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    Pedra de Sol

    (…) amar é combater, se dois se beijam o mundo é outro, encarnam-se os desejos, o pensamento encarna, brotam asas no torso curvo de um escravo, o mundo é real, tangível, o vinho é vinho, o pão volta a ter gosto, a água é água, amar é combater, é abrir portas, deixar de ser fantasma […]

    POR: Octavio Paz

    3 min de leitura

    (…)
    amar é combater, se dois se beijam
    o mundo é outro, encarnam-se os desejos,
    o pensamento encarna, brotam asas
    no torso curvo de um escravo, o mundo
    é real, tangível, o vinho é vinho,
    o pão volta a ter gosto, a água é água,
    amar é combater, é abrir portas,
    deixar de ser fantasma com um número
    a uma prisão perpétua condenado
    por um amo sem rosto;
                          

    o mundo é outro
    se dois se olham e se reconhecem,
    amar é desnudar-se sem os nomes:
    "quero ser tua puta”, são palavras
    de Heloísa, mas às leis ele cedeu,
    tomou-a por esposa e como prêmio
    castraram-no depois;
                     
    melhor o crime,
    os amantes suicidas, o incesto
    dos irmãos que eram como dois espelhos
    de sua semelhança enamorados,
    melhor comer um resto de pão tóxico,
    o adultério consumado entre cinzas,
    os amores ferozes, o delírio,
    a hera peçonhenta, o sodomita
    que na lapela leva como cravo
    uma cuspida, melhor ser lanhado
    pelas praças que dar voltas à nora
    que bem expressa a substância da vida,
    a eternidade muda em horas ocas,
    os minutos são cárceres, o tempo
    são moedas de cobre, merda abstrata;

     melhor a castidade, flor invisível
    que talhada se agita no silêncio,
    o diamante difícil dos santos
    que filtra os desejos, sacia o tempo,
    núpcias de quietude e movimento,
    canta a solidão em sua corola,
    pétala de cristal é cada hora,
    o mundo das máscaras se despoja
    e em seu centro, vibrante transparência,
    o que chamamos Deus, o ser sem nome,
    contempla-se no nada, o ser sem rosto
    emerge de si mesmo, sol de sóis,
    plenitude de essências e de nomes;

    sigo meu desvario, quartos, ruas,
    caminho a cegas pelos corredores
    do tempo e subo e desço seus degraus,
    suas paredes toco e não me movo,
    volto onde comecei, busco teu rosto,
    caminho pelas ruas de mim mesmo
    sob um sol sem idade, e tu a meu lado
    caminhas e me falas como um rio,
    como uma espiga entre minhas mãos cresces,
    como um esquilo entre minhas mãos ardes,
    como mil pássaros voas, teu riso
    cobriu-me de espumas, tua cabeça
    é um astro pequeno entre minhas mãos,
    o mundo reverdece se sorris
    comendo uma laranja,

    muda o mundo
    se dois, vertiginosos e enlaçados,
    caem sobre a grama: abaixa-se o céu
    e as árvores ascendem, o espaço
    só é luz e silêncio, só espaço
    aberto para as águias dos olhos,
    a tribo lívida das nuvens passa,
    amarras rompe o corpo, a alma zarpa,
    perdemos nosso nome e flutuamos
    à deriva soltos entre verde e azul,
    tempo total onde nada acontece
    afora seu transcurso afortunado,
    (…)

     

    Pedra de Sol
    Octavio Paz
    Tradução de Horácio Costa
    Editora Guanabara – edição 1988

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