Entrevista com Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo

Princípios – “O banho de sangue”, “A grande queda”, “Crise financeira épica”, assim se referiram analistas para dimensionar a convulsão financeira, incluindo a falência do Lehman Brothers e a compra do Merryl Linch pelo Bank Of America (quarto banco de investimento dos EUA) e a injeção bilionária na gigantesca corretora de seguros AIG. Para a “repressão financeira” de Bretton-Woods, saímos dos escombros humanos e materiais da Segunda Guerra. Dá para enxergar mudanças na regulação financeira global “depois da queda”?

Belluzzo – Essa é uma das questões debatidas pelos analistas. Há certa tendência de tratar esse problema como se fosse puramente técnico. Todavia, é preciso suprir as deficiências não só dos organismos reguladores como também ampliar talvez o papel do Banco Central nessa regulação dos quase-bancos, os chamados “sistemas de bancos sombras”, ou seja, os bancos de investimentos e os seus desdobramentos, os SIV (Special Investment Vehicle). Eles ficaram de fora da supervisão dos Bancos Centrais.

A diferença é que esse “sistema de banco sombras” abastecia seu funding nos mercados monetários, de curto prazo, sobretudo através da emissão de comercial papers e da extrema alavancagem. A estratégia de alavancagem foi permitida porque não estava submetida a regras impostas aos bancos comerciais. Aliás, as regras da Basiléia suscitaram a fuga para o sistema de “banco sombras”.Por isso, o cerne da desregulamentação financeira tem esses componentes. Decorreu dela um sistema quase bancário à margem da regulação do Banco Central, o que permitiu que a alavancagem e a assunção de posições muito arriscadas ficassem fora da supervisão do Banco Central e das outras autoridades reguladoras.

Os Bancos Centrais foram obrigados a ignorar o fato de que eles não tinham mandato para supervisionar e, então, violaram todos os mandatos e fizeram uma intervenção maciça. Há uma discussão hoje absolutamente peregrina…, como dizia o velho Marx: se isso representa uma estatização ou não. É, sim, uma estatização, queiram as pessoas ou não. Talvez não seja uma estatização almejada por alguns setores mais progressistas, que reclamam um controle mais estrito dos sistemas financeiros pelo poder público ou pelas instâncias públicas. Por isso, vejo com preocupação essa idéia de que o neoliberalismo acabou, porque essa intervenção é muito conveniente: os Bancos Centrais assumem a compra das ações dos bancos em dificuldades. A Inglaterra foi mais rigorosa nos controles. Os ingleses ameaçam colocar no conselho de administração representantes do governo. Entretanto, os americanos deixam claro, inclusive Henry Paulson, que essas medidas são temporárias, decorrentes de uma atitude emergencial da qual ele pretende escapar rapidamente! Para alguns, isso vai durar por volta de sete anos, até que seja “absorvido” o prejuízo e aí devolveriam aos bancos ou venderiam de novo as ações com alguma vantagem para os Tesouros. Enfim, o que vai acontecer nos próximos, meses ou anos, a luta política é que determinará o grau de intervenção e qual a natureza da regulação. Se as decisões ficarem a critério somente de especialistas, eles vão adotar soluções conservadoras.

Quero destacar um problema, que não está sendo sublinhado: os prejuízos que se acumularão para a população em termos de recessão, desemprego, perda de salário, perda de aposentadorias. Um fenômeno ainda não percebido pelas pessoas, que foi apontado, inclusive, num documento do Congresso norte-americano, de 15 de outubro último. As perdas serão importantes com a aposentadoria. Quem se aposentaria agora só vai consegui-lo daqui a alguns anos. Para enfrentar isso, seria necessário uma outra intervenção do governo, com mais gasto, para proteger os direitos dos futuros aposentados.

A Comissão de Orçamento do Congresso dos Estados Unidos – que cuida das questões fiscais e financeiras – é, na verdade, uma assessoria do Congresso, que inclusive teve importância até na definição do pacote de salvamento dos bancos. Essa assessoria é muito independente – uma virtude que alguns corpos americanos têm – e muito pouco complacente com a tentativa de lobby político. Ela está preocupada, sobretudo com o caso dos planos com benefícios definidos. Para estes terá de haver uma suplementação. O grave é nos EUA, a maior parte do patrimônio desses fundos ser de benefícios definidos ou indefinidos – em ambos os casos, a maior parte é constituída por ações. Por isso, eles sofreram uma perda patrimonial brutal. Lá, os lastros desses fundos têm uma composição distinta dos fundos que há no nosso país. No Brasil, a maior parte do patrimônio, dos fundos, é feita com títulos de renda fixa, sobretudo de títulos do governo. Há limitações impostas à participação de ações. Nos EUA ocorre ao contrário.

Lá os fundos são muito sensíveis ao desempenho da Bolsa e certamente haverá problemas de complementação de recursos por parte dos empregadores. O trabalhador vai levar um “cano” dessa empresa. Por isso, chamei a atenção para o prejuízo que haverá na aposentadoria de muitos.

Há uma espécie de ilusão de que a intervenção do governo simplesmente nos bancos vai aplacar a crise. Para mim, o problema hoje não é mais das instituições financeiras, os governos acharam o caminho para impedir um crash generalizado. O problema agora é das consequências sociais e econômicas, da recessão, da perda dos benefícios sociais. Se, por um lado, até determinado momento o povo foi beneficiado, enquanto consumidor, por outro, hoje está sendo prejudicado na outra ponta como assalariado, como pensionista etc.

Pela minha opinião, é uma ilusão, uma ingenuidade supor que isso será resolvido por um passe de mágica, de uma maneira simplesmente técnica. Esta crise tem amplas repercussões políticas e deixo uma pergunta: quais forças políticas conseguirão levar adiante, canalizarão esse descontentamento que está claro na população, não só americana como européia, quem vai canalizar isso? Quais forças, quais partidos? Quem vai canalizar isso?Eu não sei, não tenho a resposta. A meu ver, nos últimos anos a social-democracia e os partidos de esquerda encolheram ou aderiram. Os social-democratas eleitos nos últimos anos, tanto na Itália quanto na Inglaterra – talvez à exceção dos nórdicos que estão lá no seu canto, sossegados. Em geral a alternância no poder não mudou muito a adesão aos princípios ditos neoliberais. E, agora, quem canalizará essa insatisfação que nascerá naturalmente da recessão e da perda de renda, de emprego?

Princípios – 1997-2007: duas severas crises sistêmicas iniciadas na Ásia e nos EUA. O que essa “passagem” da periferia ao centro indicaria? O comércio intra-asiático já é maior que entre os EUA e a Europa. Comente essas mudanças.

Belluzzo – É impossível compreender o desenvolvimento recente da Ásia até o anterior sem entender o papel de economia cêntrica dos EUA e a sua forma de desenvolvimento. Como os bons analistas, há que prestar atenção nas relações entre as entidades: não existe a Ásia como entidade autônoma, a Ásia existe em suas relações com a economia capitalista central. Assim como a periferia no século XIX só existia como produto da expansão britânica, na forma de integração proposta pela intenção britânica. Isso é muito claro e Marx dá todas as pistas para que se trate essa questão dessa forma. Marx não era um teórico das entidades, mas das relações contraditórias. Os Estados Unidos emergiram no final do século XIX como a economia mais pujante do mundo a partir da integração reativa à expansão do capitalismo liberal britânico.

Como isso se estabelece? Esse crescimento da Ásia é um subproduto da expansão americana do pós-guerra. E “o último grito” da expansão americana do pós-guerra é o desenvolvimento da China. Mas, na verdade, isto quer dizer que o desenvolvimento da China não pode se afastar do desenvolvimento americano? Não, porque isso introduz relações contraditórias de expansão conjunta. Chamo esse modelo de sino-americano porque foi a forma dominante de expansão dos outros todos, inclusive nós – o Brasil – nos subordinamos a essa expansão. A China, ainda que tenha feito essa integração via comércio por conta do investimento na indústria manufatureira, sempre contou com o upgrade tecnológico. Aliás, quando perguntei, Paul Krugman reconheceu a importância da captura da China. Indaguei: ele dizia nos anos 1990 que a expansão da China não estava prejudicando os empregos nos EUA. Isso ele disse nos anos 1990. Depois reconsiderou sua posição num artigo escrito recentemente. Por que voltou atrás?A China, na verdade, se transformou no grande centro manufatureiro global. Isso significa que ela coloca em xeque a capacidade dos EUA de avançar sem alterar as relações. O circuito se fecha com o financiamento chinês do Balanço de Pagamentos dos EUA pelos asiáticos em geral, inclusive o Japão. Não fora isso, a economia americana não teria tido essa espantosa expansão do consumo que, por outro lado, estimulava o crescimento das exportações da China. Então, imaginar que a China vai conseguir escapar completamente da recessão é uma ingenuidade, porque ela não tem autonomia para fazer isso. Ela pode na verdade se defender melhor, aumentar a participação da sua demanda doméstica, sobretudo investimento público, porque tem os instrumentos para isso. A China tem uma situação fiscal muito favorável porque usa o sistema bancário como um instrumento para-fiscal. Ela financia até investimento de infra-estrutura com o crédito bancário.Isso é uma peculiaridade da economia chinesa, ao mesmo tempo em que ela tem um grau de manobra muito maior que as outras por conta da forma como estão organizadas as relações entre, digamos, seu mercado cambial e seu mercado financeiro. Ela não deixa que o câmbio, por exemplo, se movimente de uma maneira absurda de modo a prejudicar as políticas de gasto doméstico. Mas isso nós não podemos fazer, não temos condições sociais e políticas para tanto.

É proibido tudo, menos a aquisição de divisas para saldar compromissos em conta corrente, ou seja, pagamentos na compra e venda de bens e serviços. Não se pode portar moeda estrangeira, não tem conversa, não adianta reclamar. E ninguém reclama porque não adianta. Imaginar que eles estão imunes à crise, que não sofrerão a contração da demanda global, não é uma posição realista, nem correta. Mas vamos ver como a China se movimentará em relação a seus parceiros da Ásia. Essa questão é relevante porque, recentemente, o comércio intra-asiático cresceu mais do que o comércio com os EUA e a Europa – pela ordem, primeiro o intra-asiático, a Europa, depois os EUA.Isso dá certa autonomia aos chineses, mas é preciso lembrar que também os outros asiáticos têm uma dependência grande do comércio americano. E se se juntar EUA e Europa dá mais do que o comércio infra-asiático. Como a Europa também vai entrar em recessão, algum ajustamento terão de fazer.

Ouvi um debate na BBC feito na China com a presidente de uma empresa chinesa, um diretor do Banco Central da China e um diplomata, e perguntaram a ele: como vocês vão fazer com o modelo chinês? Ele respondeu: “a China não tem modelo, vocês estão enganados. Temos um processo de busca, sabemos qual é nosso objetivo, sabemos qual a estrutura da economia atual, mas não consideramos adequado falar em modelo”.Isso é próprio da cultura chinesa, o mundo em movimento. Por isso eles compreenderam melhor do que os russos a dialética, por estarem mais preparados. Eles não têm inclinação ao dogmatismo racionalista ocidental, aliás, se livraram logo do russos quando começaram a perturbar…A China, de fato, para resumir, não tem um espaço de liberdade para decidir exatamente o que ela quer, mas tem mais liberdade do que os outros.

Princípios – O dinamismo asiático – dependente, sobretudo de China, Índia, Japão e Coréia do Sul –, teve agora a má notícia da recessão que se avizinha no Japão. Qual resposta de política econômica seria mais adequada que esses países deveriam dar?

Belluzzo – O Japão vai de recessão em recessão. Dó escapou da última por causa da China (ele é seu fornecedor de peças, equipamentos, bens de capital, financiamento). A Coréia do Sul está na situação mais difícil, porque repetiu os erros que a levaram à crise em 1997: a crise coreana. A Coréia é um exemplo. Ela tinha todos os fundamentos em ordem, menos o que era a tomada de recursos em curto-prazo no mercado, nos bancos americanos para financiar investimentos. Quando deu a crise os recursos saíram e ela ficou na mão. A Coréia não está tão bem, mas a Índia sim, aparentemente, está resistindo melhor. A China tem maior capacidade de resistir, assim como Taiwan, e todos os países que se cobriram e que têm reservas altas.

Evidentemente, isso tudo depende do tamanho da desaceleração, do tamanho da recessão. Não há nenhum determinismo, dependerá das decisões de política econômica que os países tomarem. No caso dos chineses, disseram: vamos estimular mais a demanda doméstica. Eles já estão aumentando um pouco o gasto público, baixaram a taxa de juros, deram estímulo fiscal nas exportações, aumentaram os rebates fiscais, quer dizer, a pessoa exporta e recebe em crédito. O Brasil está ainda tateando… Mas, enfim, com os chineses não tem isso, eles dizem: atravessaremos o rio caminhando pelas pedras. A meu ver, a China conseguirá resistir à crise seja do tamanho que for.

Princípios – Após seis anos, o Banco Popular da China reduziu suas taxas de juros, o que sinaliza um incremento do investimento e consequentemente do consumo. Trata-se de uma resposta chinesa à crise financeira norte-americana, crise esta que na ponta do processo pode significar baixa de suas exportações aos EUA? Ou será um sinal para mais um alavancamento de seu mercado interno, de maneira semelhante às suas respostas à crise asiática de 1997?

Belluzzo – É uma maneira de responder. Eles na verdade apostarão no mercado interno, agora, E isso está combinado com o controle da conta de capitais, com o controle que eles fizeram do mercado cambial. O objetivo da política econômica deles está ligado à proteção da economia nacional chinesa. Se o indivíduo ganha ou deixa de ganhar dinheiro é um problema da pessoa. Repito, a política econômica deles está direcionada para proteger o Estado nacional chinês.

Princípios – A China e seu mercado financeiro estão em constante expansão; há um processo de fusões e aquisições de empresas estrangeiras por chinesas, pelo mundo afora. Como o senhor vê o futuro da China em meio a essa turbulência econômica mundial? Tornar-se-ia nas próximas décadas o centro dinâmico da economia mundial, vis-à-vis os EUA?

Belluzzo – É cedo para dizer, mas ela se transformará num protagonista muito importante, embora levará algum tempo para a China se transformar realmente num centro dominante como diz sua pergunta; nem sei se irá. Vivemos um momento em que de fato os EUA, como ficou demonstrado por essa intervenção, não têm capacidade mais pelas suas políticas de ordenar o mundo. Eles têm de desordenar. Os EUA têm de recorrer aos parceiros e dentre eles o parceiro competidor mais importante, sem dúvida, é a China. Ela é uma potência militar, política e econômica, e os americanos não farão como em 1985 (Acordos do Plaza): eles concertaram a valorização do dólar e jogaram o Japão às urtigas.

O Japão está nessa situação porque tinha uma dependência muito maior dos EUA. Até pelo tamanho da sua economia, do que hoje tem a China – que tem mais autonomia em relação aos EUA do que tinha o Japão.Os EUA? Não, os EUA continuarão a ser um país importante, tanto do ponto de vista tecnológico, financeiro, militar. Mas não estão mais como nos anos 1990, sozinhos na parada, por conta até do próprio desenvolvimento deles, que gerou a China como potência, que é seu sócio competidor. Os EUA teriam de negociar. Isto é da natureza das relações que o capitalismo criou – relações econômicas e políticas. Mas não adianta afirmar que os EUA emergirão dessa crise como potência dominante, unilateral. Não irão. Todavia, isso não quer dizer que o país deixa de ser importante. Ou seja, temos de desconstruir o mito da permanente supremacia americana. Mas não sei se essa situação será conduzida de forma diplomática e pacífica pelo Poder Americano. A revista The Nation fez uma matéria assustadora sobre os “patriotas fundamentalistas” que não admitem outra situação senão a supremacia absoluta. Há milhões de racistas, xenófobos e intolerantes.

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Aloísio Barroso é doutorando em economia e membro da Comissão Editorial de Princípios e Elias Jabbour é geógrafo e membro do Conselho Editorial de Princípios

Publicado originalmente na revista Princípios