Em meio a tais acontecimentos, o Brasil emergiu não apenas como potência econômica, mas também como potência política global, ao lado de Rússia, Índia e China, o grupo denominado BRIC, que tende a mudar a correlação de forças na ordem internacional. Esse status foi alcançado, sobretudo, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o premier da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, firmaram um acordo com o presidente Mahmoud Ahmadinejad sobre a questão do urânio enriquecido pelo Irã, significativo êxito diplomático, resultante de negociações previamente efetuadas pelo embaixador Celso Amorim, considerado o world’s best foreign minister na atualidade, por David Rothkopf, integrante do Council on Foreign Relations dos Estados Unidos, em artigo publicado pela revista Foreign Policy.

O acordo atendeu a todas as solicitações que os Estados Unidos haviam feito ao Irã e o presidente Barack Obama informou detalhadamente ao presidente Lula da Silva, em carta datada de 20 de abril, três semanas antes de sua viagem a Teerã, que o Irã aceitou transferir seus 1,2 mil quilos de urânio enriquecido, no início do processo, a um terceiro país – especificamente a Turquia –, onde seria armazenado como caução durante o processo de produção do combustível.

A consecução desse acordo, que talvez Obama não esperasse, colocou seu governo em uma situação muito difícil. Independentemente do perigo representado tanto pelo fundamentalismo islâmico quanto por qualquer outro fundamentalismo religioso, cristão ou judaico, o que os EUA pretendem, uma vez descartada a opção militar, é derrocar Ahmadinejad e o regime xiita, com novas sanções que possam entravar o desenvolvimento do Irã, evitar que represente qualquer ameaça a Israel – e/ou à Arábia Saudita, e possa exercer maior influência sobre o governo do Iraque, também xiita, após a retirada da maior parte de suas tropas nos próximos anos.

O Brasil, contrapondo-se a tais sanções, está a defender seus próprios interesses nacionais. Das quatro potências que emergem e se inserem no jogo internacional do poder – Rússia, Índia e China –, é a única que não dispõe de armamentos nucleares, embora pudesse produzi-los, se quisesse, pois, desde 1987, domina o ciclo completo da tecnologia de enriquecimento de urânio, com uma proporção maior do isótopo 235 do que ocorre no urânio natural. Não conseguiu esse sucesso sem defrontar-se, durante quatro décadas, com implacável e sistemática oposição dos Estados Unidos.

Em 1953-1954, quando o governo de Getúlio Vargas encomendou aos cientistas alemães Wilhelm Groth, Konrad Beyerle e Otto Hahn, responsável pela fissão nuclear, três ultracentrífugas para instalar no Brasil uma usina de separação de isótopos ou produção de urânio enriquecido, a CIA descobriu e o brigadeiro inglês Harvey Smith, do Military Board Security, em Hamburgo, por ordem expressa do alto comissário americano, professor James Conant, impediu o embarque para o Brasil das peças dos equipamentos fabricadas secretamente na Alemanha. O vice-presidente João Café Filho (1954-1955), assumindo o governo com o suicídio de Getúlio Vargas (24 de agosto de 1954), promoveu a revisão da política brasileira de energia nuclear em consonância com a embaixada dos EUA, que qualificou o projeto das ultracentrífugas como “aventura germânica” e considerou “o estabelecimento, no Brasil, de um processo para a extração do urânio físsil, por meio de importantes organizações de um país europeu (…), uma ameaça potencial à segurança dos Estados Unidos e do Hemisfério Ocidental”. O projeto foi completamente obstruído.

Em 1967, o governo militar, sob o comando de Arthur da Costa e Silva, anunciou que adotaria uma política independente de desenvolvimento da energia nuclear. Os EUA reagiram com novas ameaças. E o dissídio agravou-se ainda mais após a Alemanha, em 27 de junho de 1975, firmar com o Brasil o Acordo de Cooperação para Usos Pacíficos da Energia Nuclear, visando transferir-lhe todo o ciclo de geração da energia nuclear, desde a pesquisa e lavra do urânio até o enriquecimento do mesmo pelo processo de jato centrífugo (jet nozzle), ainda em fase de experimentação, bem como de uma fábrica de reatores, a ser construída em Sepetiba (no Rio de Janeiro), cuja produção, com início calculado para o fim de 1978, possibilitaria a completa nacionalização dos equipamentos.

Os EUA se opuseram duramente à sua execução e, em março de 1977, o presidente Jimmy Carter pressionou o Chase Man-hattan Bank e o Eximbank para que suspendessem todos os financiamentos negociados com o Brasil, e até mesmo paralisou o fornecimento à Alemanha do serviço de enriquecimento de urânio. Quis compelir os dois países a denunciarem ou reverem o Acordo Nuclear, com a introdução de salvaguardas complementares (comprehensive safeguards) semelhantes às estabelecidas pelo Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP), e a exclusão da usina de enriquecimento do urânio e reprocessamento do combustível.

As Forças Armadas não se conformaram com as salvaguardas impostas pela Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea). Daí que, fora do seu controle, empreenderam, a partir de 1979, o Programa Nuclear Paralelo, de modo que pudessem desenvolver tecnologias de separação de isótopos, inclusive por meio de raios laser e por processamento químico. E, conquanto constasse do texto não secreto do Acordo Nuclear que o processo de enriquecimento do urânio seria o dos jatos cruzados, o Brasil importou a tecnologia da ultracentrifugação, por intermédio dos técnicos e cientistas brasileiros que foram treinar nos centros de pesquisa de Jülich e Karlsruhe, bem como na própria Siemens, na Alemanha, posto que não estavam sujeitos às salvaguardas da Aiea. E, em setembro de 1987, o presidente José Sarney (1985-1990), anunciou oficialmente que o Brasil havia alcançado o completo domínio da tecnologia do enriquecimento do urânio pelo processo de ultracentrifugação.

O Brasil sempre se recusou a aderir ao TNP, cujo caráter discriminatório implicava o reconhecimento do status das cinco potências nucleares, na medida em que congelava o poder mundial, legitimando uma ordem internacional baseada no desequilíbrio de direitos e obrigações entre os Estados. Contudo, Fernando Collor de Mello envergou-se, prestou vassalagem aos Estados Unidos, e o Brasil começou a capitular, ao subscrever integralmente o Tratado de Tlatelolco, sem as ressalvas sobre as explosões atômicas para fins pacíficos. Em 1997, Fernando Henrique Cardoso completou a capitulação. Reverteu uma diretriz de política exterior, mantida inalterável ao longo de 29 anos, e submeteu o País ao TNP.

Não obstante, o Brasil ainda continua a sofrer restrições à aquisição de materiais nucleares no exterior. E os Estados Unidos e as demais potências europeias voltaram a renovar as pressões, inclusive com desinformações plantadas na imprensa de vários países, para que submeta suas instalações nucleares às inspeções intrusivas da Aiea. Em 2004, o Times já havia recomendado que os EUA “tomassem cuidado com o Brasil” e, no mesmo dia, um ex-funcionário do Pentágono propalou que a Aiea suspeitava que ele adquirira do cientista paquistanês Abdul Qadeer Khan, então acusado de envolvimento com o programa nuclear do Irã e da Coreia do Norte, equipamentos para ultracentrifugação de urânio. Tais intrigas configuravam uma guerra psicológica, com o fito de criar um clima negativo contra o Brasil e forçá-lo a permitir inspeções mais profundas, livre intrusão, a qualquer hora e sem aviso prévio, em todas as suas instalações nucleares.

Mais recentemente, em 2010, o ex-chefe do Estado-Maior de Planejamento do Ministério Federal da Defesa da Alemanha, Hans Rühle, escreveu um artigo, publicado na revista Der Spiegel, no qual atribuiu a oposição do Brasil às sanções que os Estados Unidos pretendem impor ao Irã ao fato de estar, provavelmente, fabricando a bomba atômica. Outros órgãos da imprensa alemã também disseminaram a mesma intriga.

Trata-se outra vez de uma campanha de guerra psicológica, com o mesmo objetivo de compelir o Brasil a aceitar o Protocolo Adicional aos Acordos de Salvaguarda com a Aiea. Se o Brasil o fizer, os inspetores dessa agência da ONU, vinculados de um modo ou de outro aos EUA e às demais potências, estarão autorizados a devassar, sem aviso prévio, qualquer instalação de sua indústria nuclear, tais como as fábricas de ultracentrífugas, a Fábrica de Combustível Nuclear de Resende (no Rio de Janeiro), o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares, em São Paulo, e o Centro de Desenvolvimento da Tecnologia Nuclear (CDTN), em Minas Gerais, entre outras unidades. Terão assim a possibilidade de conhecer todos os segredos, de qualquer máquina, de suas partes e dos métodos de sua fabricação, inclusive do submarino nuclear.

O objetivo não é apenas político e geopolítico, por causa da construção do submarino de propulsão nuclear. É também econômico. O Brasil possui atualmente a sexta maior reserva de urânio, com 309 mil toneladas, porém, apenas 30% do território nacional foi prospectado até o início de 2009 e a estimativa é de que ainda haja mais 800 mil toneladas, o que a tornará uma das duas maiores do mundo.

Em tais circunstâncias, com a capacidade de enriquecer o urânio, em escala comercial, será autônomo na produção do combustível nuclear e poderá exportá-lo para outros países. Assim, a disseminação da suspeita sobre a construção da bomba atômica pode eventualmente criar o clima que permita aos Estados Unidos e aos seus aliados ameaçá-lo com sanções, se não abrir plenamente suas instalações nucleares aos inspetores da Aiea. E, com o vazamento do segredo tecnológico da ultracentrífuga autóctone, que desenvolveu, com importantes diferenciais em relação à de outros países, o Brasil perderá a competitividade científica, técnica, comercial e industrial, e seus esforços de capacitação nuclear poderão ser obstaculizados pelas grandes potências, empenhadas em manter o oligopólio não só militar, como também civil, existente no mercado mundial.

A Constituição e os diversos atos internacionais, inclusive o TNP, não permitem ao Brasil produzir a bomba atômica. É, entretanto, necessário, fundamental e premente fortalecer sua defesa e modernizar e reequipar suas Forças Armadas. É sobre a defesa que se sustenta a soberania, a “grande muralha da pátria”, como a definiu o notável jurista e diplomata Rui Barbosa, ao defender o princípio da igualdade entre os Estados na Assembleia de Haia, em 1907.

Com toda a razão, Eduardo Prado, autor de A Ilusão Americana, obra publicada em 1893, ressaltou que “não se toma a sério a lei das nações, senão entre as potências cujas forças se equilibram”. E como o único direito que não prescreve é o da força – acrescentou –, os juristas universalmente reconhecidos são Armstrong, Bange e Krupp, i. e., os grandes fabricantes de armamentos nos fins do século XIX. Essa lição deve pautar a estratégia nacional de segurança e defesa. O Brasil está potencialmente cercado. Os EUA operam um total de sete bases militares na Colômbia: Malambo, Atlântico; Palanquero, no Magdalena Medio; Apiay, Meta; as bases navais de Cartagena e o Pacífico; bem como o centro de treinamento de Tolemaida e a base do Exército de Larandia, no Caquetá. Suas tropas estão assentadas na Amazônia, fronteira do Brasil, enquanto a IV Frota navega no Atlântico Sul, à margem das enormes jazidas de petróleo descobertas nas camadas do pré-sal, em águas profundas, entre o Espírito Santo e Santa Catarina.

O Brasil tem de estar preparado para enfrentar, em nível tanto diplomático quanto militar, os imensos desafios que se delineiam no século XXI, a “era dos gigantes”, como o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães denominou esta quadra em que os grandes espaços econômicos e geopolíticos serão os principais atores da política internacional. Si vis pacem, para bellum.

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Fonte: CartaCapital