Não foi um exercício de retórica que moveu a OAB a reclamar, em sua nota do dia 8 de fevereiro, a devolução urgente do Brasil aos brasileiros, mas o acelerado processo de submissão do país ao imperialismo, promovido pelo governo de Fernando Henrique Cardoso, cujos principais auxiliares são intimamente ligados às agências do imperialismo e de governos e bancos estrangeiros, às oligarquias financeiras agrárias brasileiras e aos governos militares e de Fernando Collor, como Princípios denunciou em sua edição passada.

A situação chegou ao grotesco no episódio da distribuição à imprensa, na entrevista coletiva do ministro Pedro Malan e do vice-diretor presidente do FMI, Stanley Fischer, no dia 4 de fevereiro de 1999, do texto da revisão do acordo com o FMI de novembro passado. A assessoria de imprensa do ministro distribuiu um documento escrito no idioma inglês, como se não tivéssemos um idioma para todos os atos praticados no país, principalmente atos de governo. O descaramento chegou ao paroxismo quando um funcionário alegou que a reunião fora em inglês e o documento nesse idioma era mais completo do que sua versão em português.

O acontecimento é simbólico e indica que o governo federal julga estar ligado por laços de fidelidade não aos brasileiros, mas às autoridades estrangeiras, a quem presta contas no idioma falado por elas. O presidente da República e seus acólitos portam-se como agentes de uma potência externa numa possessão colonial.

Para o pensamento político e social clássico o povo é fonte da soberania e fundamento da legitimidade da república e dos governos. Mas FHC e seus aliados o reduzem a massa de manobra que pode ser manipulada e enganada de acordo com os interesses dos governantes. A primeira proposta de lei orçamentária para 1999 foi uma dessas peças de mentira, elaborada para iludir o eleitorado e garantir a reeleição de FHC; ela previa grandes investimentos, sem ajuste fiscal. Depois do segundo turno da eleição, o governo mandou a proposta orçamentária para valer, onde todas as imposições do FMI foram contempladas.

O governo justifica-se em nome de uma modernidade que tem a força de uma lei natural. Mas que modernidade é essa? Celso Furtado, em seu livro mais recente (O Capitalismo Global, 1998), diz que a globalização e o neoliberalismo, na verdade, significam um retrocesso. Voltamos ao "modelo do capitalismo original, cuja dinâmica se baseava nas exportações e nos investimentos estrangeiros", em que a ação do Estado limitava-se a manter a ordem e sanear a moeda.

Para os brasileiros, essa volta é sentida como um retomo aos tempos de Campos Salles e Joaquim Murtinho, tão queridos de FHC; tempos em que as rendas das alfândegas e dos serviços públicos da capital federal eram dadas como garantia a banqueiros estrangeiros; em que só existia o partido do governo, e os outros eram banidos da vida pública; tempos em que o voto distrital esmagava a representação das oposições; em que a luta dos trabalhadores era tratada como caso de polícia.

Para voltar a estes tempos, o governo de FHC deve – diz o cientista político José Luis Fiori (Folha de S. Paulo, 24/11/1999) – "virar a página" do desenvolvimentismo dos anos 50/80. Ele faz uma resenha histórica precisa do conflito nas últimas décadas entre as forças que buscavam o desenvolvimento e a coalizão conservadora cujo programa é impedi-Ia. O núcleo da estratégia desenvolvimentista dos anos 50/80 foi, diz, o "crescimento econômico acelerado, com base na integração e interiorização do mercado interno organizado a partir da expansão da infra-estrutura, da indústria e do agrobusiness".

Este modelo teve sua primeira crise séria no começo dos anos 60, quando a oposição de esquerda denunciou o "modelo de substituição de importações" e defendeu uma reforma social e democrática. Em 1964, o projeto reformista foi derrotado militarmente, e a coalizão conservadora impôs a ditadura militar e "deu a marca autoritária e anti-social do desenvolvimentismo dos anos 60/80".

Ao fundo a ditadura militar, entre 1985 e 1988, houve nova tentativa de "revolucionar o desenvolvimentismo conservador" por forças progressistas que, em função da experiência acumulada desde 1964, compreendiam a necessidade de "uma mudança radical das bases do poder" e de construção de uma coalizão progressista para redirecionar o desenvolvimento "a partir de um objetivo central: o bem-estar econômico e social da população brasileira".

A Carta de 1988 registrou essa tentativa que, entretanto, foi derrotada pelos mesmos conservadores do regime de 1964. Estas forças vetaram "o pacto social e federativo" da Constituição de 1988 ao conseguir "apoio, legitimidade e liderança intelectual num segmento intelectual expressivo da antiga frente democrática, que abandonou o projeto de reformas progressistas". Seu credo, diz Fiori, foi formado pelas idéias difundidas, na década de 80, pelo Banco Mundial, e que foram "a argamassa ideológica que ajudou a 'recolar' a velha coalizão de poder autoritária e anti-social, conectando-a com as idéias e o poder articulados mundialmente em tomo do Consenso de Washington".

Para a "virada de página" do desenvolvimentismo, FHC e sua equipe assumiram compromissos com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco de Compensações Internacionais (BIS) atando o país, por vários anos, à "mais recente e radical versão da mesma política econômica que o conduziu à crise atual".

No acordo acertado com o FMl, em novembro de 1998, o governo de FHC abre mão da soberania nacional ao:
– definir os objetivos e a forma como o país deverá ser governado durante os próximos anos, independentemente de quem o esteja administrando":
– transferir a capacidade de decisão, transformando o Brasil na primeira cobaia internacional de um experimento que combina, num mercado emergente, a aceitação contratual das regras do Acordo Multilateral de Investimentos (AMI, que ainda não foi assinado pelos países desenvolvidos) com as regras da Organização Mundial do Comércio, e mais uma fórmula nova e não constitucionalizada de dolarização da economia;
– passar ao Banco Central dos EUA, o Fed, o controle das reservas externas do país, caso elas caiam cheguem a US$ 20 bilhões, para evitar que o Brasil repita a moratória russa.

Mas nem o governo nem as agência do imperialismo tem garantia de que a moratória esteja afastada. Para o economista Celso Furtado, o Brasil caminha para este desfecho. "A moratória virá", disse (Folha de S. Paulo, 15/11/1999) e em "dois ou três meses o Brasil será conduzido a uma renegociação de sua dívida". E, contra os porta-vozes dos banqueiros e do grande capital, explica (Folha de S. Paulo, 2l /11/1999) que, ao contrário da idéia dominante na imprensa brasileira, a moratória é uma atitude soberana de renegociação, que implica em "renegociação de condições e prazos de pagamentos, com concessões mútuas", "aceita em qualquer parte do mundo".

Desde 1994 o governo de FHC apregoa, irresponsavelmente, que a dívida externa não é mais problema. Mas o enorme crescimento das dívidas externa e interna (cuja soma ultrapassa 50% do PIB) impõe o reconhecimento de que ele é, hoje, mais grave do que nunca, e cresce entre os setores progressistas a consciência da urgência de seu enfrentamento soberano. A CNBB defende, no texto da Campanha da Fraternidade de 1999, a moratória. Denunciando o "capitalismo sem freios éticos" que domina hoje; a CNBB quer a taxação das grandes fortunas como meio para equacionar o défIcit público (Jornal do Brasil, 18/2/1999). Na luta política e ideológica das décadas de 80 e 90, questões como a defesa da soberania nacionaL de melhores condições de vida para os trabalhadores, de apoio à empresas e à economia brasileiras, foram desqualificadas em nome de uma modernização que tudo subordina aos interesses do capital e das classes proprietárias. A questão dos programas de governo e da natureza de sua classe foi cada vez mais desconsiderada, sobressaindo-se dois traços que predominaram nas disputas eleitorais – a busca de governos éticos e honestos e a ênfase no preparo acadêmico dos governantes.

A propaganda neoliberal embandeirou-se com estas idéias para despolitizar a política e impor a tese de que governar é atividade para especialistas. E que o Estado paira, neutro, acima das classes e da luta de classes. Hoje, é possível reconhecer que a campanha pela ética na política, que ajudou a afastar Collor da presidência da República, ajudou também a preparar o caminho que levou FHC ao sucesso eleitoral de 1994 e a dar legitimidade ao projeto neoliberal que ele impôs ao país.

Esta é o saldo dos anos 90, a lição de que o programa da honestidade, da ética e do "preparo" é limitado e esconde o preconceito de classe contra políticos de origem popular. A luta contra a coalizão conservadora exige propostas mais avançadas e consistentes, voltadas ao atendimento das necessidades do povo, do país e de sua economia.

"Não é hora de vacilações", diz a nota da Comissão Política do PCdoB, divulgada em fevereiro. "Em defesa da nação, da melhoria das condições de existência da população, da ampliação da democracia, do desenvolvimento econômico e social, deve-se desenvolver um amplo movimento cívico, de oposição a Fernando Henrique Cardoso e sua política neoliberal. Um movimento exigindo a imediata mudança do modelo econômico e redução drástica das taxas de juros. Um movimento em defesa do pacto federativo, que garanta aos Estados e municípios meios para atender às necessidades da população e para implementar uma política de desenvolvimento, de geração de empregos e de reforma agrária. Um movimento que aponte para a ampliação da democracia e possibilite a efetiva participação popular na definição de novos rumos para o país. Um movimento que envolva partidos políticos, entidades populares e democráticas, personalidades comprometidas com a defesa da democracia e da nação".

"O governo Fernando Henrique, com sua política neoliberal, é o responsável pela grave situação econômica e social vivida pelo país. Cabe à oposição desmascará-lo e apontar um novo modelo, democrático e soberano, com justiça social, para o Brasil". Um modelo que devolva o Brasil para os brasileiros!

Em abril do próximo ano faz 500 anos que a frota de Pedro Álvares Cabral desembarcou nas costas brasileiras. Para comemorar a data, Princípios inicia nesta edição a série 500 ANOS, com uma ampla apresentação de temas fundamentais de nossa história. Começamos com o início de um balanço crítico da historiografia; abordaremos ainda a economia, a continuidade das estruturas de poder, a história do trabalho e da cultura. A série deve continuar até o início do próximo ano, e os artigos serão depois publicados em um livro. Princípios tem, com este esforço, o objetivo de contribuir para a sistematização de uma visão progressista e revolucionária da história de nosso país.

Comissão Editorial.

EDIÇÃO 52, FEV/MAR/ABR, 1999, PÁGINAS 3, 4, 5