(Fragmento de algo que talvez seja um livro, parte 2)

      “Centro Cirúrgico em cinco minutos!”

      A vida tem som de asas de areia de folhas.

      “Abaixa isso já!”

      “É a Violeta Parra, dona Palmira.” 

      “Não quero saber se é violeta ou se é margarida, isso aqui é cortiço, mas ainda não é favela.”

      Na procissão algumas mulheres ficavam nas pontas dos pés e esticavam os ramos como se fossem varrer alguma impureza do céu, eu esperava algum sinal, mas dentro de mim havia um enorme silêncio, um silêncio oco. Talvez ele, Deus, tivesse falado pelo silêncio, mas eu preferia que ele gritasse.

      "Desce menino, vai quebrar todo o telhado!"

      Duarte era uma espécie de secretário do meu avô, ajudando nas contas e outros pequenos serviços. O velho não o trocaria nem por todo arroz da China, e desentendia quando perguntavam alguma coisa dele. Diziam que tinha matado um homem no sul de Minas por causa de mulher. 

      "…quebrar o te-lha-do!"

      Aos domingos, dona Palmira saía pra visitar a irmã ou em excursão pra Aparecida do Norte. Eu e o marinheiro bebíamos até cair.

      "… no México, a mulher da adega tinha rosto feito pastiche de ruge e o batom vermelho estourava pra fora da boca. Atendia os fregueses assim:

      ?Que desea Señor? ?Que desea Señor?" 

      Eu desejava encontrar um deus entre as nuvens. Quando fechava os olhos, via uma escuridão com túneis de ondas prateadas e vozes mortas brotavam, eram os meus fantasmas.

      "… a razão do lado mais fraco. "

      Digueau era um homem alto, muito robusto, um ex-combatente, lembro que tiveram que fazer um caixão especial pro seu tamanho. Dias antes de morrer, me deu um presente, um punhal de cabo madrepérola.

      "… a razão do mais fraco. "

      O céu preparava chuva, meu avô, e sua barba ruiva estavam no terreiro com as galinhas. De repente surgiram os jipes cheios de soldados. O velho tentou alcançar a Mauser, mas foi cercado, o Duarte desapareceu pelos caminhos. Alguns anos depois ele contou a história daquele dia. 

      "…gostava de ficar vendo estalar fumo, e às vezes eu estava ali naquele trabalho de olhar o trabalho dos outros, quando de repente sentia um cheiro de terra no ar, olhava pra estrada e via a chuva chegando, fazendo marca no chão. Naquele dia havia alguma coisa errada, a chuva não deu cheiro, veio sorrateira feito surucucu."

      Uma devota canção de domingo falava da chuva caindo em campos em flor, mas meu avô estava preso. Num dia de enorme solidão, subi as escadas do sobrado e vi a decoração de Natal ¾ cordões de bolinhas coloridas intercaladas com bandeirinhas do Brasil. A moça era bonita, morena de um olhar perdido.

      "Tem que ser rápido, senão eles batem na porta."

      Não dá pra conversar um pouco antes?

      "Sobre o que?"

      Não Sei. Você é de São Paulo?

      "Não, sou de Minas."

      Posso deitar no seu colo?

      "Pode. Você tem namorada?"

      Não, quer dizer sim.

      "Ah! Entendo."

      Dizem que mulher da vida não beija na boca…

      "É!"

      "Nem todos os homens vivem ainda…"