Sobre a Contradição Principal
O problema da contradição principal reveste-se de enorme importância na elaboração da linha do Partido. Não se trata simplesmente de questão teórica, mas de assuntos com profundas implicações na política prática. Do seu equacionamento depende, entre outros aspectos, o esquema da disposição de forças de classe na luta que se trava no país.
A maneira como as Teses encaram esta questão parece-me mecânica e falsa. Afirmam que há duas contradições fundamentais no presente estádio de desenvolvimento da sociedade brasileira: a contradição entre a Nação e o imperialismo norte-americano e os seus agentes internos; e a contradição entre as forças produtivas em crescimento e o monopólio da terra. Uma destas duas contradições – e somente uma destas duas – pode ser a principal, em toda a atual etapa da revolução. Quando alguém diverge da contradição considerada pelas Teses como a principal, surge a imediata contestação: há duas contradições e uma deve ser a principal. Não podem ser as duas…
A meu modo de ver, isto expressa uma incompreensão do que seja a contradição principal e, ao mesmo tempo, um modo esquemático de abordar o fenômeno. Num país dependente, como o nosso, a contradição principal, em determinadas fases, pode não ser nem uma nem outra das que apresentam as Teses, aliás, erroneamente formuladas, como muito bem assinalou em seu artigo nestes debates, o camarada Oto Alcides Ohlweiler. O fato de a dominação imperialista e os restos feudais constituírem os obstáculos que precisam ser removidos, para que o Brasil avance no caminho do progresso, não significa que a contradição principal se apresente obrigatoriamente como tendo num pólo ou o imperialismo ou os restos feudais. O quadro das relações entre a contradição principal e as secundárias é muito mais complexo aqui do que nos países de nível capitalista mais elevado. Durante toda uma etapa do desenvolvimento histórico do Brasil, o processo em curso é o da revolução democrática, antiimperialista e antifeudal.
O caráter deste processo não mudará até que este tenha sido realizado. Mas, a situação dentro deste processo se modificará constantemente, nas diferentes fases do seu desenvolvimento, e com isto se modifica também a contradição principal. O camarada Mao Tsetung, por exemplo, demonstrou que numa determinada fase desse processo na China, a contradição principal foi entre o imperialismo e a reação interna, agrupados de um lado, e do outro lado, as massas populares; noutra fase foi entre a Nação chinesa e o imperialismo (quando das agressões armadas do exterior); noutra fase, ainda, foi entre o povo chinês, de um lado, e a classe dos latifundiários e a burguesia burocrática, do outro.
Como se vê, isto foge ao esquema das Teses, mostrando que, num país dependente, as contradições variam e se modificam muitas vezes, sem que se altere o caráter democrático e antiimperialista em curso. Também em Cuba há um exemplo interessante. Ali, durante a luta revolucionária que culminou com a derrubada de Batista, a contradição principal foi entre os latifundiários e a grande burguesia, ligada ao imperialismo, de um lado, e do outro, as massas populares. Pode-se dizer que no Brasil, durante o período da 2ª Guerra Mundial, assumiu o caráter de principal, a contradição entre a Nação brasileira e o imperialismo do bloco nazi-fascista (note-se: nazi-fascista e não norte-americano). O imperialismo daquele bloco ameaçava pela guerra a integridade territorial e a soberania do Brasil. Foi justo, por isso, defender e aplicar o esquema de união nacional, incluindo na frente de luta comum os latifundiários e subordinando as demais contradições a esta principal.
Já em 1930, o fenômeno é diferente. Agravaram-se naquela ocasião as contradições internas, embora por trás das principais forças em luta se encontrasse o imperialismo norte-americano e o inglês, competindo pelo predomínio do país. Não se pode, pois, formular para todo sempre, dentro da mesma etapa, duas determinadas contradições e aferrar-se a elas, porque pode ocorrer, e geralmente ocorre, que a contradição principal não seja qualquer das antecipadamente formuladas, ainda que estas pudessem ser consideradas as fundamentais. Admitir unicamente como principal uma das duas contradições apresentadas nas Teses é excluir do pano a possibilidade de que nosso povo venha a se levantar contra os latifundiários e a burguesia ligada ao imperialismo, pois em tal caso outra seria a contradição principal.
Creio que só se pode considerar a contradição entre a Nação e o imperialismo como a principal num caso de guerra, quando existe a ameaça real de ocupação estrangeira pairando sobre toda a Nação. Isto não ocorre, atualmente, no Brasil. Na situação presente, o imperialismo norte-americano utiliza formas mais moderadas de opressão e exploração – pressão no terreno econômico, político, cultural e outros. A política realizada no país, que serve aos seus interesses rapaces, não é imposta ao povo brasileiro pela existência de um governo norte-americano aqui sediado ou pelas baionetas estrangeiras. São os próprios governantes nativos que a põem em prática. É sabido que no Brasil se aplica, em suas linhas essenciais, a orientação do FMI, isto é, a política financeira ditada pelos trustes estadunidenses. Mas quem a realiza? Precisamente o governo do sr. Kubitschek.
No caso do acordo de Roboré, atentado ao monopólio estatal do petróleo, também são os governantes brasileiros que aparecem como os seus realizadores. Quer dizer, há forças internas, poderosas, que sustentam e defendem os interesses estrangeiros e sem as quais seria impossível efetuar-se a dominação norte-americana. Por isso, não se pode afirmar que é a Nação inteira que se opõe ao imperialismo ianque, mas a maioria da Nação. Esta maioria se opõe igualmente aos sustentáculos internos do imperialismo, no caso, os latifundiários como classe e a parte da burguesia ligada aos trustes estrangeiros.
Apresentando a contradição principal como sendo entre a Nação e o imperialismo norte-americano e seus agentes, as Teses ocultam da visão das massas os inimigos internos nos quais se apóia a dominação imperialista. Orientam a luta apenas contra os agentes, isto é, elementos isolados, e não contra classes e camadas sociais que constituem o apoio daquela dominação. Mas é evidente que, embora dispondo de grandes recursos financeiros, os agentes do imperialismo, por si só, não conseguiriam impor uma política que contrariasse os interesses de toda Nação. Esta só é levada a efeito porque há no país forças cujos fins se entrosam com os dos monopólios dos Estados Unidos e que a eles se aliam para explorar em comum o povo brasileiro.
Da formulação da contradição principal decorre obviamente o esquema da disposição de forças na luta que se trava no país. Assim, quando tratam da frente única, as Teses incluem nesta os latifundiários, embora ressalvando que isto ocorre “em certas circunstâncias”. Tal restrição foi feita depois da enérgica crítica realizada no órgão dirigente. Não se pode, porém, fugir à lógica determinada pela contradição principal. Se esta é efetivamente entre a Nação e o imperialismo e seus agentes internos, então, da frente de luta comum das diversas classes que se opõem àquele inimigo, participam os latifundiários. Exclui-se, apenas, um punhado de traidores.
No caso de que outra seja a contradição principal, os latifundiários não participam dessa frente comum. Ora, incluir os latifundiários, como classe, na frente única é o mesmo que “pôr as cabras tomando conta da couve”. É acobertar os pilares sobre os quais se assenta o imperialismo no Brasil. Os latifundiários podem ter certas contradições momentâneas com o imperialismo, sobretudo na questão dos preços dos produtos que vendem aos Estados Unidos, e por isso, do ponto de vista tático, em que outro setor do latifúndio pode participar de ações contra certos aspectos da política dos monopólios no Brasil.
Mas os latifundiários não se opõem ao imperialismo como o explorador e opressor do nosso povo, não querem erradicar do país os tentáculos da dominação norte-americana. Bem ao contrário. Apóiam-se nesses tentáculos, defendem a vinda de novos capitais monopolistas do exterior, buscam garantir seus privilégios recorrendo aos empréstimos e acordos financeiros com “Wall Street” e o governo ianque, que atam o Brasil ao jugo imperialista, fazem, enfim, a política que serve aos trustes. São os latifundiários e a grande burguesia que estão no poder. Se, de fato, se opusessem ao imperialismo, poderiam efetuar uma política democrática e nacional contando com o apoio de todo o povo.
Realizam, no entanto, a orientação que convém aos monopólios e que coincide com seus interesses de classe. Na presente situação, as correntes progressistas têm o dever de unir o máximo de forças contra a exploração e a dominação do imperialismo norte-americano, mas seria completo absurdo pretender unir na mesma frente os que se opõem e os que apóiam o domínio dos monopólios ianques no Brasil.
Por tudo isso, não concordo nem com a formulação das contradições chamadas fundamentais, tal como se apresentam nas Teses, por serem mecânicas, nem tampouco com a contradição ali indicada como a principal.
Penso que esta questão devia ser melhor estudada, à base da realidade nacional, a fim de chegarmos a melhores conclusões. E isto é muito importante porque, na base da linha de direita que estamos adotando, se encontra uma errônea compreensão da contradição principal.