Muitíssimo falada e pouquíssimo conhecida — eis uma boa consideração que se pode fazer a respeito da dialética de extração hegeliana. Graças à sua “popularização” por conta dos escritos marxianos, a obra de Hegel desperta até hoje enorme curiosidade e gera também imensa confusão sempre que aparece em cena (no meio acadêmico ou fora dele). Escrito originalmente em alemão, com poucas e muitas vezes controvertidas traduções, o trabalho desse pensador alemão acaba se tornando matéria exclusiva de (raros) especialistas, permanecendo, em sua enorme riqueza, inacessível ao grande público.

Dentro do universo hegeliano, constituindo um conjunto à parte ainda mais complexo dada a natureza do tema, encontram-se os textos referentes à lógica, a saber a Ciência da lógica (em três volumes), também conhecida como “Grande lógica”, e a primeira parte (volume I) da Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio, denominada A ciência da lógica, conhecida por “Pequena lógica”.

No que tange às dificuldades de acesso aos textos, os brasileiros temos agora um bom alento: as Edições Loyola lançam, numa respeitável tradução em “português do Brasil” (existe uma edição portuguesa de 1988, de Edições 70, de Lisboa, com tradução de Artur Mourão), a “Pequena lógica” de Hegel. Esta versão da lógica hegeliana possui um caráter esquemático, visto ter sido elaborada para servir de base às aulas de filosofia que Hegel assumiu em Heidelberg em 1816. Nesse sentido, a edição brasileira tem a enorme vantagem de trazer, além das notas inseridas pelo próprio Hegel ao longo das três edições que o texto ganhou ainda em vida do autor (1817, 1827 e 1830), também os “adendos orais” (que a versão portuguesa não traz). Tais adendos são anotações das explicações que Hegel fornecia em suas aulas, colhidas pelos próprios alunos.

Como se vê, temos agora, graças a essa edição brasileira, uma oportunidade ímpar de, com um pouco menos de dificuldade, tomar contato com esse texto essencial da obra de Hegel. Por que essencial? Bem, Lênin escreveu em seus Cadernos filosóficos que “é completamente impossível entender O capital de Marx, e, em especial, seu primeiro capítulo, sem haver estudado e compreendido a fundo toda a lógica de Hegel”. Se Lênin está certo e se Marx não é um cachorro morto, como muitos desejariam, parece indiscutível, por difícil que seja, a necessidade de uma aproximação com a lógica hegeliana. A esse respeito, aliás, temos à nossa disposição e, para nossa felicidade, também escritos em português, os trabalhos do professor Ruy Fausto, seguramente a leitura mais rigorosa de Marx já empreendida à luz da dialética.

Não será, pois, por falta de auxílio (editorial e intelectual) que deixaremos de conhecer o verdadeiro Marx, que, segundo o mesmo Lênin, nenhum marxista havia ainda entendido, precisamente por desconhecer a lógica de Hegel. E para que serve hoje conhecer Marx corretamente? Bem, isso é uma outra conversa, mas , para aqueles que ainda julgamos ser possível resistir à barbárie de um mundo completamente fetichizado, nada mais importante do que compreender a natureza do capitalismo. E isso ninguém fez melhor que Marx! Não custa lembrar também que foi o próprio Hegel quem nos ensinou que a modernidade se define exatamente pelo dilacerado processo em que o homem adquire consciência de sua capacidade de fazer o mundo. Vamos nos deixar embalar pelo canto de sereia do pós-modernismo?

Leda Maria Paulani (Professora do Departamento de Economia da FEA/USP e do IPE/USP)