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    Comunicação

    Improviso 1982

    Não faltou pão na minha mesa hoje, antes a mulher, diligente, nos alimentou com sopas e preencheu nossa alma com queijos, patês e frutas da estação. Ninguém assaltou minha casa hoje ou violou o corpo de minhas filhas. O revólver dorme na gaveta ensarilhado como um cão de aço. Há pouco era Vivaldi, agora esse […]

    POR: Redação

    2 min de leitura

    Não faltou pão na minha mesa hoje, antes
    a mulher, diligente, nos alimentou com sopas
    e preencheu nossa alma com queijos, patês
    e frutas da estação.

    Ninguém assaltou minha casa hoje
    ou violou o corpo de minhas filhas. O revólver
    dorme na gaveta ensarilhado como um cão de aço.

    Há pouco era Vivaldi, agora esse concerto de Mozart.
    Mas os desempregados do mês se metem entre a harpa
    e a flauta e gritam, gritam, gritam
    e queimam ônibus em plena sala.

    Quantos desempregados posso empregar
    com meu afeto? Quantos desempregados
    na área do ABC e fora do alfabeto?

    Tenho um diploma, suado é verdade.
    Subo a serra, tenho uma casa de campo
    e na neblina me iludo que não me acharão
    os revoltados. Subo ávido, de carro,
    a 100 ou 120 por hora.

    Meu vinho custa o dobro
    de um ano atrás.
    Na minha horta tenho alguns legumes
    e remorsos.
    Me sinto rico por ter dois pares de sapato
    e dois olhos encharcados de impotência.

    Os que faziam versos pela paz na década de 40
    julgavam que teríamos o quê, nesses 80?
    O que dizer a Éluard, Neruda, Sandburg e Lorca
    do nosso impasse?

    O adágio de Mozart de novo atravessa-me a sala
    e o poema, e depois que Segóvia emudeceu suas cordas.

    Os pobres, no entanto, continuam
    espalmando a fome na vidraça.

    Se eu repartisse o pão com esses milhares
    não chegaria a alimenta-los e ficaria faminto
    e pobre, embora com a consciência aliviada.

    O concerto de Mozart em minha sala
    e o desconcerto do mundo a me executar.

    Não, ninguém assaltou minha casa hoje
    ou violou o corpo das minhas filhas, e o revólver
    dorme na gaveta ensarilhado como um cão de aço.

     

    O Lado Esquerdo do Meu Peito (Livro de aprendizagens) – Affonso Romano de Sant’ Anna
    Editora Rocco Ltda 1992.
    Digitação Camila Ferreira.

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