O deputado federal pelo PCdoB/SP, ex-presidente da UNE, Aldo Rebelo, foi eleito para a presidência da Câmara dos Deputados. A disputa foi acirrada entre a base de apoio do governo Lula e dos setores conservadores capitaneados pelo PSDB-PFL. Pela primeira vez em nossa história um comunista ocupa função tão relevante no Estado. Aqui, Rebelo fala sobre os desafios da Câmara neste momento e a situação do país.

O senhor se elegeu com o compromisso de assegurar a independência da Câmara dos Deputados e de empreender uma relação harmônica deste poder com os demais poderes e, sobretudo, de recuperar a autoridade política da Casa. Como tornar realidade esses compromissos nos curso dessa acirrada luta política que rege a vida política nacional?
Aldo Rebelo — A harmonia e a independência são preceitos da Constituição, porque a Câmara dos Deputados é a casa da representação do povo, portanto, precisa de independência para o exercício da soberania da representação popular. Mas ao mesmo tempo é um poder do Estado, sendo este constituído em função dos interesses nacionais e dos interesses da população. Não há como deixar de se considerar que os poderes de Estado tenham como objetivo a busca do bem comum e é em busca dessa finalidade que se estabelece o princípio da harmonia. O fato de o Brasil ser uma sociedade plena de desigualdades e de deformações exige de quem dirige o Poder Legislativo atividade suficiente para conduzir a combinação desses princípios, preservando a sua independência quando isso corresponder aos interesses da nação e da população e buscando a harmonia quando esses interesses assim exigem.

Sua eleição se deu num cruento confronto entre a oposição e as forças aliadas do governo na Câmara. Em que medida sua gestão de presidente poderá contribuir para superar a instabilidade política e conter a investida da oposição contra o governo?
Aldo Rebelo — O Brasil é um país ordinariamente instável. Quando digo ordinariamente, digo no sentido da expressão usada por Graciliano Ramos de algo normal, previsível e rotineiro. A instabilidade tem como causa os desequilíbrios do país, desequilíbrios regionais, sociais, econômicos, culturais, desigualdades, injustiças… E todas as pressões de uma sociedade desequilibrada recaem naturalmente sobre as instituições do Estado. O Executivo, o Legislativo, o Judiciário e demais instituições.
A história do Brasil é o retrato mais eloqüente dessa instabilidade, visto a olho nu, das crises institucionais sucessivas que se arrastam desde a Independência do Brasil. Basta registrar que o condutor da nossa Independência, seu ideólogo e chefe político, José Bonifácio de Andrada e Silva, foi vitorioso em 7 de setembro de 1822 e em novembro já estava fora do poder — em março do ano seguinte estava exilado. O marechal Deodoro da Fonseca liderou uma rebelião cívico-militar para destronar o imperador Pedro II, em seguida baniu a família real sem dar um único tiro, demonstração de sua autoridade na liderança daquele movimento. Eleito primeiro presidente constitucional do Brasil, durou um ano no poder e a despeito de sua grande coragem pessoal foi obrigado a renunciar, passando seu posto ao seu vice, Floriano Peixoto, que governou o restante do mandato sob guerra civil.
Getúlio Vargas, considerado por um embaixador britânico a maior raposa política do Ocidente, foi levado a dar-se um tiro no peito em agosto de 1954. Dez anos depois o presidente João Goulart foi deposto e o próprio general Geisel, o mais importante presidente do período militar, teve de enfrentar uma crise palaciana e fechar o Congresso Nacional por ter perdido uma votação no chamado Pacote de abril. O presidente Fernando Collor foi apeado do poder num processo de impedimento e o presidente Fernando Henrique Cardoso usou os meios que todos conhecem para ganhar sua reeleição.
Portanto, falar de instabilidade no Brasil é falar de algo quase que cotidiano, permanente, e o nosso desafio é ter noção desse processo e buscar superar as causas que provocam essa instabilidade. Mas, muitas vezes, o que fazemos é combater suas conseqüências. É como tentar consertar a imagem deformada de um objeto no espelho, ou seja, o Brasil precisa consertar o objeto, precisa reformar o país, torná-lo mais justo, mais democrático e mais independente. Porque se trata da nossa democracia ainda em construção. A nossa sociedade dividida em abismos — a separar os mais ricos dos mais pobres — e a nossa fragilidade nacional estão na raiz da instabilidade que enfrentamos.

Como a Câmara pode funcionar para corrigir essa imagem deformada do país?
Aldo Rebelo — A Câmara é a representação de todos esses desequilíbrios. Nela está a representação dos trabalhadores sem-terra; dos grandes empresários rurais; dos grandes interesses econômicos; dos funcionários públicos, dos setores médios da sociedade e até para a parcela que cultiva ainda a idéia de que o Brasil não tem vocação para grandeza no cenário mundial. A política oferece a chave para se construir dentro da Casa a maioria que defenda os interesses nacionais, que preserve os interesses do povo e tenha compromisso com a democracia, sem negar à minoria sua expressão, porque ela também representa uma parcela da sociedade.

A “engenharia política” que lançou o seu nome e que regeu sua campanha parece ter produzido, além da vitória como fruto, um novo coesionamento entre o PT, PCdoB, PSB e o início da reaglutinação da base aliada. Essa análise procede?
Aldo Rebelo — Para mim, esse núcleo só pôde se unificar em torno da minha candidatura pela identidade e pelo compromisso que essas forças guardam em sua trajetória. O Brasil não iniciou hoje sua jornada pela democracia, pela liberdade e pelos interesses nacionais e populares. Essa jornada está integrada ao curso da nossa história e essas três forças, com papéis diferenciados em momentos diferentes da vida do Brasil, tiveram um compromisso comum.
Neste momento de crise, no meu entender, esse compromisso comum falou mais alto. E o fato de elas terem apresentado uma candidatura única foi fator decisivo para atrair outros aliados e fazer a campanha vitoriosa. Isso representa uma reaglutinação da base para as votações e para a formação de uma agenda de trabalho?
Aldo Rebelo — No meu entendimento, representa mais um passo na reconstrução dessa governabilidade e esses partidos tiveram um papel fundamental na interpretação do momento político e dos desafios para as forças progressistas no Brasil.

Como o senhor justifica o fato de o terem escolhido, de um partido pequeno como o PCdoB, para ser o candidato que uniria todas essas forças?
Aldo Rebelo — Havia nomes dos três partidos para assumir essa tarefa. No PT, Arlindo Chinaglia (SP), líder do governo, que anunciou sua candidatura; o deputado Sigmaringa Seixas (DF); e os deputados Paulo Delgado (MG) e José Eduardo Cardoso (SP); entre outros. No PSB falou-se nos nomes dos deputados Beto Albuquerque (RS) e Eduardo Campos (PE), e pelo PCdoB aparecia o meu nome. Acredito que talvez tenha pesado o fato de eu ser o mais antigo parlamentar dessas bancadas na Câmara dos Deputados e de ter buscado com determinação a unidade dessas forças para defender os interesses democráticos e populares do nosso país.

Os meios de comunicação destacaram o fato único na história do Parlamento brasileiro de um dirigente do Partido Comunista do Brasil exercer o mais alto posto da Câmara dos Deputados. Que significado tem a eleição de um dirigente comunista para o terceiro cargo na hierarquia da sucessão constitucional da Presidência da República?
Aldo Rebelo — O fato expõe o paradoxo brasileiro, ou aquilo que o Gilberto Freyre traduziu como sendo o país da escassez e dos exageros. Nós temos às vezes a estética da radicalização, do confronto, mas, ao mesmo tempo, no fundo, há a possibilidade da convivência e da plasticidade nas composições políticas e das saídas para a crise. Mesmo quando o enfrentamento é duro e árduo e o conflito de idéias e caminhos políticos ganha radicalidade é possível também obter soluções criativas, que muitas vezes não seriam possíveis nessas democracias antigas, carregadas de regras ortodoxas e sem disposição para a mobilidade como o processo democrático no Brasil.

Esta edição de Princípios procura fazer uma análise mais acurada da crise política. Certa feita o senhor afirmou que a investida da oposição para desestabilizar o governo Lula não era algo novo na história brasileira. Na sua ótica, que motivações de fundo suscitaram essa crise?
Aldo Rebelo — Dei exemplos disso em uma resposta anterior. Só vejo uma explicação possível: os conflitos refletem o choque desses interesses de uma sociedade desigual e desequilibrada, na qual os que não têm nada buscam uma sombra, os que têm alguma coisa procuram mantê-la e os outros que têm muito querem preservar seus privilégios. Para mim, do choque de interesses redundam as crises e as lutas políticas que percorrem o nosso caminho. Algumas correntes de esquerda apontaram como causa da crise a política de alianças do governo Lula.É conhecida sua tese de que pelas características políticas do Brasil, e também pelo perfil do governo Lula, é necessário para a governabilidade a formação de uma base política heterogênea. O senhor continua convicto da correção de sua tese?
Aldo Rebelo — Insisto na tese de que o Brasil não pode ser governado por um único partido. Por ser uma sociedade muito complexa, muito diferenciada, muito diversificada e desigual, por não ter uma sólida tradição partidária, ter mais uma tradição de movimentos que se organizaram no passado para expulsar os holandeses no Nordeste, para fazer a Independência, a República, a Abolição da escravatura, para redemocratizar o país e mesmo para eleger o presidente Lula. Os partidos não têm ainda a grande expressão da vida democrática e da vida política do país. São movimentos às vezes organizados em torno de lideranças e personalidades que cumprem esse papel. É preciso, portanto, construir os partidos, mas não desrespeitar essa tradição — desconhecida por alguns doutrinários e teóricos que podem descrever em longas exposições a natureza dos sistemas políticos da Europa e da América do Norte, mas não compreendem as singularidades da vida política do Brasil.

A oposição se movimenta com agressividade e otimismo para retornar ao Palácio do Planalto em 2006. O senhor acredita na possibilidade de uma nova vitória das forças avançadas do país na sucessão presidencial do ano próximo?
Aldo Rebelo — Toda eleição no Brasil é uma disputa política muito forte, envolvendo articulações ideológicas e partidárias e, no meu entender, nas próximas eleições não será diferente. Quem souber com mais habilidade — no espectro mais progressista e mais conservador — atrair aliados de centro, estará com a possibilidade maior de alcançar a vitória.

Com relação à agenda da Câmara quais os temas prioritários?
Aldo Rebelo — o primeiro desafio é recuperar a credibilidade da Câmara e a confiança da população no Poder Legislativo. Isso não vai acontecer num passe de mágica. Será muito mais resultado de um processo de persistência, de perseverança e de construção com todos os partidos. Se a maioria governista com responsabilidade fala em nome do governo Lula, a oposição governa uma parte importante do país — o PSDB dirige estados importantes como Minas Gerais e São Paulo, o PFL governa a Bahia, por exemplo. Para mim, a produção do trabalho na Câmara deve ser fruto da divisão das responsabilidades entre os partidos e se deve buscar também a retomada da agenda de votações, priorizando temas e assuntos de interesse do país e da população.

Em seu discurso antes da eleição, o senhor se referiu a suas origens sertanejas. Disse que sua própria candidatura já significava muito para um filho de vaqueiro alagoano. Que repercussões podem ter este fato de um “homem do povo” presidir a Câmara dos Deputados?
Aldo Rebelo — O Brasil, como uma sociedade nova, em construção, permite muitas vezes à mobilidade política ser mais rápida que a mobilidade social. Há exemplos ao longo da história de pessoas ligadas ao povo, de origem popular que, pelo caminho da política, ocuparam funções importantes no país — desde Floriano Peixoto, que era mestiço, também alagoano. Isso demonstra ainda a capacidade do nosso povo de enfrentar os desafios da vida e procurar superar as dificuldades e cumprir o seu papel transformador.

Adalberto Monteiro é jornalista e editor de Princípios; Márcia Maria Monteiro Xavier é jornalista, correspondente do portal Vermelho em Brasília. Colaborou a jornalista Rita Polli.

EDIÇÃO 81, OUT/NOV, 2005, PÁGINAS 12, 13, 14, 15, 16