Vivemos um período de intensa efervescência e polêmicas no campo das idéias. Após os fracassos, seguidos de contundentes desastres sociais, das políticas neoliberais aplicadas em todo o mundo e, em particular, no Brasil, há uma oxigenação e redemocratização das correntes de pensamento, mesmo que antagônicas entre si.

O historiador brasileiro, Nelson Werneck Sodré – com razão, acredito –, proclamou: “Quem não tem posição política não tem alma”. Assim, em meio ao novo momento histórico em que vivemos – decorrente das vitórias das esquerdas e segmentos patrióticos em todo o país com a eleição de Lula em outubro do ano passado, incluindo também, os diversos governos estaduais de cunho democrático e progressista – são retomados os caminhos interrompidos pela época, imposta, do chamado pensamento único, que reinou durante oito anos.

Ao proclamar o falso conceito do livre mercado entre as nações, os defensores internos desta doutrina agiram como verdadeiros cavalos de Tróia em seus países. Porque o que existe é uma verdadeira guerra econômica, quando não militar mesmo, por parte de meia dúzia de nações poderosas contra os outros países, incluindo o Brasil. Guerra de produtos subsidiados.

Faço esta introdução para constatar os efeitos danosos deste traiçoeiro princípio no campo da cultura em geral porque esta, lato sensu, abrange o mundo das artes, mas suas fronteiras são bem mais extensas. Representa a formação histórica de uma nação ou região, suas raízes antropológicas, etimologia, os diversos confrontos que afirmam a nacionalidade.

O país e as regiões que o compõem representam distintos berços daquilo que se chama brasilidade. Como diria Darcy Ribeiro, das nossas gentidades. Que conformou, através de muitas lutas sangrentas inclusive, uma cultura rica e própria.

E quando falo de cultura, não me refiro apenas aos letrados. Zumbi dos Palmares, por exemplo, e tantos outros, foram líderes, heróis e mártires, sem nenhuma possibilidade de entrarem no rol das Academias.

Nunca freqüentaram círculos de finos talheres de prata e punhos de renda. Muito pelo contrário, possuíam as mãos calejadas pelas íngremes escarpas e sangradas, fruto de implacáveis perseguições.

Hoje, quando se fala em políticas públicas culturais trata-se, em primeiro plano, de resgatar a nossa identidade, a nossa auto-estima através desta rica e sofrida trajetória. Em segundo lugar, zelar pelas nossas renovações, os novos valores da terra e do país.

É bom deixar isso muito claro porque se procura fazer uma confusão proposital e esquisita com estas prioridades. Ninguém está defendendo que nos fechemos como ostras. Seria um absurdo, uma loucura completa.

Devemos nos abrir às grandes contribuições da humanidade em todos os setores, inclusive o cultural. É da nossa tradição, igualmente, o respeito pela liberdade de expressão e opinião, principalmente no campo das artes. Até porque, do arbítrio, nossa geração foi uma grande vítima. Mas, como diz o povo, “uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”.

Quer dizer, devemos zelar pelo que é nosso. Por aquilo que nos é caro e rico, porque diz respeito ao que nós somos, com as nossas virtudes e nossos defeitos. Se vamos nos superar, e o faremos, será partindo das nossas raízes.

Porque muito já se afirmou que não se domina um povo e conquista-se definitivamente a sua cidadela sem destruir a sua auto-estima, a sua identidade e principalmente as suas raízes. Hoje, mais que nunca, esta é uma questão atualíssima.

Qualquer governo comprometido com a soberania nacional não pode fugir à responsabilidade de zelar pelas permanências e renovações do seu povo. Não se trata de rejeitar a produção elevada do conhecimento humano universal. Isto produziria um imenso e imperdoável atraso em todas as áreas da elaboração e realização científica ou cultural.

O que se encontra em jogo é outro problema. Constitui-se na necessidade de evitar a aculturação deste patrimônio nacional, através de um bombardeio teórico, ideológico, imposto pelas grandes potências hegemônicas, apoiadas por ilimitados instrumentos de comunicação que aviltam as riquezas culturais das outras nações.

Neste sentido, cabe ao Estado brasileiro, e aos regionais, o papel indeclinável de zelar, incentivar, promover a cultura do país e a sua democratização, através da inclusão cultural.
Quando querem nos impor uma inútil cultura de mercado, através de bugigangas já descartadas, ou mesmo uma indisfarçável propaganda ideológica, nossa tarefa institucional será promover um mercado para a cultura nacional. Confundir esta tarefa vital ao nosso contínuo histórico com “dirigismo artístico”, trata-se de muita ingenuidade, confusão, proposital ou não.
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Eduardo Bomfim é Secretário de Estado de Cultura de Alagoas e membro do Comitê Central do PCdoB.

EDIÇÃO 70, AGO/SET/OUT, 2003, PÁGINAS 78, 79