Depois da queda do Muro de Berlim, a teoria social predominante praticamente aboliu a palavra capitalismo de seu dicionário. É como se a vitória sobre o socialismo tivesse, num mesmo golpe, tornado inútil o conceito que designava o sistema triunfante. Trata-se de um estranho jogo dialético: o caráter histórico do capitalismo – afirmado por estudiosos mais autorizados como Marx, Weber, Fernand Braudel e Polanyi – é eternizado numa tosca manobra de “naturalização” das relações sociais e econômicas.

A operação ideológica dá um passo atrás e promove a re-identificação do capitalismo ao mercado, à liberdade de contrato e à desimpedida circulação de mercadorias, incluída a força de trabalho. Isto pressupõe a supressão dos processos de controle e de subordinação de classe implícitos na constituição e desenvolvimento do regime do capital.

No imaginário social, ressurge a figura de um sujeito, funcionalmente adequado às exigências de operação da máquina econômica. Trata-se do renascimento do homo oeconomicus, a invenção triunfante da filosofia radical e da economia política do século XVIII, que postulavam o ser social reduzido às determinações da satisfação dos desejos através de uma razão viciada em adequar os meios aos fins.

A Economia Política buscava e busca apresentar esta sua construção, o ser racional, calculador e egoísta como fundamento da sociedade, definida como a agregação destes indivíduos atomizados. São naturais e, portanto, incontornáveis, as leis que induzem todo o indivíduo à troca e o submetem ao veredicto da concorrência, ao julgamento impessoal e imparcial do mercado, entendido como lócus de conciliação dos egoísmos privados.

O capitalismo ressurgente teve sucesso na empreitada de “re-naturalizar” os nexos monetários e mercantis e apresentá-los como as condições para se alcançar simultaneamente a Liberdade, a Igualdade e a fruição da máxima Utilidade para todos.

Mas a crítica da Economia Política se recusa a conceituar o capitalismo como um regime de produção cujo objetivo é, apenas, a produção de mercadorias mediante a exploração e submissão da capacidade de trabalho dos produtores diretos. Em sua metamorfose o capital está obrigado a passar necessariamente pelo calvário da produção material e da exploração da força de trabalho com uma única finalidade: a acumulação de riqueza abstrata, encarnada no dinheiro.

A dinâmica do capital

Marx, como Keynes, desvendou no capitalismo a possibilidade do “amor ao dinheiro” estimular o desvario da produção da riqueza abstrata desvencilhada dos incômodos materiais da produção de mercadorias. Para eles, tal ambição não é o sintoma de deformação, mas de aperfeiçoamento da “natureza absurda” do processo de acumulação de capital, sempre pronto a realizar a abstração de suas própria formas particulares. D-D’ e não D-M-D’ é o processo em estado puro, adequado a seu conceito, livre da ganga da materialidade.

O surgimento do capitalismo é uma novidade histórica radical. Por um lado, engendra um processo econômico e formas de sociabilidade cujo desenvolvimento liberta a vida humana e suas necessidades das limitações impostas ao homem pela natureza. Por outro, constitui relações de produção, estruturas técnico-econômicas e formas de convivência que aparecem e agem sobre a cabeça dos protagonistas da vida social como forças naturais, fora do controle da ação humana. A “artificialização” da economia e da sociedade se acelera entre o final do século XIX e os primórdios do século XX.

Neste período, ocorreram importantes transformações no núcleo de articulações do capitalismo constituído: 1) a consolidação das práticas de financiamento e de pagamentos internacional, sob a égide de um padrão monetário universal; 2) a metamorfose do sistema de crédito – expressa no aparecimento dos bancos de depósito que ajustam suas funções e formas de operação à nova economia comandada pela indústria; 3) a emergência de uma nova divisão social do trabalho, consubstanciada na crescente separação técnica e econômica entre o departamento de meios de consumo e o departamento de meios de produção; 4) a internacionalização capitalista sob a hegemonia inglesa produz a industrialização dos EUA e da Europa e, simultaneamente, a Periferia produtora de matérias-primas e alimentos.

A diferenciação técnica do produto entre os setores que produzem bens de consumo e os que geram os meios de produção – destinados diretamente para a acumulação produtiva criou os elementos materiais adequados para o movimento incessante da acumulação e para a reprodução das relações sociais capitalistas. A partir da separação entre meios de produção e meios de consumo, o progresso técnico torna-se inerente ao desenvolvimento das forças produtivas. Assim, o capital desembaraça o movimento da acumulação produtiva e o consumo das massas assalariadas dos condicionantes “naturais” e limites externos à sua expansão, subordina de forma real a força de trabalho, transformando o trabalhador num apêndice do sistema de máquinas e, finalmente, prepara as condições técnicas e econômicas para o progresso industrial das nações retardatárias.

Na órbita monetário-financeira, o desenvolvimento da economia capitalista suscitou, por um lado, a subordinação do sistema de crédito à lógica da acumulação produtiva e, por outro, ensejou a possibilidade de expansão autônoma do capital fictício, matriz dos episódios especulativos e das crises de crédito. Depois da revolução industrial, com a aceleração dos negócios, os bancos ingleses ampliaram as operações de desconto mercantil, ampliando sua função de provedores de crédito internacional. Já nos Estados Unidos e na Alemanha, os sistemas bancários operaram, sobretudo, na antecipação de capital monetário para os novos negócios.

O processo de reprodução capitalista – em suas indissociáveis dimensões material e monetária – impôs, portanto, a consolidação do sistema bancário – incluído o banco central – e sua dominância na hierarquia de poderes que comandam a concorrência entre as empresas. O negócio especializado do dinheiro e do crédito foi delegado pelo conjunto do estrato mercantil-capitalista ao sistema bancário e às demais instituições financeiras.

Em sua forma mais simples, o crédito é uma aposta, sujeita a perdas, no acréscimo de valor a ser criado no processo de produção – entendido como a utilização da força de trabalho assalariada e dos elementos do capital fixo e circulante na transformação de bens – com o propósito de gerar mais dinheiro na venda das mercadorias produzidas.

É essencial compreender que a conservação e reprodução das relações de propriedade e de subordinação da força de trabalho são indissociáveis do caráter monetário da riqueza capitalista. A circulação monetária, a criação de meios de pagamento e a administração da riqueza passam necessariamente pela mediação do sistema de crédito. O circuito Dinheiro-Mercadoria-maisDinheiro descrito de maneira formal no volume I de O Capital, assume, no volume III, a sua natureza coletiva e despótica de comando capitalista sobre as decisões de gasto e de produção, isto é, sobre o emprego e a renda dos despossuídos.

A concorrência sem limites

Nesta economia com grande concentração de capital fixo e dominância dos bancos na intermediação financeira, a dinâmica de longo prazo está fundada na busca do aumento da produtividade social do trabalho, o que, por sua vez impulsiona a competição feroz pela inovação tecnológica incorporada nas novas gerações de insumos e equipamentos.

Essa dinâmica só pode se realizar através da concorrência generalizada que, ao contrário da concorrência perfeita da teoria ortodoxa, não decorre da ação racional dos agentes, mas se impõe sobre eles como uma força externa, irresistível. Por isso é preciso reduzir o tempo de trabalho, inovar para bater o concorrente, buscar novos mercados, tentar ganhar a dianteira sempre, porque é impossível mantê-la.

Nas leis de movimento da economia capitalista estão implícitos os mercados “externos”, as relações de débito e crédito e a existência de mercados encarregados de avaliar diariamente o valor da riqueza. Isto supõe a existência de agentes especializados na avaliação da qualidade dos títulos de dívida e de propriedade, na criação e administração da liquidez e, ao mesmo tempo, capazes de enfrentar uma eventual interrupção na cadeia de pagamentos.

A financeirização não é uma deformação do capitalismo, mas um "aperfeiçoamento" de sua natureza. Aperfeiçoamento que exaspera o seu movimento contraditório: na incessante busca da "perfeição", ou seja, a acumulação de dinheiro a partir do dinheiro – sem a mediação da exploração do trabalho – o regime do capital é obrigado a desvalorizar a força de trabalho e a expandir o capital fixo para alem dos limites permitidos pelas relações de produção.

A “multiplicação” da riqueza no capitalismo corresponde à autonomização das formas particulares de existência do capital em sua trajetória de valorização – capital produtivo, capital-mercadoria e capital monetário. Nascidas da unidade de comando sobre a força-de-trabalho “livre”, estas formas particulares passam a se contrapor umas às outras no metabolismo da acumulação de riqueza abstrata. O capital-monetário autonomizado, o capital a juros impulsiona o avanço da acumulação capitalista, mediante a expansão do crédito. Se movimento cria um estoque de direitos de apropriação sobre a riqueza e a renda da sociedade cuja avaliação em mercados especializados passa a se contrapor ao processo de criação e de realização do valor na esfera produtiva.

A vingança do mercado

No segundo pós-guerra, as práticas do Estado Intervencionista e do Bem-Estar buscaram, mediante a aplicação política de critérios diretamente sociais, encontrar soluções para os problemas da satisfação das necessidades humanas e da vida decente para a maioria, tentando, assim, contrabalançar as condições de existência impostas aos cidadãos pela ratio do capital, cujo único propósito é acrescentar o seu valor.

A relativa calmaria que prevaleceu ao longo das três décadas que se seguiram à II Guerra Mundial deve ser atribuída, em boa medida, a duas características dos sistemas financeiros de então: a prevalência do crédito bancário sobre a emissão de títulos negociáveis (securities) e a chamada “repressão financeira”. Esta incluía a separação entre os bancos comerciais e os demais intermediários financeiros, controles quantitativos do crédito, tetos para as taxas de juros e restrições ao livre movimento de capitais. As crises de liquidez eram mais dóceis às intervenções dos Bancos Centrais.

As políticas anticíclicas da era keynesiana cumpriram o que prometiam ao sustar a recorrência de crises de “desvalorização do capital”. Mas, ao garantir o valor da riqueza já existente, as ações de estabilização ampliaram o papel dos critérios de avaliação dos Mercados da Riqueza nas decisões de gasto de empresas, consumidores e governos.

Nas últimas décadas, o capitalismo empreende um “retorno” ao império da acumulação monetária desimpedida. Provisoriamente encapsuladas por obra e graça da rebelião das massas dos anos 20 e 30, as “forças do mercado” executam a vingança contra os que tentaram domesticá-las. A dominância dos Mercados da Riqueza determinou, ademais, o desenvolvimento das inovações financeiras. As técnicas de proteção mediante o uso de derivativos e a intensa informatização dos mercados permitiram ampliar o volume de transações. Estas massas de capital financeiro estão concentradas sob o comando de grandes investidores institucionais. São fundos de pensão, fundos mútuos e – o último rebento da finança moderna – os fundos de hedge que – operando em vários praças financeiras – usam intensamente o crédito bancário para “alavancar” posições em ativos. Os capitais se movem entre as economias nacionais, na busca de oportunidades de arbitragem ou de ganhos especulativos, sempre envolvendo apostas quanto aos movimentos de preços dos ativos denominados nas diversas moedas.

Este foi o caso da aquisição das empresas estatais nos países emergentes. Os investidores assumiram a crédito posições que eram um múltiplo de seu aporte de capital próprio, na esperança de ulteriores elevações dos preços que promovessem a mega-valorização de seu estoque riqueza.

A experiência da privatização nos países emergentes da América Latina deixou claro que, no auge da bolha, a aquisição de empresas públicas serviu para enfeitar os balanços das matrizes e, assim, assegurar ganhos de capital nas bolsas de valores. Essas características, combinadas com a alavancagem baseada em créditos bancários, explicam o enorme potencial de realimentação dos processos altistas (formação de bolhas), assim como a ampliação das oportunidades de ganhos patrimoniais mediante fusões e aquisições.

Em sua exuberância, esses mercados apresentam grande sensibilidade diante dos riscos associados à flutuação de preços dos ativos e à contração da liquidez: os episódios de euforia e alavancagem excessiva terminariam em crashs espetaculares não fossem as intervenções de última instância dos bancos centrais mais poderosos.

No âmbito da gestão monetária, os cuidados com alternância entre valorização excessiva e desvalorizações catastróficas dos estoques de riqueza, bem como entre as moedas em que estão denominados os títulos de riqueza, transformaram-se na ocupação primordial dos Bancos Centrais.

Assim, o predomínio da lógica financeira determina a subordinação da política fiscal à política monetária. Na prática, isto significa que os Mercados da Riqueza impõem restrições à capacidade de gasto do Estado, mesmo em situações de equilíbrio orçamentário, à exceção do emissor da moeda-reserva.

A nova divisão internacional do trabalho

As transformações financeiras acirraram a concorrência entre as empresas dominantes, com implicações sobre a natureza e a direção do investimento direto estrangeiro e do progresso técnico. Por sua vez, a metástase do sistema empresarial da tríade desenvolvida – particularmente dos Estados Unidos e do Japão – promovereu a ampliação e o redirecionamento dos fluxos de comércio. O comércio intrafirmas, já dominante no pós-guerra, ganhou a companhia do "global sourcing”, fenômeno que está presente nas estratégias de “deslocalização” do investimento manufatureiro ao longo da década dos 90, em benefício das economias asiáticas, a China em particular.

A “globalização americana”, ao operar nas órbitas financeira e produtiva, engendrou dois tipos de regiões: aquelas cuja inserção internacional se faz pelo comércio e pela atração do investimento direto destinado aos setores produtivos afetados pelo comércio internacional; e aquelas que buscaram sua integração mediante a abertura da conta de capitais. Os países cuja estratégia é governada pelo saldo da balança comercial e pela acumulação de reservas "fecham o circuito" gasto-renda-poupança do “sistema americano” ao utilizar as poupanças em dólar para financiar o déficit em conta corrente dos Estados Unidos. Essa dependência recíproca impede que os países asiáticos orientem a aplicação de suas reservas por critérios privados de risco-rentabilidade. Garantem assim uma demanda pela moeda americana que assegura uma certa estabilidade nas taxas de câmbio de suas moedas em relação ao dólar.

A rápida industrialização da China e dos países do Sudeste Asiático está deslocando uma fração importante da demanda global para os produtores de matéria primas e alimentos. Como é de conhecimento geral, a China sustenta um saldo positivo muito elevado (mais de US$ 162 bilhões em 2004) com os Estados Unidos. Mas seu déficit é crescente com o resto da Ásia e com os demais parceiros comerciais. O bloco industrializado da Ásia, sobretudo a China, funciona como uma engrenagem de transmissão entre a demanda gerada nos Estados Unidos e a oferta das economias “exportadoras de recursos naturais”.

Este arranjo internacional não está a salvo de perturbações. Em primeiro lugar, crescem as preocupações com a “generalização” da inflação de ativos. A “exuberância irracional” agora contamina quatro mercados: os de bônus, imobiliários, commodities e os de moedas de países emergentes. Quanto aos riscos de inflação nos preços de bens e serviços, observamos a presença de forças que se movem em sentido contrário: de um lado, a tendência deflacionária dos preços dos produtos manufaturados, por conta do excesso de capacidade à escala global; de outro, a demanda chinesa e as taxas de juros baixas favorecendo a formação de posições especulativas altistas nos mercados de commodities.

As quatro bolhas, a ampliação da posição devedora líquida americana e o risco sempre presente da aceleração inflacionária colocam desafios formidáveis aos Bancos Centrais.
Até agora as políticas monetárias e os arranjos cambiais têm conseguido promover a “fuga para frente” no afã de manter sob controle os Mercados da Riqueza e, ao mesmo tempo, sustentar as taxas de crescimento da economia global.

Sob o crescente predomínio dos Mercados da Riqueza a incorporação do consumo individual à dinâmica do novo capitalismo tornou-se crucial para as perspectivas de crescimento. Não se trata apenas da completa sujeição das “necessidades” aos imperativos da mercantilização universal. No capitalismo avançado norte-americano, o circuito riqueza-renda-consumo começa com a valorização fictícia do patrimônio das famílias, passa pela produtividade e pela poupança dos trabalhadores asiáticos e facilita o crédito barato aos consumidores. Ao fim e ao cabo, o circuito riqueza-consumo “libera” uma fração crescente do poder de compra das famílias de renda média e baixa para o endividamento enquanto os que estão no topo da pirâmide, os credores líquidos se apropriam da valorização da riqueza financeira.

No mundo em que mandam os mercados da riqueza já produzida, os vencedores e perdedores se dividem duas categorias sociais: os que, ao acumular capital fictício, gozam de “tempo livre” e do “consumo de luxo”; e os que se tornam dependentes crônicos da obsessão consumista e do endividamento, permanentemente ameaçados pelo desemprego e, portanto, obrigados a competir desesperadamente pela sobrevivência. Esses controles suaves e despóticos foram se apoderando das mentes e das almas, apresentados como a prova da soberania do indivíduo.

No capitalismo revigorado do novo milênio, a acumulação de riqueza monetária – mediante a competição feroz entre empresas, Estados e indivíduos – subordina as demais instâncias de integração social. As relações entre o Político e o Econômico estão configuradas de modo a remover quaisquer obstáculos à expansão da grande empresa e do capital financeiro internacionalizado, apoiados na força militar e política do Estado Imperial. Este jogo pressupõe, portanto, a violação permanente e sistemática de todas as regras.

Na esfera jurídica, esse fenômeno se apresenta como a imposição da exceção permanente, da consolidação da lei do mais forte, para desgosto dos que se imaginam descendentes do Iluminismo e de seu projeto de liberdade e igualdade.

Luiz Gonzaga de M. Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.

EDIÇÃO 79, JUN/JUL, 2005, PÁGINAS 12, 13, 14, 15, 16, 17