A PRIMEIRA reação do presidente Fernando Henrique Cardoso à reunião do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, foi criticar o governador gaúcho Olívio Dutra, para desqualificar o encontro. Considerou absurda a ajuda de 970 mil reais do governo gaúcho para custear parte do evento. "É errado", disse, "quem está pagando esta manifestação anti-Davos é o povo, que não tem nada a ver com isso".

Trata-se de um duplo engano. Primeiro, o isso com que o povo nada teria a ver são decisões dos poderosos do mundo, que, arbitrárias e autoritárias, afetam a vida de bilhões de pessoas em todo o Planeta. É um ponto de vista antidemocrático. Segundo pela falta de legitimidade na crítica, pois seu governo gastou, só em 2000, alguns milhões de reais em mal explicadas festividades para comemorar os 500 anos do Brasil; há o caso de seu filho e o estande da exposição de Hanover; além de dedicar mais de 60% do orçamento da União para pagamento das dívidas externa e interna. Em outra reação típica de um observador desinformado e de má-fé, FHC comparou os participantes do evento aos luddistas, do século XIX, que quebravam máquinas para deter o avanço do capitalismo. Mais tarde, o presidente tucano foi obrigado a recuar, e tentou consertar declarando que a razão não está em Davos ou Porto Alegre, mas na junção das duas perspectivas: "O econômico sem o social é desumano. O social sem o econômico é mera veleidade, voluntarismo inócuo", disse na posse do ministro Celso Lafer, das Relações Exteriores.

Na busca da salvação para o pensamento neoliberal dominante, FHC tenta conciliar o inconciliável. A crise do neoliberalismo não é nova. Ela aprofundou-se com o naufrágio do México, dos "tigres asiáticos", da Rússia, do Brasil, da Argentina …

Em paralelo ao impasse neoliberal, a oposição ao domínio mundial do grande capital financeiro mobilizou massas de descontentes e assumiu forma pública, visível, em greves, manifestações e nas erupções de Seattle, Washington e Praga, acontecimentos ainda confusos, sem propostas claras, mas unidos na rejeição ruidosa às conseqüências desastrosas, à crise de civilização provocada pelo domínio do dinheiro e do lucro.

É uma esquerda que tenta se recompor, cuja principal limitação resulta do fim do socialismo no Leste europeu: a recusa de alguns setores – apresentada como moderna – ao reconhecimento do Partido de vanguarda do proletariado como instrumento fundamental para a luta contra o capitalismo e pela construção de um mundo novo. É uma esquerda ainda embalada por um pensamento libertário, espontaneísta e economicista, que não vê conseqüência para a luta política e que busca apenas mudanças econômicas no capitalismo. Como se existissem dois capitalismos – um bonzinho e ético, e outro cuja expressão contemporânea é a barbárie neoliberal. Para este tipo de pensamento, o Partido Comunista, como forma de organização para a luta, teria sido superado pelos movimentos sociais e pelas ONGs.

A queda do muro de Berlim foi apresentada como o fim da história e a vitória final do capitalismo. Engano que durou menos de uma década, ao fim da qual o movimento da história voltou a ser visível e incômodo para os interesses dominantes. E a esquerda, que teve sua morte declarada, volta a ser capaz de trazer para Porto Alegre mais de 10 mil pessoas, vindas de 122 países de todos os continentes, numa das maiores reuniões de sua história.

Contra a pretensão capitalista do caminho único, a indignação dos povos, dos trabalhadores, dos militantes democráticos e progressistas, reafirma o programa do trabalho e da vida. Proclamam: "estamos construindo uma nova alternativa!", colocando na defensiva o próprio comando imperialista reunido em Davos (protegido por arame farpado e pela maior operação policial organizada pelo governo da Suíça nas últimas três décadas) e forçando-o a inscrever em sua pauta os males da globalização. Lá, Claude Smadja, diretor gerente do Fórum Econômico Mundial, reconhece que "a globalização não está produzindo benefícios, pelo menos não de uma maneira eqüitativa"; ele vai além e diz que ela não pode ter um modelo único e nem ser confundida com a norte-americanização. O presidente da Suíça, Moritz Leuenberger, invoca nada menos que Karl Marx como um dos precursores da globalização, e do próprio Fórum. E o constrangimento do megainvestidor George Soros, na teleconferência (ocorrida no dia 28 de janeiro) entre Davos e Porto Alegre, é a expressão do mal-estar que os protestos, que ocorrem no momento em que a crise econômica norte-americana se aprofunda, provoca entre os poderosos do mundo.

Mas isso não muda o caráter essencial daquele encontro que existe há 30 anos, e Klaus Schwab, seu fundador e dirigente, não disfarça: a preocupação básica em Davos são as necessidades do "mundo dos negócios", isto é, do capitalismo, das grandes empresas capitalistas e dos conglomerados financeiros que hoje dominam o mundo. Em Porto Alegre, ao contrário, o Fórum Social Mundial quer a limitação da ação do grande capital e dos grandes negócios: taxação das transações financeiras internacionais (a famosa taxa Tobin); restrição ao livre comércio; defesa da agricultura familiar e da reforma agrária; criação de instituições democráticas em nível mundial; fim do protecionismo dos países ricos; garantia para o emprego; proteção de pequenas e médias empresas contra as multinacionais; anulação da dívida externa de países pobres; transformação das sementes em patrimônio da humanidade; reversão da privatização de recursos naturais, como a água; transformação dos direitos de propriedade intelectual e patente dos conhecimentos e dos organismos em propriedade comum da humanidade através de tratados internacionais.

O movimento de oposição renasce e vai dando forma ao clamor dos povos, apesar de suas limitações nítidas e grandes. Se há, num extremo, críticos radicais, como o economista argentino Jorge Benstein, que vê as finanças internacionais como um "câncer parasitário financeiro" e o capitalismo em sua pior crise, "decadente e senil", abrindo espaço para um "novo horizonte", que será socialista ou comunista; na outra ponta prevalece a opinião daqueles que, como Oded Grajew (um dos organizadores do Fórum de Porto Alegre) querem um encontro mais propositivo que crítico. Querem evitar uma ruptura traumática entre Davos e Porto Alegre. Há também aqueles que, como Fernando Henrique Cardoso, encaram as duas perspectivas como os dois lados contraditórios da mesma moeda, cabendo ao "bom governo" harmonizá-los e agir em sintonia com as exigências do econômico e as demandas do social.

Num caso, trata-se de uma ilusão reformista. No outro, principalmente de retórica. Para ambos ressurge, ameaçadora, a luta de classes, que fora dada por sepultada, e agora reaparece, confusa ainda, mas com uma perspectiva que vai se firmando: contra a globalização neoliberal, é preciso encarar a globalização como um fenômeno objetivo do desenvolvimento capitalista e que, como os monopólios no começo do século XX, aponta para a socialização crescente, que nasce nas entranhas do capitalismo em crise, e afirma os direitos dos trabalhadores e dos povos. Mas o socialismo só vai tomar-se real pela intervenção consciente e organizada, cujo programa claro seja a derrota da barbárie capitalista e a conquista de um novo patamar de civilização.
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Nesta edição de Princípios não foi possível incorporar mais colaborações de personalidades e entidades presentes ao Fórum Social Mundial de Porto Alegre (veja Registro na página 88). Na próxima edição, voltaremos ao assunto.

Comissão Editorial

EDIÇÃO 60, FEV/MAR/ABR, 2001, PÁGINAS 3, 4, 5