O estado de São Paulo tem mais de 40 milhões de habitantes – população só superada, na América do Sul, pela Colômbia. O PIB paulista, de R$ 450 bilhões, equivale a um terço do país e é maior do que o de Chile, Venezuela, Argentina ou África do Sul.
Essa pujança econômica e o espírito empreendedor dos paulistas foram celebrados com uma frase emblemática dirigida à Capital, mas que sintetiza o espírito dos bandeirantes: “São Paulo não pode parar!”.

Não podia parar, mas parou. Em 12 de maio de 2006, o estado foi sacudido pela maior onda de ataques do crime organizado de que se tem notícia no Brasil. A sociedade e, em certa medida, o poder público ficaram reféns do crime.

O estopim dessa conflagração foi a transferência de 765 presos, supostamente vinculados à facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), para o presídio de segurança máxima de Presidente Bernardes, distante 600 quilômetros a oeste de São Paulo.
Essa transferência teria sido motivada por rumores de que estaria em gestação uma grande rebelião nos presídios paulistas. O deslocamento de presos provocou o que se queria evitar: a explosão de violência dentro e fora dos presídios.

Imediatamente, o estado virou uma praça de guerra: rebeliões em 80 presídios, dezenas de ônibus incendiados, parte do transporte coletivo suspensa, congestionamentos gigantescos, comércio e escolas fechados, população em fuga para suas residências.

No fim dos combates, a macabra contabilidade dos mortos: 23 policiais militares, 7 policiais civis, 3 guardas municipais e 8 agentes penitenciários. Em represália, 121 “suspeitos” mortos por policias e/ou grupos de extermínio.

O auge do pânico foi na segunda-feira, dia 15. São Paulo parecia um estado-fantasma. À noite, praças e ruas vazias, poucos carros e nenhum ônibus. Viaturas policiais em nervosas rondas noturnas, o medo se espraiando por todo canto.

Na capital paulista – conhecida por noites de intensa agitação – um profundo silêncio se abateu. Nem os conhecidos redutos da boemia funcionaram. Notícias – e boatos – encheram os programas de TV e as páginas da Internet.

Até pequenas cidades, sem registros significativos de violência e criminalidade, foram contagiadas pelo temor geral. A chamada locomotiva do país foi dominada por uma facção criminosa.
Temporariamente refeito do pesadelo, o estado recomeça a funcionar, mas as marcas do caos não conseguem se apagar. Análises sobre a violência e a criminalidade se multiplicam. Opiniões extremadas, o mais das vezes equivocadas, predominam.

No balanço das responsabilidades, os caciques do PSDB, há quase 12 anos governando o estado, refugiaram-se e descarregaram o ônus da crise nas costas do governador Cláudio Lembo.
Curtindo um doce exílio em Nova Iorque, nos Estados Unidos, Fernando Henrique Cardoso e o presidente nacional do PSDB, Tasso Jereissati, interromperam uma reunião de avaliação das dificuldades eleitorais de Alckmin e alfinetaram o atual governador paulista.

Temendo maiores desgastes em sua combalida campanha presidencial, Geraldo Alckmin sorrateiramente procurou dividir as responsabilidades entre o seu sucessor no Palácio dos Bandeirantes, Cláudio Lembo, e o presidente da República.

Já o ex-prefeito de São Paulo, José Serra, mergulhou no mais profundo mutismo e esquivou-se de opinar a respeito dos graves problemas de segurança no estado que ele pretende governar a partir do ano que vem.

Sentindo o golpe, o governador Cláudio Lembro foi para a contra-ofensiva. Agradeceu pela solidariedade prestada pelo presidente Lula e pelo apoio de todos os partidos na Assembléia Legislativa e criticou seus aliados do PSDB.

Surpreendendo por se tratar de uma liderança política do PFL, Lembo colocou o dedo na ferida: atribuiu à “minoria branca” dominante no país e a uma “burguesia perversa” as responsabilidades maiores pelo caos.

Para ele, a “burguesia precisaria abrir a bolsa” para distribuir renda. E questionou a história de cinismo das elites dominantes brasileiras. Como exemplo, citou o fato de os senhores de escravos terem sido indenizados pela abolição, e não os escravos.

Para além das fraturas expostas da coligação conservadora na direção de São Paulo há doze anos, não há como negar que a responsabilidade maior pela segurança seja do estado, embora uma parceria com a União e os municípios seja indispensável.

Um conjunto de medidas econômicas, sociais e especificamente na área de segurança, envolvendo todos os entes federados, é premissa sem a qual nem de longe o problema pode ser resolvido.
Fazer um breve diagnóstico da situação da segurança pública em São Paulo, debater as causas e avançar em propostas de curto, médio e longo prazo são necessidades urgentes que não podem tardar.

Pelo tamanho do estado, os indicadores paulistas da violência e da criminalidade adquirem maior dimensão, embora se possa dizer que os problemas da área nos dias de hoje existem em todos os estados.

O Sistema Prisional Paulista

São Paulo tem 144 presídios, 138 mil detentos, 20.280 agentes de segurança penitenciária e 3.477 guardas de muralha. Doze anos antes, ele possuía apenas 43 presídios e 31.842 detentos.
O número de presos paulistas cresceu mais de 100 mil em doze anos. Para se ter uma idéia do significado disso basta lembrar que cada preso custa ao estado cerca de R$ 10.000,00 por ano. E também há outros 100 mil condenados em liberdade.

A população carcerária do Brasil, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), é de 361.400 (maio/2006). O estado de São Paulo responde isoladamente por quase 40% desse total de presos.

O dispêndio orçamentário para manter tamanha estrutura de segurança é gigantesco. No orçamento paulista de 2006, os recursos para a Secretaria da Segurança Pública, a Secretaria da Administração Penitenciária e a Febem somam R$ 8,3 bilhões.

A estrutura da Secretaria de Segurança Pública conta com 88.271 policiais militares, 35.128 policiais civis e cerca de 4.000 policiais técnico-científicos. Já a Febem tem quase 10 mil funcionários.
A título de comparação, registre-se que os gastos com segurança superam a saúde (R$ 7,5 bilhões) e no total as três universidades públicas paulistas, somadas, têm um orçamento para 2006 de R$ 4,25 bilhões.

A manutenção desse círculo vicioso revelou-se o mais completo fracasso. Cada vez mais aumenta o número de presos e os correspondentes gastos orçamentários na área, sacrificando outros setores vitais para a promoção da justiça social.

Para alguns especialistas, penas alternativas poderiam reduzir o custo do preso em até dez vezes, com a vantagem adicional de que o índice de reincidência despencaria de 42,5% para 17,5%.
Segundo o professor Antônio Flávio Testa, sociólogo da Universidade de Brasília, “o preço que se paga para manter um criminoso na cadeia é altíssimo, reflete o mau uso do dinheiro público”. É uma crítica dura aos pregoeiros do “choque de gestão”.

Na contramão dessa postura, o Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa tem um plano de combate aos homicídios em que “dá prioridade à prisão, medida que diminui a sensação de insegurança, impondo a certeza da punição”.

A violência é um dos mais graves problemas nacionais. Segundo a Secretaria Nacional de Segurança Pública, órgão do Ministério da Justiça, em 2003 o Brasil teve 40.630 homicídios dolosos, média de 23 para cada 100 mil habitantes.

Os números do estado de São Paulo são assustadores. Entre janeiro de 1995 e dezembro de 2004, houve 145.865 mortes violentas. No mesmo período, mais de dois milhões de veículos foram furtados ou roubados.

O crescimento das ocorrências criminais e o aumento da população carcerária atestam a falência da política de segurança pública, colocam em crise estrutural o sistema prisional paulista e exigem reformulações profundas no setor.

Uma medida urgente é o desbaratamento do chamado crime organizado. Diferentemente das bravatas das autoridades de segurança pública, o crime organizado se estruturou em São Paulo nos marcos dos governos do PSDB.

O PCC foi fundado em 31 de agosto de 1993, no presídio de Taubaté, em reação, segundo seus líderes, ao Massacre do Carandiru, ocorrido em 2 de outubro de 1992.
Segundo informações de domínio público, essa organização criminosa tem ramificações dentro e fora dos presídios e em outros estados. Possui um esquema de arrecadação de dinheiro e um aparato jurídico para se defender e se comunicar.

Aproveitando as brechas do sistema prisional – funcionários insuficientes e corrupção – ele conseguiu montar uma rede de comunicação com centrais telefônicas e milhares de celulares no interior dos presídios. Tem organização centralizada, com comando e rigoroso estatuto. Consta que mantém entendimentos com sua congênere carioca, o Comando Vermelho, e sonha em ter uma organização nacional.

A primeira grande exibição de força do PCC foi em 18 de fevereiro de 2001, com a primeira rebelião em série. Dois anos mais tarde, autoridades disseram haver “cortado à cabeça do PCC”, para dar satisfação a uma assustada população.
A rebelião de maio deste ano desmascarou os discursos oficiais do governo do PSDB. Mais forte e organizado do que nunca, o PCC dirigiu uma ação de tal envergadura que nem mesmo os mais pessimistas ousariam sonhar.

A ação dos criminosos e a morte covarde de agentes policiais – parte deles, aliás, de folga – chocaram a população. A omissão da cúpula da Segurança, não alertando seus subordinados das possibilidades do ataque, provocou iradas reações.

Surpreendidos pela ousadia do PCC, os responsáveis pela Segurança no estado levaram o governador a conceder uma confusa entrevista coletiva na qual afirmou tudo estar sob controle. “Controle do PCC”, dizia com amarga ironia o povo.

Os rescaldos pós-rebelião derrubaram o secretário de Administração Penitenciária, Nagashi Furukawa. Tido como humanista e defensor da re-socialização dos presos, foi derrubado pela linha-dura da área.
Segundo Furukawa – ao se defender –, a expansão da criminalidade e o avanço do PCC seriam de responsabilidade da polícia civil, não dele. E, ainda, apesar das rebeliões, nenhum preso fugiu do sistema.

Já o secretário da Segurança Pública de São Paulo, Saulo de Castro, é expoente da linha-dura no governo. Apesar do fracasso de sua gestão, é mantido no cargo. Homem de visão míope e sectária, só enxerga a violência como remédio para o crime.

Causas

As causas da violência e criminalidade no Brasil são muitas e complexas. Respostas simplistas tendem a agravar o problema. É preciso investir mais na prevenção do que na repressão, usar a inteligência policial, não só a força.

É um grave erro dissociar a violência e o crime de suas conexões sociais. O país amarga um quarto de século de crescimento econômico medíocre; e isso agrava todas as desigualdades sociais.
O Estado mínimo dos neoliberais e o esgarçamento do tecido social são caldos de cultura para a proliferação do crime. Um desenvolvimento acelerado e sustentado, apoiado em sólidas políticas sociais, é essencial para enfrentar o problema.

Milhões de moradores pobres das periferias, principalmente jovens, sem emprego, com moradia precária, famílias desestruturadas, sem esperança no futuro, são presas fáceis de criminosos.
De outro lado, a cabeça estruturante do crime precisa de lavagem de dinheiro, contrabando de armas, tráfico de drogas, ligações internacionais – o que só é possível com a cooperação de pessoas situadas no topo da pirâmide social.

O Instituto da Cidadania, incumbido de elaborar o programa de segurança pública do então candidato Lula à presidência, aponta as causas sociais como básicas para a explosão da criminalidade. Caracteriza o tráfico de drogas e o acesso indiscriminado às armas como o coquetel explosivo por trás de boa parte dos homicídios dolosos do país. Descreve os graves problemas na polícia como fator agravante.

A polícia brasileira, mas também a paulista, padece de males da burocracia pesada, desvio de função, salários aviltados, corrupção. Nela predomina uma cultura de guerra. Não há regras definidas para o uso técnico, racional e ético da força policial.

Propostas alternativas

O enfrentamento da violência e da criminalidade requer a ação conjunta do estado e da sociedade. Questão mais de fundo é a necessidade de o Brasil ingressar em um novo estágio de crescimento econômico acelerado.

O país precisa voltar a trilhar o caminho do desenvolvimento, distribuir renda, valorizar o trabalho, investir pesado nas áreas sociais. Nossas periferias precisam de escola, espaços para a cultura, esporte e lazer.

Não podemos deixar a juventude desempregada, sem perspectivas, sem esperanças. Sem a presença ativa do Estado, não há como quebrar a lógica que empurra parcela dos jovens para as mãos dos criminosos.

No plano estrito da segurança pública, alguns consensos vão se formando entre as correntes que encaram o problema de forma progressista. Uma proposta básica é a constituição de um Sistema Único de Segurança Pública.

Esse sistema deveria avançar para uma progressiva integração das polícias federal, estaduais e municipais, acabar com a dualidade das polícias militares e civis, unificar as academias e escolas de formação.

Nesse rumo, é vital ter um órgão integrado de informação e inteligência policial; remunerar adequadamente e garantir a integridade física dos agentes policiais; fortalecer o policiamento comunitário com maior integração com a sociedade; mudar os regulamentos das polícias militares; diminuir os graus atuais da hierarquia; reduzir as funções administrativas; controlar o uso de força letal; e desvincular os Detrans das polícias civis e os bombeiros, das polícias militares.
O Brasil precisa de uma nova política nacional de segurança pública. No regime militar, a base dessa política era a doutrina de segurança nacional, para a qual existia um “inimigo” interno que precisava ser combatido.

Com a democratização não se avançou na formulação dessa política e o debate a respeito da segurança pública ficou polarizado entre os chamados defensores da linha-dura e os ativistas dos direitos humanos.

Os primeiros sempre apontam remédios conservadores ou reacionários para uma doença que não pára de se agravar. Apóiam a violência policial, defendem a pena de morte e rebaixamento da maioridade penal.

Já os defensores dos direitos humanos preconizam controles democráticos para a ação policial e para a guarda dos presos, sem avançar na formulação de propostas concretas para a segurança.
A realidade mostra que o combate ao crime organizado precisa ser duro e implacável, mas respeitando o Estado de direito democrático. A ação policial não pode tratar pobres e negros como suspeitos, alimentando um preconceito multiplicador da violência.

O Estado precisa exercer o monopólio legítimo da força contra o crime, não contra o povo. E as massas não-assistidas precisam do poder público que a eles leve bem-estar social e qualidade vida. A polícia deve ser elemento de sua segurança, não de ameaça.

Nivaldo Santana é deputado estadual do PCdoB/SP.

Fontes:
Projeto Segurança Pública para o Brasil – Instituto Cidadania – Fundação Perseu Abramo.
São Paulo – realidade e perspectivas – Instituto Maurício Grabois – Anita Garibaldi.
Departamento Penitenciário Nacional.
Anuário 2004/2005 – Polícia Civil do Estado de São Paulo – Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa DHPP.
Diagnóstico da Segurança Pública no Estado de São Paulo – 1995/2005 – deputado estadual Vanderlei Siraque (PT/SP).

EDIÇÃO 85, JUNHO, 2006, PÁGINAS 31, 32, 33, 34, 35