O crescimento da ampla e heterogênea tendência política e social comcaracterística nacionalista, progressista, antiimperialista e antineoliberal na América Latina está entre as grandes novidades da luta de resistência neste início de século XXI.

Seu fortalecimento, se expressa em diversas vitórias eleitorais e no desenvolvimento de um vigoroso movimento social antiimperialista, cujas mais recentes expressões se deram na Cúpula das Américas em Mar del Plata e no Fórum Social Mundial de Caracas.

Na luta de resistência à inequívoca permanência da hegemonia imperialista e neoliberal no mundo atual, o socialismo volta a aparecer com força como alternativa
de fundo ao capitalismo neoliberal – um dado novo, de profundas conseqüências para a luta revolucionária dos povos, que ocorre apenas década e meia após a queda dos chamados regimes socialistas – pelo que muitos defendem esse fato novo como os primeiros passos do início
de um segundo ciclo de luta pelo socialismo (1).

I
A atual tendência progressista na América Latina inaugura-se com a vitória de Hugo Chávez em 1998 na Venezuela – experiência que acaba de completar sete anos –, somada às de Lula no Brasil (2002), Kirchner na Argentina (2003) e Tabaré no Uruguai (2004), e mais recentemente, às de Evo Morales na Bolívia – transcendente fato novo num país marcado pela exclusão da maioria indígena – e de Michelle Bachelet, no Chile, numa importante derrota da direita.

O cenário para 2006 continua tendendo favoravelmente, no geral, às forças progressistas. Serão
mais nove eleições presidenciais até dezembro: Haiti e Costa Rica (fevereiro), Peru (abril), Colômbia (maio), México (julho), Brasil e Equador (outubro), Nicarágua (novembro) e Venezuela (dezembro).
Nelas, destacam-se possibilidades de vitórias no Peru, com o candidato Ollanta Humala, um ex-militar nacionalista e no México, com Lopez Obrador, do PRD, ambos lideres nas pesquisas; no Equador, onde a esquerda e o movimento indígena, em aliança, podem surpreender; na Nicarágua, onde os sandinistas podem retornar ao governo; e na Venezuela onde o presidente Chávez deverá renovar seu mandato.

O caso do Brasil é bastante especial, singular.Afinal, uma vitória das forças de direita no maior país da América Latina revigoraria a Alca, inviabilizaria o Mercosul e a Comunidade Sul-americana das Nações e isolaria experiências como a venezuelana. Os pronunciamentos programáticos da oposição de direita, críticos à política externa atual, não deixam dúvida
nesse sentido. E deixam clara a natureza das tentativas de desestabilização de Lula que, para além de fatores internos, demonstram possuir nítidos fatores exógenos, sendo de interesse direto do imperialismo norte-americano pôr fim ao governo de centroesquerda no Brasil como forma de reverter a tendência progressista na América Latina.

II
A história da América Latina demonstra a existência de ciclos políticos que, de modo geral, se reproduzem por todos os países da região. Começando com a onda independentista do século
XIX, passando pelos governos desenvolvimentistas do pós-1930 até a década de 1950; pelos regimes militares das décadas de 1960 e 1970; pela onda que pôs fim a este período e que fez surgir os governos da redemocratização dos anos 1980; o ciclo dos governos neoliberais dos anos 1990; e, atualmente, o ciclo cuja marca é a ascensão das forças progressistas.
Tais ciclos não surgem ou acabam de forma desconexas uns com os outros: a tendência progressista atual tem forte relação com o esgotamento do ciclo anterior, neoliberal, assim como este surgira do esgotamento da antiga experiência desenvolvimentista.

Mas, seguindo esse raciocínio, há que se perguntar: qual será o próximo ciclo a prosperar na América Latina? O sucesso da atual geração de governos progressistas na consecução das mudanças pode gerar condições para uma transição ao socialismo?

III
Comecemos a responder a essas questões analisando as fortes reações do “lado de lá”, isto é, do imperialismo norte-americano e de seu sistema que, ao contrário do que possa parecer a alguns, não estão inertes ao avanço progressista. Diz a história da América Latina que não convém subestimar a capacidade de reação do inimigo, já que fazê-lo poderia representar graves erros.
A reação imperialista, que se encontra em plena execução, se expressa de formas diversas: através do governo de Washington, nos mercados financeiros, nos think thanks (2), na grande imprensa e também em setores acadêmicos conservadores. Em seu conjunto, denotam uma forte ofensiva, todavia na esfera ideológica, de propaganda, numa espécie de ação preventiva
visando neutralizar a possibilidade de que o ascenso eleitoral das forças progressistas resulte em
mudanças de fundo. No geral, essa reação brada as ameaças de um “neopopulismo”. São vários indícios dessa reação.

O governo dos EUA, mais diretamente, envolve-se em confronto aberto com a Venezuela bolivariana. Por exemplo, mais recentemente, o coordenador dos serviços de inteligência dos EUA, John Negroponte, alertou para “figuras populistas radicais em alguns países que defendem políticas econômicas estatistas”, que representariam assim um risco para a segurança do país, especialmente, disse ele, em assuntos como energia, migração, comércio e drogas (3).

O FMI, por sua vez, cada vez menos solicitado na região, que começa a seguir caminhos próprios ou alternativos de financiamento – como foram as recentes decisões de Brasil e Argentina de se livrarem do monitoramento do Fundo –, publicou em dezembro uma edição especial de sua revista Finanças e Desenvolvimento, totalmente dedicada à América
Latina. O artigo central – “O Ressurgimento da América Latina” – é um resumo de um estudo maior, escrito por uma equipe coordenada por Anoop Singh, diretor do Departamento do Hemisfério Ocidental do Fundo, intitulado Estabilização e Reforma na América Latina. O artigo, fazendo ouvidos moucos à tendência progressista na região, e buscando disputar
seu rumo, propõe, na prática, uma espécie de atualização da agenda de reformas neoliberais, na
qual propõe seis medidas como uma espécie de antídoto ao “neopopulismo”:

a) Reduzir a dívida publica através de altos superávits fiscais, inclusive através do fim das vinculações orçamentárias;
b) reduzir a inflação, com metas de inflação e independência do Banco Central;
c) reformar o setor financeiro acabando com a “ineficiente intermediação financeira” – que, no caso brasileiro, representa acabar com a utilização do dinheiro do FAT pelo BNDES;
d) realizar tratados bilaterais de comércio com osEUA (cita-se o Cafta, da América Central) e buscar mecanismos “para atrair capital externo”, como os tratados bilaterais de investimentos, a exemplo do recém-promulgado pelo Uruguai;
e) utilização “eficiente” dos recursos naturais, para eles ineficientes por serem, em geral, controlado por estatais; f) respeitar os contratos, os marcos regulatórios e a competição.

A revista do FMI traz ainda um curioso artigo de Armínio Fraga – ex-presidente do BC brasileiro sob FHC – intitulado “Na encruzilhada: América Latina deve escolher entre populismo e o aprofundamento das reformas”, no qual isenta, literalmente o “consenso
de Washington” de culpa pela crise da América Latina, pois seriam os países que não teriam “feito a lição de casa”, pelo que, pede uma nova geração de “reformas estruturais”.

Já nos meios acadêmicos, um exemplo da reação neoliberal é o artigo publicado na celebrada revista especializada Foreign Affairs, que na edição de janeiro/ fevereiro, pergunta “Estaria Washington perdendo a América Latina?”. Nele, Peter Hakim, do Inter-American Dialogue “alerta” para o fato de as relações entre os EUA e a região estarem “no mais baixo ponto desde
o fim da guerra fria”, lamentando que “durante um certo tempo pareceu que as Américas se orientavam na direção correta”.

No Brasil, no início de dezembro, a PUC-RJ, berço da ortodoxia que orientou a economia brasileira desde a elaboração do Plano Real, em seminário discutiu num painel coordenado por Pedro Malan e composto por Sebastian Edwards, da UCLA – autor de A macroeconomia do populismo na América Latina –, por Albert Fishlow, da Universidade de Columbia e
por Dionísio Carneiro – da PUC-RJ e um dos líderes do Instituto Casa das Garças, formado por economistas de destaque no governo FHC –, a seguinte questão: “política econômica nos países latino-americanos: ressurgimento do populismo?”. Edwards identifica em “política de elevação irresponsável de salários, proteção à industria, incerteza em relação às regras” (FSP, 04/12/05) os principais sintomas do “neopopulismo”.

Nos “mercados”, veja o caso da Fitch Ratings,
agência de classificação de riscos, que já em setembro lançava um informe especial de seu analistachefe para a América Latina, Roger Scher, intitulado “Eleições latino-americanas: populismo ou reforma?”. Esse mesmo analista, em seminário promovido em Londres em janeiro pela Fitch para “uma platéia de dezenas de investidores e analistas da City londrina”, ao comentar as perspectivas para a eleição brasileira sentenciou: “uma vitória do PSDB poderia ser melhor para o país”. Acrescentou ainda, o “risco” de um segundo mandato de Lula girar a esquerda, com mudanças na economia (4). A edição de uma segunda Carta ao Povo Brasileiro, de perfil desenvolvimentista, em gestação, se consumada, dará razão às “preocupações” do especulador.

IV
Outro aspecto da reação imperialista – à qual o esquerdismo empresta apoio militante – é a tentativa de dividir as forças progressistas em campos distintos, dando ênfase à existência de “duas esquerdas”: uma “responsável”, que respeita as instituições democráticas e o equilíbrio macroeconômico; outra populista e estatista, antiestadunidense e antidemocrática.

É um evidente ato de má-fé. Obviamente, por se tratar de países independentes, com distintas características de formação social e histórica, níveis distintos de complexidade da economia, de herança da experiência neoliberal e, sobretudo, diferenças marcantes na correlação de forças no interior da sociedade não permitem comparações, muito menos exigências de similaridades no enfrentamento do neoliberalismo e na luta por sua superação. Pressupõe apenas a existência de um esquema rígido (ou uma alternativa acabada) que se aplicaria indistintamente a todas as
realidades, o que é absolutamente falso. Afinal, não copiar modelos é uma das grandes lições contemporâneas da esquerda.

A seu modo, diz Hugo Chávez que “não se pode pedir a mim que eu faça o mesmo que Fidel, são circunstâncias distintas; como a Lula não se pode pedir que faça o mesmo que faz Chávez; ou a Evo fazer o mesmo que faz Lula, ou a Kirchner o mesmo que faz Fidel ou Chávez, cada qual tem sua circunstância, mas vamos pelo mesmo caminho, no mesmo rumo e isso que é importante” (5).

V
De fato é possível verificar um fio condutor comum aos governos progressistas na América Latina que, num contexto de resistência, buscam pavimentar o complexo caminho, permeado por manobras táticas, de superação, mesmo que parcial, do neoliberalismo, e na busca de novos rumos, de integração e desenvolvimento. Neste fio condutor, lembra Luis Bruschtein, “tanto Chávez, como Tabaré, Lula, Kirchner e Evo Morales têm buscado políticas similares com relação à Alca, ao FMI, (à critica) ao discurso neoliberal, à sua visão de mundo, à integração regional, aos direitos humanos e aos processos de democratização e inclusão social” (6).

No caso da curta experiência de um governo de centro-esquerda no Brasil, em curso, e alvo de precipitadas frustrações de dez entre dez iludidos ou desavisados, acumulam-se conquistas, apesar dos limites da política econômica: interromperam-se as privatizações, barrou-se a Alca, criou-se o G-20 na OMC, reduziu- se a vulnerabilidade externa, encerrou-se o acordo com o FMI, ainda que sem maioria no parlamento ou na sociedade brasileira. Praticou uma política
externa, no geral, de conteúdo antiimperialista. É preciso avançar mais, na consecução de um projetonacional de feição desenvolvimentista, ativamente sul-americanista, visando acumular forças para romper com o neoliberalismo – tarefa que na quadra atual reveste-se de dimensões anticapitalistas, e, portanto, com sentido estratégico de transição ao socialismo.

De fato, o principal fator inicial em curso na luta por romper como o esquema anterior neoliberal é a marcha acelerada da integração sul-americana, nucleada na aliança tripartite Buenos Aires-Brasília-Caracas. Pois a integração sul-americana nos termos propostos por estes três governos, tem, objetivamente, sentido antineoliberal. A recente adesão da Venezuela ao MERCOSUL e a esperada adesão plena da Bolívia; a resolução do conflito bilateral entre Brasil e Argentina – seqüela da desindustrialização parcial do país vizinho pelas políticas neoliberais –, que travava avanços no bloco, são passos importantes. Outro passo marcado por simbolismo desse modelo de integração solidária, antineoliberal é o anúncio da construção do Gasoduto
sul-americano, obra de integração energética entre Venezuela, Brasil e Argentina, ao qual poderá se somar a Bolívia e outros países.

São medidas que representam um passo inicial
para conformar um mercado interno em escala sulamericana, como uma política industrial que dê vazão à complementaridade das economias sul-americanas através da integração e da especialização das cadeias produtivas, contemplando a reindustrialização de países e regiões do subcontinente e, assim, o combate às assimetrias entre as economias e as regiões na América do Sul.

O avanço dessas políticas é o alvo principal do imperialismo na atual conjuntura, que busca impedi-las ou neutralizá-las, cooptando os vacilantes, como nas ofertas tentadoras de acesso a mercado para os pequenos países – casos recentes do Uruguai e do Paraguai, com a qual os EUA tentam liquidar o Mercosul.

A luta pela integração regional, com sentido de alternativa ao neoliberalismo, têm função estratégica, podendo representar o surgimento de um pólo próprio de poder na América do Sul independente da influência do Norte imperialista. O fato guarda profundas implicações geopolíticas. Assim, a consolidação de uma tendência progressista na América Latina em 2006 poderá repercutir em longo prazo na luta contra-hegemônica em resistência ao mundo unipolar dominado pelo imperialismo estadunidense. A América Latina, na luta por sua segunda independência pode assim demonstrar que o imperialismo e o neoliberalismo podem ser superados e o socialismo voltar à ordem do dia como a alternativa ao atual estado de coisas no mundo.

Ronaldo Carmona é membro da Comissão de Relações
Internacionais do Comitê Central do PCdoB.

Notas
(1) Ver Samir Amim no Portal Vermelho, 02/02/06. Já o cientista político José Luis Fiori, empolgado, chega a defender a tese de que
“neste início do século XXI, está acontecendo algo extraordinário neste continente, talvez uma ruptura revolucionária” (Carta Maior,
09/01/06).
(2) Termo em inglês para Centro de Estudos.
(3) La Jornada, 03/02/2006.
(4) Agência Estado, 18/01/06.
(5) Ato antiimperialista, Poliedro de Caracas, VI Fórum Social Mundial, 27/01/06.
(6) Página 12, 04/02/06.

EDIÇÃO 83, FEV/MAR, 2006, PÁGINAS 58, 59, 60, 61, 62