Oswald Barroso: Sertão de Poesia
Talvez por isso, guardasse marcas da pequena Atenas cabocla que fora, espécie de São José do Egito cearense(1) , ou de Assaré de Patativa, já que naqueles sítios, apesar da faina intensa sobrava tempo para ouvir rádio e sonhar poesia.
Imagino que ali, durante a primeira metade do século 20, quando Idalzira nasceu, o cabra em vez de nascer chorando, como costuma acontecer, já nascia cantando, porque versejar era como falar. Então, veja lá, havia dentro de casa o pai João Bezerra, exímio poeta, e Joan ainda fala de um “Tio Clóidio” que na certa por ali andava. Além do mais, é preciso lembrar, o Cedro não por acaso ser berço de Geraldo Amâncio, um dos maiores cantadores brasileiros da atualidade, nascido exatamente nos meados dos mil e novecentos. Poesia, portanto, no meio em que Idalzira foi criada, era patrimônio familiar e comunitário, pra lá de literatura e arte, assunto cotidiano, jogo e divertimento, motivo para disputa, exibicionismo, duelo e desafio.
Sob inspiração das musas eram organizados torneios, festivais, com gêneros diversos de disputas, que incluíam perguntas e advinhas. Provas nas quais os contendores, homens ou mulheres, careciam mostrar poderes mágicos com as palavras, através de arranjos intrincados de sons, e arrotar valentia, como se estivessem manejando espadas invisíveis. Conforme o caso, precisavam fazer tremer o inimigo com versos indecifráveis e rimas terríveis, ou comover o coração das mais resistentes donzelas com a narrativa de romances enternecedores.
Talvez, principalmente, da intimidade do lar se nutrisse aquela poética, porque naqueles sítios de então, a vida se completava em rima. Digo pela forma como Idalzira fala de sua própria experiência: “Eu rimo quando estou triste/Para as mágoas espantar/Rimo quando tenho saudades/Pois é muito feio chorar/Rimo quando estou contente/Rimo quando estou ausente/Querendo te abraçar.” E de jogos e brincadeiras, as rimas se espalhavam por afetos, sentimentos, desejos, angústias, saudades, aflições, em conversas de salas, cozinhas, alcovas e alpendres principalmente. Demoravam-se em sessões nas quais a palavra falada, cantada de preferência, medida, exata, bem escolhida, era cultivada e cultuada, debulhada em cordéis, fabulada em histórias que narravam desde os mitos da origem dos tempos até a última novidade apregoada na feira ou ouvida no rádio.
Em sítios assim, orgulho maior é ser membro de uma prole de poetas, trovadores, repentistas ou especialistas outros do verso, como a família Bezerra de Idalzira. Não por acaso, Erivan, o caçula, perde completamente a modéstia para seguir a tradição, quando afirma sua pertença a esse clã. Diz ele, numa bela quadra: “Eu sou a pedra turquesa/Minha mãe é uma safira/Sou filho de Idalzira/Poeta por natureza.” E não está mentindo, pois se trata de uma família onde o cultivo da arte poética é bem herdado, estando justificada a admiração recíproca, embora, como afirma com autoridade Joan, o filho mais velho, a mestra indiscutível seja a mãe.
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Visitei o Cedro, quinze anos depois de haver lá morado, dessa vez como repórter, e também Morada Nova, outro município onde havia do mesmo modo trabalhado como educador em cooperativas de pequenos produtores de algodão. Outra era a realidade. Distritos e sítios esvaziados, plantações abandonadas. Comércio mais ativo só no dia de pagamento dos aposentados. A população envelhecera, o interior definhara. No Cedro as poucas indústrias, casas de comércio maiores e centros educacionais haviam fechado. A juventude emigrara. Nos sítios, principalmente, estabelecera-se um sentimento de abandono na fala dos velhos.
Talvez por isso, a sensação que me veio ao ler a carta de Idalzira para Joan sobre o mote: “De uma casa cheia de gente/Só resta um gato e um cancão”, foi o de estar frente a uma nova “Triste Partida”, de um canto social, como o de Patativa do Assaré. Um canto de tristeza dos que ficaram e, porque não dizer também, dos que partiram. De uma família de sitiantes que vê seus filhos irem-se, um a um, às vezes para nunca regressarem. Por isso, o canto de Idalzira é geral e dói além de sua dor particular. É a dor do migrante e de sua terra, é a dor de dois terços do mundo. É a dor de um coração partido.
Mas a dor de Idalzira é também só dela e única, porque se foi Joan e depois, tão menino ainda, Erivan, o caçula. Logo ele. Nem adiantou o consolo da visita à residência universitária e o conselho ao filho, de colocar na parede uma gravura do sol brincando com a lua, no lugar da foto de uma mulher nua (na certa por causa da rima, pois ela queria certamente era que o filho colasse a gravura de uma santa). Nada preenche o vazio na casa após a partida dos filhos. Nem os bichos: “O cancão, meu grande amigo/Canta e pula sem parar/O gato fica a miar/Pensando que não lhe ligo/Porém baixinho lhe digo/Não tenha ciúme não/Que é grande meu coração/Amo a todos igualmente./De uma casa cheia de gente/Só resta um gato e um cancão…”
Se para quem fica o vazio não tem tamanho, para quem vai a dor tem a mesma proporção, como mostram esses versos antológicos de Joan: “Volto a pegar no papel/Pra mais uma vez escrever/Tentar assim combater/Esta saudade cruel/Que amarga como fel/Corrói o peito da gente/Dá uma dor tão pungente/Que quase eu dou razão/A quem mata a solidão/Em um copo de aguardente.”
E o que é tão grande para uma mãe quanto o vazio de uma casa sem os filhos? Um vazio que nem a zoada de um cancão e de um gato, de madrugada pedindo comida, abala? O que pode preencher a espera de uma mãe solitária enquanto sonha em reunir a família no final do ano? A poesia, Sultão! Responderia a princesa Sherazade.
A maga Idalzira também é iniciada nesse segredo. Para preencher o vazio de seu mundo, armou uma dimensão de versos e rimas. Fez-se aranha rainha, lançou suas linhas e estendeu sua teia entre os caibros, ligando filhos e netos. Dor e solidão, distância e separação, espera e abandono tratou de encantar em poesia. Por carta novamente a prole dos Bezerra deu corpo ao Cedro do velho João. Fez reviver os romances de amor, o lirismo dos trovadores, mas também os torneios cavaleirescos, os desafios, as disputas, os repentes, o humor corrosivo, o sarcasmo até, a valentia, a pabulagem, a briga, a dor, a traição, o ciúme, a intriga (por que não?), todos eles ingredientes indispensáveis para uma cantoria cheia de suspense ou para um cordel repleto de imprevistos.
Na correspondência mantida entre Idalzira, filhos e neta, a vida se faz arte e a realidade se encanta em ficção. Entre afetos e notícias trocados por mãe e filhos, os poetas inserem ingredientes propositalmente artísticos. Primeiro são os filhos que, brincando, fingem querer suplantar a mãe na arte poética. Ela como resposta lhes dá um puxão de orelha: – Respeita Januário! Depois, Joan e Erivan disputam a atenção e o amor de Idalzira simulando brigar por ela. Tudo para impressionar a mãe. E saem por aí, trocando rima, se exibindo para Idalzira, travando desafios, fingindo que a luta é só de brincadeira, pra mãe não se chatear com a arenga dos filhos. Em seguida, vêm os desafios lançados dos filhos à mãe e aceitos para saudar com versos cada neto que nasce, cada filho que casa, cada novo acontecimento na família. Mais adiante, é Joan que, para chamar atenção, se mostra escandalizado com o casamento da irmã e inventa de fazer graça, transformando aquilo num fato extraordinário.
A verdade é que nessa correspondência poética, não se sabe em que direção vai o fingimento, se no sentido de fazer a dor parecer maior para torná-la mais eficazmente artística, ou se no sentido de fazê-la artística para que se torne mais suportável. Não se pode precisar se a queixa da mãe é um pretexto para fazer poesia ou se fazer poesia é uma forma da queixa não se tornar aborrecida (porque sempre com muito bom humor), ou seja, da queixa poder ser feita reiteradamente, isto é, de fingir estar usando o pretexto da queixa para fazer poesia, quando a mãe quer mesmo é se queixar da falta de notícias do filho. Daí vem o dito de Fernando Pessoa colocado na abertura desse texto.
Muitas são cartas comuns como as de mãe orientando o filho, aconselhando o filho que se candidatou a vereador, ou a do filho consolando a mãe saudosa, outras da mãe com críticas e comentários políticos, mas há até mesmo cartas inusitadas como a do filho dando conselhos à mãe, escrita por ele como se aconselhasse uma filha, com muito humor e descontração. Depois entra a neta Geórgia na conversa e mantém o nível poético da correspondência, agora entre avó, filhos e neta.
Afinal, são cartas que ajudam a transformar a saudade em arte, a dor em vida, a solidão em beleza. Cartas que viraram atração entre os amigos de Joan e Erivan, lidas para o coletivo de estudantes. Cartas que, acima de tudo, revelam um imenso amor entre os três, agora quatro, sentimento bem traduzido nesses versos de Erivan para a mãe: “Me despeço de antemão/Já com saudade no peito/Mas sinto que é o jeito/Pois o tempo é um balão/Voando de hora em hora/Minha vontade era agora/Lhe mandar meu coração.”
Por tratar-se de um livro de correspondência poética, entre uma mãe e os seus, a obra já teria assegurado seu interesse e sua originalidade. De quebra, Idalzira ainda nos brinda com uma série de sonetos e outros poemas, em que fala de sua vida, de seus sentimentos, de sua família, de seus alunos e de sua terra, o Cedro. Trata-se, além do mais, de uma crônica do cotidiano rural, de um rico testemunho dos costumes, da política, da vida nos sítios, dos valores morais e do imaginário de uma vila sertaneja, onde ainda havia tempo e espaço para traduzir o mundo em poesia.
(1) Município do Alto Sertão do Pajeú pernambucano, berço de tantos poetas e cantadores famosos, entre os quais Rogaciano Leite e os irmãos Batista, Lourival, Dimas e Otacílio.
* Oswald Barroso é professor universitário, poeta, dramaturgo e pesquisador da cultura popular
Fonte: Portal Vermelho