Os leitores seguramente já sabem, George W. Bush foi reeleito presidente dos Estados Unidos no dia 2 de novembro de 2004. Não se tratam de boas notícias para o mundo, pois significa a continuidade da política externa confrontacionista que poderá – eventualmente – levar à guerra nuclear.

Não que Kerry, caso fosse eleito, não desse andamento às políticas agressivas do imperialismo americano. Mas ele, provavelmente, estaria menos disposto a se engajar em políticas aventureiras e agressivas tornando resoluções de paz impossíveis.

Um importante problema enfrentado pela classe operária norte-americana está no fato de os Estados Unidos serem o mais antidemocrático sistema eleitoral vigente entre as democracias parlamentares burguesas (com a possível exceção da Grã-Bretanha). Na ausência de alguma representação proporcional, os partidos políticos minoritários podem ficar sem representação no governo, ficando, então, as forças progressistas sem alternativa diante de duas maldades até que possam construir uma resistência em paralelo com o sistema eleitoral.

Para mim, estas eleições presidenciais foram únicas, em termos de paixão e envolvimento das
massas nas questões externas e domésticas. Esta guerra tem igual relação com a ocorrida durante as eleições de 1968, quando o movimento popular pelo fim da agressão dos EUA contra o Vietnã esteve à beira de mudar a opinião pública contra a guerra.

Serão discutidas agora as diferenças de mérito entre as eleições de 1968 e 2004.

Em 1968, o senador Eugene McCarthy, do Minesota, concorreu às primárias eleitorais como um candidato contra a guerra. Suas fortes demonstrações no início das prévias levaram o presidente Lyndon Johnson a anunciar ao mundo sua não-disposição de concorrer à reeleição. O Partido Democrata nomeou o vice-presidente Hubert Humphrey – cujo discurso dava sustentação à guerra. Enquanto a Convenção do Partido Democrata se aproximava, onde estaria claro que o nome de Humphrey seria aprovado, o movimento antiguerra mobilizou suas forças do lado de fora do local da Convenção em Chicago. Estes, iniciais e pacíficos, protestos foram brutalmente reprimidos pela polícia no momento do discurso de Humphrey.

A principal característica das eleições de 2004 foi a determinação de uma larga parcela da sociedade em substituir Bush por um candidato democrata viável. Nas vésperas das eleições, um comentarista da televisão previu que Kerry venceria, pois a raiva que tinham de Bush os partidários de Kerry era muito maior que o amor reservado dos partidários de Bush a seu candidato.

O fator central que contribuiu para as hostilidades sob Bush foi a maneira com que ele levou os Estados Unidos a invadirem o Iraque – as mentiras e os erros de estratégia. Um segundo fator foi a hipocrisia de seus cortes fiscais, que beneficiou somente àqueles que ganhavam mais de US$ 200 mil anuais. Também enfureceu suas propostas de lenta privatização da previdência social.
Outro foco de preocupação durante as eleições estava centrado na Suprema Corte – que ilegalmente concedeu a vitória para Bush em 2001 por cinco votos a quatro.

Ocasionalmente um ou dois dos cinco magistrados vacilam em alguns aspectos políticos apresentados por Bush. Os mandatos da Suprema Corte podem durar uma vida inteira.

Suas substituições acontecem geralmente por causa da idade e da saúde e por esses motivos vários dos magistrados talvez tenham de ser substituídos durante o mandato presidencial. O presidente pode substituir a Suprema Corte durante as férias da mesma e com a aprovação de dois terços do Senado.

E mais: em algumas circunstâncias o presidente pode promover mudanças na lei sem a aprovação do Senado, o que torna motivo de tensão, entre os progressistas, as conseqüências judiciais sob os direitos dos trabalhadores com a vitória de Bush.

O movimento trabalhista foi particularmente prejudicado com a continuidade dos direitos corporativos dos trabalhadores iniciado em 1947 com a notória lei antitrabalhista Taft-Hartley, revogando uma série de direitos, conquistados pelo forte e organizado movimento da década de 1930. Antes da passagem da lei Taft-Hartley, 35% da força de trabalho dos EUA estavam sindicalizados. Hoje, está reduzida a somente 8% no setor privado. A Taft-Hartley e sua subseqüente legislação fincaram alguns obstáculos no caminho da negociação coletiva, atividade sindical em períodos de organização, e na luta grevista.

Com isso, agora pode levar alguns anos para os sindicalizados que foram demitidos de forma ilegal poderem recuperar seus empregos. As corporações privadas têm admitido reuniões de trabalhadores como contraponto às reuniões organizadas pelos sindicatos.

Contudo, no setor público, onde tais táticas podem ser condenadas, a sindicalização é de 35%. Sob a administração Bush, as corporações têm especulado com os fundos de pensão dos trabalhadores. Quando a corporação declara bancarrota, os trabalhadores freqüentemente lutam para o dinheiro acumulado nos seus fundos de pensão não desaparecer. Para agravar esta situação de insegurança, Bush tem protegido em demasia a ofensiva dos sistemas de saúde privado, e de pensão, sob os sistemas securitários de caráter público.

Os sindicatos têm se oposto às políticas neoliberais que levam à perda de emprego no país e reinvestimentos direcionados ao exterior sob condições de superexploração.

Trabalhadores desempregados procuram somente empregos disponíveis, cujos salários significam apenas uma parte do recebido em empregos anteriores. Sob a lei dos EUA, trabalhadores em horas-extras têm direito por tal a 150% sob o valor da hora normalmente trabalhada. Em 2003, a administração Bush propôs que os empregos de oito milhões de trabalhadores (incluindo cargos de chefia e professores) fossem classificados como “gerenciais”, negando-lhes, assim, o direito a receberem pelas horas-extras trabalhadas.

Bush atualmente propôs a reclassificação administrativa dos trabalhadores como líderes de turma mesmo que eles não cumpram nenhuma função desse tipo na empresa.
Estas são algumas surpresas que levaram os sindicatos a se mobilizarem como nunca para derrotar Bush nas eleições de 2004?

Sob esse pano de fundo, as primárias eleitorais tiveram início no começo de 2004. Sob o sistema norte-americano, para ter direito à escolha de delegados para a convenção que nomeará o candidato presidencial, cada partido deve receber previamente 5% dos votos em cada Estado. O Partido Democrata tinha as seguintes escolhas: o senador por Massassuchetts John Kerry; Howard Dean, ex-governador de Vermont; e John Edward, senador pela Carolina do Norte. Howard Dean, concorrendo com um programa antiguerra e sem financiamento dos setores privados, era sustentado somente por seu partido. Fazendo uso sem precedentes da Internet, seus correligionários colhiam fundos para sua campanha durante o início das primárias do partido. Sobre este ponto, durante as primárias do Partido Democrata a mídia televisiva controlada pelas corporações procurou utilizar em suas programações imagens desfavoráveis a respeito de Dean. O objetivo era exacerbar defeitos pessoais que ferem a dignidade de um presidente dos Estados Unidos. A imprensa notadamente privilegiou as campanhas de Kerry e Edwards, pois ambos votaram autorizando Bush a ocupar o Iraque. Na seqüência Kerry venceu as primárias enquanto Edwards foi escolhido para ocupar a vice-presidência de sua chapa.
Kerry, acompanhando o sentimento antiguerra inicialmente propalado pela campanha de Dean, moderou seu discurso favorável à guerra atacando a inadequada forma como Bush preparou a ocupação e o não-apoio da União Européia. Esta distensão de Kerry certamente inflou Bush a acusar Kerry de ambíguo e indeciso com relação à questão da Guerra do Iraque.

Kerry obteve uma distinta vantagem entre os eleitores norte-americanos em questões econômicas domésticas. A organização central do trabalho, AFL-CIO, que apóia invariavelmente o Partido Democrata nas bases empenhadas em apoiar suas questões, obteve para o senador Kerry o recorde de 91% de votações em concordância com as suas recomendações em legislação e 100% para o ano 2004. Essa avaliação para Edwards, que veio de uma família pró-união da classe trabalhadora, foi de 96%, pelo mandato de 2003 dos votos do Senado.

As forças antiimperialistas, incluindo o Partido Comunista (CPUSA), apoiaram Kerry, pelo fato de ele ser “menos ruim” que Bush. Entretanto, nas questões domésticas mais importantes, estas mesmas forças apoiaram entusiasmadamente as posições de Kerry.

Kerry desenhou seu quadro de apoio com o surgimento dos mínimos custos, estendendo os serviços de saúde para mais de um terço da população norte-americana sem seguro de saúde; com a proteção do Meio Ambiente; com o retrocedimento dos cortes de impostos de Bush para pessoas que ganham menos de US$ 200 mil por ano; com o fim do cancelamento – feito por Bush – das pesquisas com células-tronco; e com seu apoio, apesar de ser um católico, ao direito das mulheres ao aborto.

A coalizão nacional antiguerra Unidos pela Paz e Justiça, na qual o Partido Comunista exerce uma liderança (mas não a liderança principal), organizou manifestações anti-Bush, reunindo meio milhão de pessoas em Nova Iorque para protestar contra a guerra no Iraque. O movimento dos trabalhadores mobilizou suas forças em uma escala sem precedentes para trabalhar contra a reeleição de Bush. Numerosos jovens foram atraídos para essa campanha. Particular atenção foi prestada em conquistar o voto em distritos que votam pesadamente no Partido Democrata. Eu moro em um distrito onde cartazes pró-Kerry superam em número os pró-Bush em oito para um. Ao longo da campanha, algumas vezes partidários de Kerry bateram em minha porta para garantir que minha esposa e eu votássemos de fato.

A campanha eleitoral republicana virtualmente ignorou questões domésticas em focalizar quase totalmente o esplendor de Bush como grande comandante das forças armadas em um país em guerra. Bush repetidamente zombou das críticas de Kerry sobre a guerra depois de ele ter votado favoravelmente a ela.

Foi provavelmente providencial para Bush ter emergido em 2004 a questão do casamento de parceiros do mesmo sexo. O fato de a maioria das províncias canadenses reconhecer o direito a esse tipo de casamento estimulou uma campanha para que o mesmo ocorresse nos Estados Unidos. A Suprema Corte de Massachusetts decidiu em 2004 que as leis desse estado não empreendem tais casamentos. O prefeito de São Francisco outorgou esse direito a seus cidadãos até ser invalidado pela Corte da Califórnia. Bush, cujo fundamentalismo religioso já o colocou contra o aborto, a pesquisa com células-tronco e os direitos dos gays em geral, propôs uma emenda constitucional para proibir tais casamentos. Kerry, apesar de ser pessoalmente contra esse tipo de união, tomou posição de que tal matéria deveria ser decidida pelos estados individualmente – como tradicionalmente tem sido –, e não pelo governo federal. Os membros democratas do congresso, com o apoio de alguns Republicanos, foram bem sucedidos no bloqueio do início dos procedimentos para a emenda da Constituição. A Direita religiosa, os “Cristãos Renascidos” (Bush é um deles) – numerosos em regiões onde a indústria é incipiente –, transformaram esta questão em forte apelo emocional. Organizou uma das suas forças em apoio a Bush. Para implementar seu apoio, ela teve êxito em colocar a questão da anulação do casamento entre pessoas do mesmo sexo nas cédulas de votação de novembro em onze estados, onde em cada um deles o banimento foi aprovado de forma avassaladora.

Sob o ponto de vista do Partido Comunista, este assunto seria resolvido melhor com a transferência dos direitos e obrigações legais dos casamentos civis para uniões civis, estendendo a qualificação dessas uniões a parceiros do mesmo sexo, e deixando o casamento como uma cerimônia religiosa para aqueles que o desejam.

Como antecipado pelas pesquisas pré-eleitorais, foi um resultado perto de ser contestado. Quase à 1 hora da madrugada, a vitória dependia dos resultados do estado de Ohio – que, finalmente, foram favoráveis a Bush, com 51% contra 49% para Kerry. Em termos de voto popular nacional, essa performance fez com que 1% fosse ao candidato independente Ralph Nader, um notório defensor de produtos com controle de qualidade. Apesar de Nader tender à esquerda, sua campanha foi parcialmente financiada por apoiadores do Partido Republicano para reduzir votos de Kerry. (Em 2000, Nader tomou para si votos suficientes do Partido Democrata para assegurar a eleição de Bush).

O principal fator que contribuiu para a vitória de Bush foi o desejo nacionalista do público de vitória do exército norte-americano na guerra do Iraque (apesar da sua impopularidade inicial). Tal sentimento superou a insatisfação com as políticas domésticas de Bush. Um outro fator importante foi o esforço das forças de Bush de energizarem o direito religioso – como nunca antes – em torno das questões do casamento homossexual e do aborto. Mesmo pensando que os interesses da maioria da população influenciada por esses fatores redundassem em contradição direta com a agenda doméstica de Bush, ele foi capaz de obscurecer muitos deles em favor de seus próprios interesses eleitorais.

Essa estratégia recorrente, aplicada continuadamente pelas democracias parlamentares burguesas do mundo capitalista, foi bem sucedida o suficiente apenas para influenciar decisivamente a eleição de Bush.

Um censo nacional sobre quem expressou apoio a Kerry ou a Bush, nas contagens de votos de como eles deixaram os locais de votação, fornece alguns pontos significantes de interesse. De cada 2 sindicalizados que votaram em Kerry, um votou para Bush, demonstrando que os trabalhadores sindicalizados representaram um quarto do eleitorado de Kerry. Eleitores de 18 a 29 anos de idade votaram 55 % contra e 44 % em favor de Kerry; aliás, a única faixa etária em que Kerry foi vencedor.

Noventa por cento dos eleitores afro-americanos e 55% dos hispânicos votaram em Kerry. Sessenta e três por cento dos que nunca foram à igreja votaram em Kerry, enquanto apenas 35% dos que freqüentam a igreja em mais de uma vez por semana votaram nele (no meu estado, Minnesota, com um número relativamente baixo de religiosos fundamentalistas, os correspondentes são 80% e 27 %).

Assim como relatado no jornal do CPUSA, People’s Weekly World, John Sweeney, presidente do AFL-CIO, esteve ao lado de outros sindicatos na grande coalizão anti-Bush – significando, concretamente, apenas um pouco mais que 55 milhões de votos para Kerry. Segundo Sweeney, essa batalha ficou distribuída em estados como Pennsylvania, Michigan e Winsconsin. Os sindicalistas bateram em mais de 6 milhões de portas e distribuíram mais de 32 milhões de folhetos em seus locais de trabalho e vizinhança. E, ainda: “Não importa quem esteja na Casa Branca em 21 de janeiro, nós vamos ter de tomar fôlego em relação ao momento, à tecnologia, ao trabalho de base e começar imediatamente a construir um movimento para virar este país”. Sweeney concluiu: “Nós não podemos deixar as políticas dos últimos quatro anos perdurarem; e não deixaremos”.

Para o diretor político da AFL-CIO, Karen Ackerman, os trabalhadores unificados são apenas algo como 13% da força de trabalho (combinando os setores privado e público), já 27% dos eleitores se identificaram como trabalhadores unificados ou membros de famílias de união.

Na sua edição pós-eleitoral de 6 de novembro, a People’s Weekly World escreveu: “Simultaneamente aos resultados que foram um retrocesso, um movimento eleitoral progressista está nascendo, tendo o movimento dos trabalhadores como espinha dorsal. Isso abarca mulheres, afro-americanos, a juventude, latinos, ambientalistas, americanos nativos, grupos de direitos civis, asiáticos, árabe-americanos, terceira idade, religiosos, ativistas de internet, artistas e eleitores de primeiro voto. Eles estão juntos para trazer nosso país de volta do poderio de um pequeno grupo de extrema-direita. Esse novo e enraizado movimento realizou um trabalho heróico. Ele não pôde vencer ainda o medo, racismo, sexismo, homofobia, terrorismo e poder corporativo de manipuladores grupos de extrema-direita, que influenciaram um número significativo de pessoas”.

O espírito anticapitalista está espraiado entre os jovens eleitores que se uniram em apoio a Kerry. A tarefa dos comunistas para o período que está chegando é transformar essa raiva anticapitalista em consciência socialista.

Erwin Marquitt é professor do instituto de Física da Universidade de Minnesota (EUA) e editor da revista marxista Nature, Society and Thought (“Natureza, Sociedade e Pensamento”). Traduzido por Elias Jabbour e Pedro Mezgravis, mestrandos do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da USP.

EDIÇÃO 76, DEZ/JAN, 2004-2005, PÁGINAS 59, 60, 61, 62, 63