Há quatro séculos um cavaleiro com o olhar preso nas estrelas e a lança sempre pronta ao combate, ladeado de um escudeiro de pés bem atados ao chão, cavalga pela vastidão dos continentes e do pensamento.

Como bem disse o erudito escritor Otto Maria Carpeaux, “os ideais extravagantes” e o poder de imaginação tresloucado do Quixote em contraste com o realismo da gente simples que simboliza Sancho dão à obra um humorismo irresistível de tal maneira que o Dom Quixote “conservará para sempre suas duas classes de leitores: as crianças, que ainda não conhecem a vida, e outros, duramente experimentados por ela”.

Segundo a Unesco, Dom Quixote de la Mancha, um dos cânones da literatura universal, obra-prima do espanhol Miguel de Cervantes Saavedra, que, em janeiro último, completou 400 anos de sua primeira publicação, é um dos livros mais traduzidos até hoje.

Este dado é apenas um dos sinais de sua repercussão no âmbito da cultura mundial. Considerado um marco fundador do romance moderno, seus ecos transcendem a literatura, estentendo-se ao resto das formas de manifestações artísticas. O belo quadro de Candido Portinari estampado na capa desta edição de Princípios é apenas um indício de suas ressonâncias em nosso país.
Para além da arte, a sociologia, a filosofia, a ciência política, dentre outras, muitas esferas da produção intelectual, ao longo do tempo, dialogam com a obra de Cervantes.

Ilustrativo dessa afirmação foi o fato de um dos principais eventos do V Fórum Social Mundial, recentemente realizado em Porto Alegre, em janeiro de 2005, ter sido uma conferência que debateu Dom Quixote à luz da “utopia e da política”.

Dada essa influência que persiste e que continua a se esparramar, em inúmeros países realizam-se variadas atividades comemorativas deste quarto centenário do Dom Quixote. Sucedem-se, nos diferentes idiomas, novas edições e adaptações.

É auspicioso que nesta quadra histórica – de retrocessos e iniqüidades – uma obra de arte de fina qualidade estética e densa de valores humanísticos seja assim enaltecida em várias partes do mundo.
Vive-se um tempo em que a singularidade e a beleza cultural de cada povo, base da diversidade e riqueza do acervo cultural da humanidade, são poluídas ou pressionadas ao desaparecimento pela estratégia de dominação ideológica e mercadológica da globalização neoliberal. Presencia-se, ainda, a ciência sob o cerco de uma onda obscurantista que se alastra.

Neste contexto, simultaneamente em que se rejeita a avalanche da indústria “cultural” do imperialismo que impõe “obras de brilho intenso, mas falso”, ressalta-se que a originalidade e a criatividade da cultura brasileira sempre se enriqueceu e continuará a se enriquecer interagindo com a cultura de outros povos, assimilando criativamente os aportes estéticos, técnicos e humanísticos de obras como a de Cervantes.

O movimento transformador e o pensamento progressista, sobretudo agora, quando as contradições e os paradoxos do capitalismo trazem, novamente, a barbárie à cena da história, precisam mais do que nunca valorizar o papel indispensável da cultura e da arte na jornada libertária dos trabalhadores e da humanidade.

É importante ao pensamento avançado que o cavaleiro cativo das estrelas, da imaginação, afeito ao combate e indignado ante as injustiças, e o seu leal e simples escudeiro, amante da realidade e conhecedor de sua dureza, continuem a cavalgar pelos domínios da subjetividade humana. Essa dialética encerra a própria essência da prática transformadora.

Os Editores

EDIÇÃO 78, ABR/MAI, 2005, PÁGINAS 3