muito pouco. Realizamos, digamos assim, uma "fuga para a frente".

A crise em que estamos imersos nos quinze últimos anos decorre do esgotamento do impulso nascido daquela combinação especifica de processos estruturais, ou seja, do fim do ciclo longo de 30-80. Fato notável: foi rapidíssima a desconstrução da identidade nacional então esboçada, e hoje em franco declínio, aliás patrocinado. Essa desconstrução não poderia ter sido tão rápida, nem tão indolor, não fosse uma ação complementar das forças políticas que representavam as elites e as contra-elites brasileiras nos anos 80. Ao enfatizar, com razão, a perpetuação de intoleráveis injustiças no interior do nosso processo de desenvolvimento, a esquerda se esmerou em desvalorizar completamente a construção anterior – em seus aspectos econômicos, ideológicos e culturais fazendo dela terra arrasada; assim, deixou de constituir-se como força que pudesse oferecer uma alternativa de desdobramento transformador para a base produtiva e as forças sociais já constituídas pelo esforço do nosso povo, nas condições possíveis de então. A direita, por sua vez, tinha seus
próprios motivos para também querer se ver livre dessa mesma construção histórica e das instituições que a encerravam. Temia, acima de tudo, que o reencontro do país com a democracia, àquela altura inevitável, criasse condições para a edificação de um Estado ainda impulsionador do desenvolvimento, mas doravante transformador, não mais conservador. Ao desmantelar sem constrangimento o Estado nacional- processo em curso acelerado-, lucrou duplamente: afastou a possibilidade de um "desenvolvimento com reformas", que só seria possível na presença de um Estado com capacidade de liderança, e ficou livre para apostar na única alternativa restante: a internacionalização subordinada.

Um equívoco trágico e profundo percorre, como se vê, a ação da esquerda brasileira nesse período. Um equívoco que se perpetua sempre que se enfrentam, de um lado, seg-
mentos adesistas ao projeto neoliberal, ofuscados pelo pensamento da moda e pela possibilidade de borboletear na periferia do poder, e, de outro, segmentos dogmáticos, incapazes de inserir-se de forma crítica no movimento histórico que nos trouxe até aqui, constituindo a partir daí novas alianças estratégicas em nossa sociedade.

Se quisermos fazer uma reflexão estratégica, mais necessária que nunca, precisamos nos reacostumar a pensar fundamentos. Um bom começo seria tentar responder à pergunta: o Brasil tem sentido? Este é, em última análise, o objeto do texto preliminar e expiratório que denominei Elementos de uma nova estratégia para o Brasil. E a resposta aí esboçada é, inequivocamente, sim.

César Benjamin é escritor

EDIÇÃO 41, MAI/JUN/JUL, 1996, PÁGINAS 8, 9, 10