Histórica, transformadora, inédita: muitos são os adjetivos utilizados para explicar a eleição presidencial dos Estados Unidos em 2008, quando Barack Obama, do partido democrata, sagrou-se vitorioso frente a seu oponente republicano John McCain, em uma campanha sustentada em slogans de mudança e renovação. À luz de oito anos de Era Bush neoconservadora, de um pesado legado interno e externo, a chegada de Obama a Washington deu-se antes mesmo de sua posse em Janeiro de 2009. Na madrugada de Chicago de 4 para 5 de Novembro de 2008, recém-eleito, ele se dirigiu a seus eleitores como presidente, antecipando, em tempos de crise, sua posse, ainda que não oficial, mas virtual, da Casa Branca.

Sem a vantagem do tempo e da trégua até Janeiro, Obama iniciou a rápida montagem de seu gabinete, amparado por mais de 66 milhões de votos populares, 53%, traduzidos em 365 votos no Colégio Eleitoral, diante de 47% de votos republicanos, 173 no Colégio, quase 59 milhões de eleitores. Além disso, os democratas ampliaram a maioria conquistada em 2006 para o Senado e a Câmara. Em 2008, em resultados não finalizados devido a problemas de recontagem de votos e novas eleições, de 435 cadeiras na Câmara os democratas possuem 256 contra 175 republicanas e, no Senado, 56 contra 40, mais 2 independentes que tradicionalmente votam com os democratas Joe Lieberman (nas eleições apoiou McCain e para 2009 permanece indefinido como aliado ou opositor) e Bernie Saunders. Mesmo possuindo a maioria que lhes garante a aprovação de legislação nas duas casas se mantiverem o partido unido, os democratas não atingiram, sozinhos, 60 cadeiras no Senado que poderiam bloquear os fillibusters republicanos (obstruções em forma de discursos que permitem à oposição certo controle das votações). No âmbito dos governos estaduais, mais vitórias, permitindo a solidificação da maioria (29 contra 21 republicanos).

A América parece ter votado pela mudança, apostando em sua capacidade de reinvenção e seu excepcionalismo. Como bem disse Obama em seu primeiro discurso como presidente eleito, “Somos, e sempre seremos, os Estados Unidos da América”. Com o novo presidente e sua equipe, o país real chega a Washington como reflexo de sua multiplicidade de cores, crenças e raças e que gera, a partir de sua diversidade, a sua força. Mas são estes os EUA que emergem com a vitória de Obama?

América Vermelha, América Azul

Tradicionalmente, as linhas de fratura norte-americana são as da América Vermelha e as da América Azul. Separadas por valores, por perfil étnico e religioso, pelo rural e o urbano e pelo antigo e o moderno, ambas as linhas representam Estados e populações com diferentes expectativas e níveis de desenvolvimento. Os democratas conquistaram maciçamente os votos da America do Azul progressista, o eleitorado branco jovem e de meia idade, urbano e universitário, associado ás linhas mais liberais e seculares e às minorias negra e hispânica. Obama avançou em alguns estados “ de batalha” (battleground) como Florida, Indiana e Pensilvânia (nos quais a participação de Hillary Clinton foi essencial para a migração dos e média baixa) que possuíam uma tendência pró-republicana, assim como em localidades como Carolina do Norte, ligadas à visão vermelha. McCain, por ambas as linhas representam Estados e populações com diferentes expectativas e níveis de desenvolvimento. Os democratas conquistaram maciçamente os votos da América Azul progressista, o eleitorado branco jovem e de meia idade, urbano e universitário, associado às linhas mais liberais e seculares e às minorias negra e hispânica. Obama avançou em alguns estados “de batalha” (battleground) como Flórida, Indiana e Pensilvânia (nos quais a participação eleitores brancos, homens indecisos de classe média sua vez, centralizou sua vitória nos estados do Sul e em redutos do partido republicano no meio-oeste, somado ao Alaska de sua vice Sarah Palin.

Obama ganhou com margem significativa de votos. Embora alguns definam a conquista como um landslide, uma avalanche de votos (“uma lavada”), é preciso matizar este otimismo. Pode-se indicar que Obama conquistou um landslide parcial por consolidar o poder democrata e energizar suas bases e pela penetração em fronteiras significativas da América Vermelha e dos Battleground States, associado à ampliação das conquistas legislativas. Porém, um importante alerta não pode ser ignorado: as mesmas forças neoconservadoras que sustentaram a presidência W. Bush em seus dois mandatos, garantindo-lhe a conturbada vitória de 2000 e a reeleição de 2004, mantêm-se ativas e isso se refletiu na preservação de seus espaços tradicionais e no surgimento de lideranças jovens como Sarah Palin e Mike Huckabee, azarão à corrida presidencial e que conquistou votos importantes nas primárias do partido deixando para trás favoritos como Mitt Romney e Rudy Giuliani.

Tais forças, em diversas profundidades de conservadorismo, ainda se manifestaram nos plebiscitos (ballot measures) que foram realizados simultâneos às eleições. Medidas como a preservação irrestrita dos direitos de aborto e da ação afirmativa foram aprovadas por pequena margem, somada às pesquisas com células-tronco, mas visões sociais progressistas como casamento de pessoas do mesmo sexo (e o direito à adoção de crianças por casais homossexuais) não passaram pelo crivo do eleitor. A derrota mais significativa foi na Califórnia, origem dos movimentos de direitos civis e sociais, com 62% do eleitorado rejeitando o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Foram estas correntes que, ao longo de toda a administração democrata de Bill Clinton, exerceram pressões no Executivo de forma direta e indireta. As pressões emanaram da mídia, de grupos de interesse e think tanks, gerando documentos como o Project for the New American Century (PNAC), base da futura Doutrina Preventiva inspirada no anterior Defense Planning Guidance, diretrizes valorativas simbolizadas no Ato Patriota e retrocessos na luta por direitos sociais e civis na presidência Bush, sendo o maior símbolo deste esforços o processo de impeachment contra Clinton.

O “Obama 2008” deve ficar atento para não repetir o “Bush 2004”: considerar que sua vitória foi incondicional e de mandato amplo, a despeito disto se refletir quantitativamente, buscando uma avaliação mais qualitativa dos conflitos subjacentes. Estes conflitos possuem dinâmicas entre e intrapartidárias. A primeira destas é entre liberais e conservadores pela hegemonia da política doméstica, representada pelo embate entre os partidos majoritários democrata e republicano. Trata-se de uma divisão conhecida que opõe, respectivamente, os defensores do grande e do pequeno governo, do aumento ou corte de impostos, dos direitos sociais e civis às restrições e menores avanços, da secularização e da religião e valores. Estas grandes linhas ideológicas trazem em si importantes diferenças que nos levam à segunda dinâmica, a do conflito intrapartidário.

Internamente, os desacordos entre moderados e radicais são constantes, o que, inclusive, é um fator que dificulta a solução da primeira dinâmica à medida que os partidos não conseguem sustentar frentes unidas. Não se reproduz um consenso bipartidário no topo, o que levou à eliminação do centro moderado que combinava correntes democratas e republicanas, e acentuam-se as oscilações.

Do lado democrata, isto pode ser percebido no encolhimento do partido de 1994 a 2006 devido aos avanços neoconservadores, polarizando suas visões entre os “clintonistas”, definidos como democratas de centro, e os liberais. Nas primárias de 2006-2008 isto se refletiu nas candidaturas Hillary Clinton e Barack Obama. Até admitir sua derrota e subir ao palanque de Obama, a campanha de Hillary não deixou nada a desejar aos estrategistas republicanos em suas críticas à inexperiência e ao caráter dos discursos de seu oponente (a mudança à la carte). Este racha posteriormente demandou grandes compromissos entre ambos para enfrentar a campanha nacional e até mesmo, pode-se supor, concessões aos Clinton como se percebe no futuro gabinete com Hillary à frente do Departamento do Estado e Jim Jones no Conselho de Segurança Nacional. Timothy Geithner, Larry Summers e Paul Volcker, como nomes-chave na recuperação da economia, e Bill Richardson no Departamento de Comércio surgem como elementos de continuidade não só da Era Clinton, mas de governos anteriores, incluindo a permanência de Robert Gates à frente do Departamento de Defesa, trazido por W. Bush.

Muitas destas indicações são questionadas pela ala mais liberal que sustentou a campanha Obama desde o início, colocando em dúvida o seu compromisso prévio com a mudança e seu perfil de outsider. Acusado pelos adversários de ser “muito liberal”, Obama tem caminhado ao centro, o que agora lhe rende acusações dos “muito liberais” de ser “muito conservador”. No caso do staff da Defesa, para compensar este desequilíbrio, Susan Rice, da nova geração de estrategistas democratas foi indicada como Embaixadora das Nações Unidas, acompanhada de Janet Napolitano no Departamento de Segurança Doméstica e Eric Holder como Procurador-Geral à frente da Justiça. Seja no que se refere a esta equipe, como à econômica, contudo, outro elemento que chama a atenção além da continuidade é a força dos nomes, mas não necessariamente a certeza de coesão.

Similar polarização reflete-se no campo republicano, agravada pelas derrotas de 2006 e 2008. Em 2008, diversos nomes da linha conservadora como Collin Powell, Zbigniew Brzezinski, Richard Lugar tiveram suas figuras associadas à candidatura Obama, com alguns o apoiando abertamente. Tal linha demonstrou-se especialmente insatisfeita com os rumos da presidência Bush filho e da campanha de McCain, ele mesmo antes ligado a uma postura mais moderada e independente, mas que abriu-mão de sua identidade histórica ao escolher Palin como opção tática para reforçar sua votação entre os neoconservadores.

No imediato cenário pós-eleitoral, esta corrente radical de Palin, e seu relativo sucesso nas bases, tem se movimentado para garantir sua influência, chocando-se com os moderados. Como indicado, além de Palin, outro nome que ganhou peso foi o de Mike Huckabee. Da interação Palin-Huckabee e dos demais neoconservadores antes ligados a Bush a dinâmica da ala mais à direita republicana tende a se definir. Para o governo Obama, e o partido democrata, esta é uma equação sensível, uma vez que delimita o papel e perfil de sua futura oposição. Como evitar o radicalismo da direita e o da esquerda?

O desafio é reverter a natureza polarizadora adquirida pela política. Cabe a Obama repetir os checks and balances deixados de lado pela população, colocando no domínio do Executivo e do Legislativo o mesmo partido e caminhar ao centro. Não se pode alienar os extremos, nem os da América Vermelha ou os da Azul, promovendo o consenso bipartidário e o cumprimento da Constituição, visando a tolerância, respeito e equidade.

A Tríade

Frente a essas tendências, é preciso equilibrar forças de reforma, inércia e resistência. A visão de reestruturação da economia, fator responsável pela eleição do candidato democrata, passa não somente por um ajuste dos mercados financeiros e de crédito, mas também por uma reavaliação da natureza abrangente do capitalismo norte-americano, em termos sociais e produtivos. Muito se fala de um New Deal para o New Deal, atualizando o pensamento de Franklin Roosevelt e as lições keynesianas, englobando a renovação da matriz produtiva e indústrias hoje dilapidadas como a automobilística e siderúrgica, ao lado do setor agrícola.

A geração de 2.5 milhões de empregos depende da superação desta vulnerabilidade competitiva a partir de dois temas ressaltados por Obama na campanha: o investimento em energia renovável e a reinvenção do governo. O primeiro representa a interligação entre problemas domésticos e externos, invocando a temática ambiental, fundamental para os democratas, e a diminuição da dependência dos Estados não-aliados produtores de petróleo, como Rússia, Irã e Venezuela, e mesmo de aliados, como a Arábia Saudita (que implica a reestruturação sócio-econômica). O segundo relaciona-se a novas políticas fiscais, de investimento, crédito, incentivo à produção e regulação, educação e assistência social, com impactos também na agenda externa.

Embora mais de 60% dos norte-americanos apóiem o internacionalismo, a América que votou em Obama se encontra dividida. Enquanto o mundo espera um EUA mais cooperativo, que reconheça as forças do equilíbrio de poder mundial com tendências multipolares, a coalizão tende a um internacionalismo moderado e de pendor isolacionista na economia e, paradoxalmente, intervencionista em assuntos como meio ambiente, direitos e ajuda humanitária. Não há sinalização de uma disposição clara em atualizar e democratizar a ordem internacional, seus regimes e organismos políticos e econômicos como ONU, OMC e G-8. Chamou a atenção o relativo silêncio do recém-eleito Obama frente às reuniões do G-20 no Brasil e nos EUA em Novembro de 2008 e das ações européias, japonesas e chinesas com planos anti-recessão.

Ainda assim, o discurso da renovação da liderança se manteve. Em sua indicação, todos os membros do novo gabinete externo ressaltaram o multilateralismo como vetor de ação. Joe Biden, vice de Obama, mencionou o crescente papel dos aliados tradicionais e dos países emergentes (citando nominalmente China, Índia, Brasil e Rússia).

Se já são grandes os elementos de inércia e resistência para mudar a agenda interna, maiores o são para a externa, pois dependem de um forte consenso interno e do reconhecimento, por parte dos EUA, de seu relativo declínio, e ascensão de seus pares capitalistas industriais ao Norte e ao Sul. Não se deve esperar que qualquer presidente busque uma redução da projeção de poder da hegemonia, continuando seu reposicionamento na Eurásia e na América do Sul (vide a reativação da Quarta Frota), ou amplas concessões. Certamente espera-se um diferenciado estilo tático frente ao unilateralismo e prevenção, mas a medida da ruptura modernizadora talvez não seja tão profunda quanto o desejado pelo mundo ou o necessário para o país. Os dilemas estruturais são acompanhados pela Guerra Global contra o Terrorismo (GWT), destacando-se a Guerra do Iraque e a promessa, hoje pressionada pela realidade, de retirada de tropas, reavaliando a postura militar no Afeganistão e Paquistão.

Em discursos, Obama busca em analogias com FDR, Eisenhower, Kennedy e Clinton, as bases da nova governança para Washington e o mundo, buscando eliminar acusações de inexperiência, o que se reflete em seu gabinete de nomes conhecidos. Obama e sua coalizão podem ir além, respondendo às necessidades e possibilidades das múltiplas Américas, terminando a disputa hegemônica doméstica polarizadora. Mais do que encerrar o legado Bush, Obama terá o desafio de imprimir o seu, não só como o primeiro presidente negro dos EUA, mas como aquele que os levará ao século XXI. Afinal, grandes presidentes se fazem no cargo, não somente pelas lembranças históricas, mas, principalmente, pela construção de futuros.

Cristina Soreanu Pecequilo é professora de Relações Internacionais da Unesp, pesquisadora do NERINT/UFRGS. Autora de A Política Externa dos EUA (Ed. UFRGS, 2ª ed., 2005)

EDIÇÃO 99, DEZ/JAN, 2008-2009, PÁGINAS 6, 7, 8, 9, 10