Quando ele nasceu, há cem anos atrás, um anjo torto, desses que vivem na sombra, mandou que fosse ser gauche na vida. Viveu oitenta e cinco anos, entre os dias 31 de outubro de 1902 e 17 de agosto de 1987, e seguiu à risca a recomendação daquele anjo: foi gauche a vida inteira.

Carlos Drummond de Andrade estaria completando cem anos, não houvesse morrido quinze anos atrás. Nos oitenta e cinco que viveu, o fez com uma fartura e uma intensidade literária poucas vezes vista. Poeta, contista, cronista, deixou o seu nome ao lado dos maiores do século vinte e, quiçá, entre os maiores da literatura mundial de todos os tempos. Afrânio Coutinho falou uma vez que escorria da alma de Drummond um canto identificado com o que de mais alto já produziu a alma de seu povo.
Drummond foi mais de um enquanto viveu, e permanece múltiplo até hoje. Naquele Poema de Sete Faces inaugural já está presente a sua multiplicidade: da poesia por vezes demolidora de quem era gauche; do poeta e cronista do cotidiano a observar o homem sério, simples e forte, de raros amigos atrás dos óculos e do bigode; do poeta erótico que olhava o bonde cheio de pernas numa tarde cheia de desejos; do poeta comprometido com o mundo, e que não vê solução alguma em se chamar Raimundo; do poeta lírico, comovido como o diabo por causa de certa lua e de certo conhaque. Esse múltiplo Drummond esteve presente desde a obra inaugural até os últimos escritos. A sua poesia e a sua prosa continuam nos surpreendendo até hoje, quando esbarramos nela na próxima esquina como fosse belíssimo e imprevisto espetáculo.

Na vida de nossas retinas tão fatigadas haverá para sempre uma pedra no meio do caminho, incômoda, atrevida, bofetada certeira na comodidade literária de ontem e de hoje. A pedra escandalizou o Brasil e serviu, conforme o próprio Drummond, para dividir as pessoas em duas categorias mentais. Uma destas categorias, possivelmente, jamais entendeu nem suportou o autor e sua pedra.

Mas o gauche transpôs as pedras no caminho e foi muito, muito mais além. Não se contentou em ser mais um modernista, arremetendo contra as fortalezas estabelecidas e fazendo desta arremetida seu único caminho e fim. Construiu outro caminho, ou melhor dizendo, outros caminhos, inúmeros outros caminhos que palmilhou sempre com a mesma segurança. Ou com a mesma insegurança, que dele nunca soubemos muito bem se era o ferro das montanhas de Minas ou líquido e fluido mineral transmutado em poesia.

Sabemos, com certeza, que o adolescente expulso do colégio por desafiar um professor, não poderia jamais pertencer apenas a Minas e a Itabira. Não poderia, aquele jovem de dezessete anos que encarou a expulsão com uma total descrença na justiça, ser para todo o sempre o professor de Geografia e de Português do Ginásio Sul-Americano de Itabira. E ele foi mais do que isso. Virou fazendeiro do ar, artífice do verbo, por saber que no princípio era o verbo. Virou comboieiro de palavras, ofício que desempenhou com o mesmo garbo que os tropeiros das Gerais que desfilam pelos seus livros.

Drummond agigantou-se frente ao século em que viveu. Com apenas duas mãos, como todos os comuns mortais, teve nelas todo o sentimento do mundo, e suportou nos ombros esse próprio mundo. Recusou-se a ser o poeta de um mundo caduco e proclamou-se poeta do tempo, da vida e dos homens presentes. Dispôs-se a lutar com palavras, e embora achando ser vã a luta, continuou lutando até o fim. Dessa luta com palavras fez a ponte para uma outra, e colocou as palavras a serviço desta. Embora se dizendo sempre o itabirano voltado para Itabira, Drummond foi poeta do mundo. Lutou em Stalingrado, mesmo sem sair do Brasil, lutou com palavras na defesa de Stalingrado, e ajudou, pedra por pedra, a reconstruir a cidade. As pedras no meio do caminho ele as transpôs e as mandou para que fizessem casa e mais casa a cobrir o chão da heróica cidade destruída no combate aos nazistas. Agigantou-se o Drummond, e ombreou-se com os grandes de seu século.

Drummond foi o formidável cantor do amor, do amor sem comedimentos, da paixão sem limite. Como essas coisas de fúria de paixão parecem tão pouco com ele; como essas coisas têm a cara dele. A poesia dele é a do amor intenso, arrebatado e arrebatador, da paixão violenta, dos apaixonados que enfrentam o mundo e suas pedras. Cantou a paixão medida e sem medida. Não poderia ser diferente, pois o que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar? Ele nos deu a pergunta e a resposta, sempre em defesa do amor, o primo da morte e da morte vencedor, aquele a quem matam a cada instante de amor. Foi praticamente perfeito enquanto poeta do amor, mesmo sabendo quão imperfeitas são as nossas maneiras de amar.

A canção preparada por ele continua até hoje acordando homens e adormecendo crianças. Cabe-nos descobrir que segredos ele nos distribuiu. Cabe-nos, seguindo o seu exemplo, aprender novas palavras e tornar outras mais belas. Cabe-nos descobrir o claro enigma deste mundo e deste tempo em que vivemos.

Foi muito mais do que poeta. Foi contista dos grandes também; foi mestre, jamais aprendiz. Nos seus contos couberam harmoniosamente o plausível e o implausível. Mais uma vez foi Minas e não foi Minas (que Minas não há mais, ele mesmo dissera), mais uma vez foi o mundo, contista universal, contista para além do tempo e do espaço em que viveu.

Como cronista, o que se poderia dizer dele? Repetir que seu nome está no topo dos que praticaram a crônica? Ainda seria pouco. O lirismo, a emoção, o humor, a denúncia social presentes nas suas crônicas nos mostram mais uma vez a sua multiplicidade. São textos pelos quais qualquer um daria a bolsa e a vida, só pelo prazer da sua leitura numa cadeira de balanço. A crônica é efêmera? Coisa para jornal, que com o tempo perde o sentido e a razão de ser? Quem pensa assim não conhece Drummond. Continuamos ainda hoje seguindo as suas crônicas pelos mesmos caminhos que ele traçou para João Brandão, e tanto aquelas quanto estes são doloridamente atuais.

A obra de Carlos Drummond de Andrade é por demais grandiosa para caber no espaço de um breve texto que pretende ser apenas singelo registro do seu centenário de nascimento. Como caber aqui a grandiosidade que enxergamos nele? Impossível tarefa.

Sabemos, o poeta nos ensinou, que o essencial é viver. Mas não um viver qualquer. Um viver como só é capaz quem sabe que este é tempo de partido, tempo de homens partidos. Um viver como só é capaz quem sabe que este é tempo de divisas, tempo de gente cortada.
O poeta nos ensinou que haverá um novo mundo, e pediu que o cantássemos.

Irmãos, cantai esse mundo
que não verei, mas virá
um dia, dentro em mil anos,
talvez mais… não tenho
[pressa.
Um mundo enfim ordenado,
uma pátria sem fronteiras,
sem leis e regulamentos,
uma terra sem bandeiras,
sem igrejas nem quartéis,
sem dor, sem febre, sem
[ouro,
um jeito só de viver,
mas nesse jeito a variedade,
a multiplicidade toda
que há dentro de cada um.
Uma cidade sem portas,
de casas sem armadilha,
um país de riso e glória
como nunca houve nenhum.
Este país não é meu
nem vosso ainda, poetas.
Mas ele será um dia
o país de todo homem

Vamos construindo este país, drummondianamente vamos construindo este país de riso e glória, e lutando com palavras e com atos para que ele seja o país de todo homem, e drummondianamente acreditando que esta luta não é vã, mas parte daquela essencialidade de viver que o poeta nos legou.

Joan Edessom de Oliveira é professor da Universidade Estadual Vale do Acaraú, em Sobral-CE.

EDIÇÃO 67, NOV/DEZ/JAN, 2002-2003, PÁGINAS 74, 75, 76