Ainda com a luz apagada, a Amélia respirava fundo e sorria para a escuridão, enquanto o Anacleto roncava. O calor era insuportável dentro do cômodo – sem janelas – do barraco e os barulhos da rua indicavam já ter passado da meia-noite. Apenas passos dos malandros eram ouvidos, pois as famílias já estavam a dormir para, no dia seguinte, descerem o morro, bem cedo, para cumprirem seus afazeres.

      Com suavidade, ritmada pelo ressoar grave, quase apinéico, ela roçava a perna direita na perna esquerda dele e gozava em silêncio com o entrelaçar dos pelos, enquanto sua mão viajava pelo antebraço do amante. Amante? Sim. Anacleto e Amélia eram amantes. Ali eram amantes, pois, na vida real – aquela que não vivem os amantes – eram colegas de trabalho. Ele servia cafés e entregava correspondências internas e ela atuava na faxina em um escritório de advogacia no Baixo São Cristóvão.

      Ambos casados, passaram meses trocando olhares. Depois vieram as conversas pelo corredor, os bilhetinhos em papel higiênico e, por fim, marcaram o encontro de hoje, no barraco da Amélia. O marido está preso há sete meses e os dois filhos, um de quatro anos e um de dois, dormem na sala. A mulher do Anacleto nem sonha com nada, está em casa a passar e coser, enquanto vê televisão e cuida dos três meninos e da pequena Sílvia. Quando chegou no endereço dado e bateu na porta, ela já o atendeu pedindo silêncio para não acordar os meninos e, sem pensar muito, deu-lhe um beijo no rosto e puxou a mão do moreno para suas nádegas, seu maior trunfo, produzindo nele uma excitação incontrolável. O encaminhou para o colchão de casal, previamente preparado, e ali se amaram por quase uma hora, sem palavras, sem perguntarem um ao outro quem realmente era e o porquê de estarem ali. Foi uma explosão de desejos contidos, reprimidos e inventados. Assim são os amantes, ao contrário dos amados: fogo violento, mas efêmero. Enxurrada de desejos que nunca se transformará num rio calmo e eterno. Ao final, satisfeitos, soltaram-se finalmente e colocaram-se a respirar. Ela não sente remorso, pois o “Anacleto é doce e carinhoso”, ao contrário do marido, homicida qualificado, violento. Pouco importa se os vizinhos ouviram. E certamente ouviram. Primeiro porque o bairro é feito de aproveitamento de paredes de madeira, com barracos colados um no outro e, segundo, porque, desde pequena, Amélia ouve dizerem que homem gosta de mulher gritando na cama e, mesmo sem ser sua vontade, assim faz, para agradar quem a possui. E agradou. Ele está a dormir há meia hora. Sem pressa. Saiu de casa dizendo que iria trabalhar de vigia noturno, um bico. Tem a noite toda para nivelar seus batimentos cardíacos nos braços de Amélia e ela, sorrindo, pensa no nada, que é o refúgio do gozo. Esquecem do mundo. Nem querem saber do mundo. Nem perceberam o trinco da porta se abrir enquanto o Gilmar, marido de Amélia, recém fugitivo do presídio central, abraça os pequenos lá na salinha do barraco e diz, baixo para não estragar a surpresa, “cadê a mamãe”?

 Luiz Henrique Dias é escritor, membro do Núcleo de Dramaturgia do Sesi, estudante de Arquitetura e Urbanismo e comunista (convicto). Escreve todas as terças neste espaço e diariamente em seu blog acasadohomem.blogspot.com . [email protected] . @luizhdias .