RESUMO

Partindo do fato de que se trata de um evento voltado para os gestores educacionais da Região Metropolitana de Campinas que atuam em dezenove municípios, considerou-se pertinente iniciar a abordagem do tema da conferência levando em conta o problema das municipalidades no âmbito da questão federativa, o que conduziu, como primeiro ponto, ao exame do significado do regime federativo. Compreendido esse regime como sendo definido pela unidade de vários estados que, preservando suas respectivas identidades, intencionalmente se articulam tendo em vista assegurar interesses e necessidades comuns, passou-se, no segundo momento, a considerar a questão relativa ao Plano Nacional de Educação em sua articulação com o Sistema Nacional de Educação. Esclarecida a relação de dependência e ação recíprocas entre os conceitos de sistema educacional e plano de educação, analisou-se a função precípua dos planos educacionais, a saber, seu caráter de instrumento destinado a introduzir a racionalidade na prática educativa, passando-se a examinar os diferentes sentidos que a noção de racionalidade educativa assumiu na história da educação brasileira desde seu surgimento, na década de 1930, até os dias atuais. Sobre esse pano de fundo a conferência prosseguiu abordando, no terceiro momento, o projeto atual de Plano Nacional de Educação que ora tramita na Câmara Federal. Caracterizada em suas grandes linhas a estrutura do projeto, a atenção voltou-se para dois aspectos: o problema do magistério da educação básica e a questão do financiamento de cujo equacionamento, em verdade, dependem os demais elementos constitutivos do PNE. Considerada a questão relativa ao atual projeto de Plano Nacional de Educação, a conferência entrou no quarto momento abordando, à guisa de conclusão, a gestão federativa da educação em regime de colaboração. Eis como se procurou abrir novas perspectivas para a educação brasileira a partir do encaminhamento adequado do novo Plano Nacional de Educação tal como preconizado no tema central deste 6º Fórum Internacional de Educação da Região Metropolitana de Campinas.

Palavras-chave:
Educação brasileira; Plano Nacional de Educação; Educação no regime federativo; Sistema Nacional de Educação; Regime de colaboração.

1 Conferência proferida na Seção de Abertura do 6º Fórum Internacional de Educação da Região Metropolitana de Campinas e 1º Fórum de Educação de Paulínia em 29 de agosto de 2011.

2 Professor Emérito da UNICAMP, Pesquisador Emérito do CNPq e Coordenador Geral do Grupo Nacional de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil” (HISTEDBR).
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Este VI Fórum Internacional da Região Metropolitana de Campinas, que nesta edição está articulado ao I Fórum de Educação de Paulínia, tem como tema central o Plano Nacional de Educação: perspectivas da educação brasileira.

Como se trata de um Fórum dessa Região Metropolitana na qual se incluem, além de Campinas e Paulínia, Americana, Artur Nogueira, Cosmópolis, Engenheiro Coelho, Holambra, Hortolândia, Indaiatuba, Itatiba, Jaguariúna, Monte Mor, Nova Odessa, Pedreira, Santa Bárbara d’Oeste, Santo Antonio de Posse, Sumaré, Valinhos e Vinhedo perfazendo um total de dezenove municípios, convém tratar do tema considerando o problema das municipalidades no âmbito da questão federativa. Parece-me, com efeito, que é nesse contexto que cabe considerar as perspectivas da educação brasileira que poderão se abrir a partir de um adequado encaminhamento do projeto de Plano Nacional de Educação atualmente em tramitação no Congresso Nacional.

Como se sabe, a Constituição Federal de 1988 elevou os municípios ao status de entes federativos. Ao que parece, essa é uma particularidade brasileira uma vez que as federações se definem, em regra, como a união de Estados que instituem uma instância comum em favor da qual abrem mão das respectivas soberanias preservando, porém, a autonomia.

Comecemos, então, nossa abordagem pela questão federativa dado que é a partir daí que se pode compreender o Estado nacional brasileiro e, em consequência, situar a questão relativa ao
Plano Nacional de Educação.

1. Significado do regime federativo

Se o Estado federativo se contrapõe ao Estado unitário, é importante ter presente que essa contraposição não se confunde com a oposição entre Estado descentralizado e Estado centralizado. Com efeito, os fenômenos da centralização e descentralização podem ocorrer tanto em Estados federados como unificados. Aludirei a isso mais adiante ao me referir de passagem ao Estado brasileiro unificado no século XIX.

Assim, o que distingue o Estado federado do não federado não é o fato de atuar pela via da descentralização ou da centralização. Aquilo que caracteriza a federação é a unidade de vários estados que, preservando suas respectivas identidades, intencionalmente se articulam tendo em vista assegurar interesses e necessidades comuns. Por isso, o nível articulador da federação, a instância que representa e administra o que há de comum entre os vários entes federativos se chama precisamente União3.

Aclarando um pouco mais essa questão importa distinguir federação de confederação. A confederação é a associação de países soberanos que se articulam em função de determinados
3 Nessa análise da questão federativa retomo considerações feitas no texto que apresentei no Painel de Abertura da CONAE, depois publicado na Revista Brasileira de Educação (SAVIANI, 2010).

3 pontos de interesse comum em circunstâncias específicas. Já a federação á a união estável e permanente de estados autônomos, mas não soberanos4. Isto significa que, numa federação, a soberania pertence à União e, por isso, é em seu âmbito que os estados depositam a responsabilidade das relações que se estabelecem com os demais países.

Não obstante a referida distinção, não é incomum a ocorrência de confusão entre federação e confederação5. De certa forma, essa confusão é compreensível uma vez que o movimento federalista, especificamente na Europa, teve como uma de suas vertentes mais fortes a negação do Estado Nacional, como se pode ver nessa constatação de Lucio Levi registrada no verbete “Federalismo” do Dicionário de Política, organizado por Bobbio, Matteucci e
Pasquino:

De fato, do ponto de vista histórico, as determinações positivas da teoria do Federalismo foram se esclarecendo através da experiência da negação da divisão do gênero humano em Estados soberanos.
E já que essa divisão se manifestou numa forma mais aguda na Europa das nações, historicamente o Federalismo se tem definido como a negação do Estado nacional (LEVI. In: BOBBIO, MATTEUCCI e PASQUINO, 1999, p. 476).

Ora, isso ocorre porque, do ponto de vista federalista, postula-se a transformação das nações européias de Estados soberanos em unidades autônomas, mas integrantes de uma federação européia que seria, esta sim, portadora do atributo de soberania. Trata-se, então, de negar os Estados nacionais soberanos, confederados ou não, para afirmar a existência de estados autônomos federados.

Nesse contexto é compreensível, também, o receio de confiar a atribuição educativa por meio do sistema escolar ao governo central que, controlando também o exército, incidiria na “lógica tendencialmente totalitária do Estado nacional, que emprega seu poder para fazer de seus cidadãos bons soldados” (Idem, p. 481).
Diferente é a situação dos “Estados Unidos da América” em que os estados autônomos se uniram numa federação constituindo e afirmando, portanto, um Estado nacional soberano. Nesse caso, assim como ocorre também no Brasil6, negar o Estado nacional a partir de suas unidades

4 Cabe lembrar que o uso dos termos nem sempre corresponde ao preciso significado dos conceitos. Por exemplo, sabemos que a Suíça é também chamada de Confederação Helvética como resultado da união dos diferentes cantões que compunham a Helvetia. No entanto, de fato, trata-se de uma federação, pois os cantões não são soberanos e, por isso, não têm a prerrogativa de estabelecer relações com os demais países. Tal prerrogativa é delegada à União, isto é, ao Estado suíço como ocorre normalmente nos regimes federativos.

5 Para uma análise mais acurada da distinção entre federação e confederação pode-se recorrer aos dicionários de política, entre os quais se destaca o organizado por Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino (1999) no qual os verbetes confederação e federação encontram-se, respectivamente, às p. 218-220 e 475-486.

6 Essa similitude entre a situação dos Estados Unidos e do Brasil não deve, porém, obscurecer o fato de que, enquanto a federação americana se constituiu pela união de estados autônomos (as 13 colônias inglesas que realizaram a revolução de independência), a federação brasileira se constituiu, com a proclamação da República, pela elevação das províncias, antes agregadas ao Estado imperial unificado, à condição de estados autônomos.

4 federativas seria negar a própria federação substituindo-a por uma confederação que implicaria dotar de soberania os estados antes federados.

Feitas essas considerações podemos concluir que, dada uma federação como a brasileira, institui-se uma hierarquia consubstanciada no arcabouço jurídico encabeçado, não por acaso, pela Constituição Federal, descendo-se às Constituições estaduais e às Leis Orgânicas municipais completadas, nos três níveis, por leis complementares e ordinárias. No âmbito dos estados preserva-se um grau específico de autonomia que lhes permite baixar normas próprias, mas sem a plenitude de que goza a União uma vez que devem subordinar-se às diretrizes gerais traçadas pela União, esfera que escapa à sua atribuição. E quando passamos ao nível municipal, a autonomia torna-se bem mais restrita porque, no caso da educação, sequer a Constituição lhes faculta estabelecer normas próprias, o que é admitido apenas em caráter complementar pela LDB.

Deve-se frisar, contudo, que a diferença de graus de autonomia não significa redução de importância para as instâncias que detêm menor autonomia. É comum afirmar-se que o município é a instância mais importante, pois é aí onde, concretamente, vivem as pessoas. Desse ponto de vista, o estado e a União se configuram como instâncias abstratas, já que sua realidade se materializa, de fato, no recorte dos municípios. Ora, mas se assim é, então está claro que a configuração dos estados e da União, sua estrutura, sua organização e administração são operadas por indivíduos concretos, cidadãos reais, ou seja, os habitantes dos municípios. Portanto, se a autonomia se concentra mais nos estados do que nos municípios é porque no âmbito do estado ela se exercita em relação a todos os municípios que o integram e não apenas por parte de cada município em confronto com os demais. O mesmo se diga da União, cuja autonomia se exerce em relação a todas as unidades federativas e não apenas na contraposição entre elas.
Em última instância, são os munícipes que atuam simultaneamente nas três instâncias que, obviamente, se fortalecem reciprocamente na medida em que se estreitam os laços de articulação que as unem em torno de propósitos e interesses comuns.

Não cabe, pois, postularem-se autonomias artificiais enunciando discursos que não correspondem à realidade efetiva. No caso da educação, para ficar no nosso campo de interesse, o discurso da autonomia local ou regional com as normas decorrentes teve efeitos bem diferentes do proclamado, o que pode ser constatado tanto no plano diacrônico, isto é, historicamente, como no plano sincrônico, ou seja, nas condições atuais. Assim, por exemplo, a historiografia registra que o Ato Adicional de 1834 teve o propósito de descentralizar a instrução primária conferindo maior grau de autonomia às províncias, o que lhes permitiria maior margem de criatividade e adequação da instrução às suas necessidades e características específicas. Mas não foi propriamente isso o que ocorreu. A tendência que prevaleceu foi que, embora as reformas do governo imperial tivessem validade apenas para o chamado município neutro, isto é, a cidade do Rio de Janeiro, capital do Império, as províncias acabavam por tomá-las como modelo na organização da instrução pública nos respectivos territórios reproduzindo as mesmas medidas adotadas pelo governo central.

5 A partir de um estudo minucioso das fontes primárias representadas pela legislação educacional do Império brasileiro e pelos relatórios dos presidentes de províncias e dos inspetores de instrução pública, André Castanha analisou os currículos da escola primária, os métodos de ensino, os castigos e prêmios, os livros e manuais didáticos, o perfil dos professores, as condições para o exercício do magistério, as escolas normais e os alunos-mestres (CASTANHA, 2007, p. 404-494), constatando significativas semelhanças nesses diferentes aspectos nas províncias estudadas, o que se explica pelo fato de que “as províncias seguiram as orientações dos centros mais desenvolvidos, especialmente da Corte e Província do Rio de Janeiro, reproduzindo nas respectivas legislações provinciais os mesmos princípios e dispositivos do centro irradiador” (Idem, p. 510).
E isso vem se repetindo, em maior ou menor grau, até os dias atuais.
Por outro lado, é preciso também ter presente que a melhor forma de fortalecer as instâncias locais não é, necessariamente, conferir-lhes autonomia deixando-as, de certo modo, à própria sorte. Na verdade, a melhor maneira de respeitar a diversidade dos diferentes locais e regiões é articulá-los no todo, e não isolá-los. Isso porque o isolamento tende a fazer degenerar a diversidade em desigualdade, cristalizando-a pela manutenção das deficiências locais. Inversamente, articuladas no sistema, enseja-se a possibilidade de fazer reverter as deficiências, o que resultará no fortalecimento das diversidades em benefício de todo o sistema.
Uma compreensão mais precisa do significado e implicações do regime federativo nos permitiria assumir com maior radicalidade e coerência essa condição, o que redundaria em importante simplificação do aparato jurídico com economia de esforços e ganho de eficiência e eficácia no funcionamento das instituições.
Assim, seria dispensável que cada estado devesse elaborar as respectivas constituições repetindo tudo que lhe compete acatar da Constituição Federal, acrescentando-lhe as normas específicas. Como membros da Federação é deles, isto é, dos estados, a Constituição Federal. Pois não é isso o que o próprio nome está dizendo quando a constituição é adjetivada de “federal”? As constituições dos estados poderiam, simplesmente, começar com o seguinte cabeçalho: “Com base no cumprimento integral das normas estabelecidas na Constituição Federal, o estado (do Amazonas) reger-se-á pelas seguintes normas específicas”. Algo semelhante ocorreria com as leis orgânicas dos municípios em relação às respectivas constituições estaduais.

De modo similar, também na educação, constituído o sistema nacional, suas normas se estendem a todos os estados e municípios, o que dispensaria a estes de reiterar as prescrições comuns, bastando estabelecer as normas tendentes a ajustar aquelas regras comuns às particularidades de cada estado ou município. Obviamente isso vale também para o Plano Nacional de Educação.

2. Sobre o Plano Nacional de Educação articulado ao Sistema Nacional de Educação

Esclarecido o significado do regime federativo que define o caráter do Estado nacional brasileiro, cumpre abordar a questão do Plano Nacional de Educação em articulação com o Sistema Nacional de Educação.

6 De fato, há uma íntima relação entre esses dois conceitos. O sistema resulta da atividade sistematizada; e a ação sistematizada é aquela que busca intencionalmente realizar determinadas finalidades. É, pois, uma ação planejada. Sistema de ensino significa, assim, uma ordenação articulada dos vários elementos necessários à consecução dos objetivos educacionais preconizados para a população à qual se destina. Supõe, portanto, o planejamento. Ora, se “sistema é a unidade de vários elementos intencionalmente reunidos, de modo a formar um conjunto coerente e operante” (SAVIANI, 2008, p.80), as exigências de intencionalidade e coerência implicam que o sistema se organize e opere segundo um plano. Conseqüentemente, há uma estreita relação entre sistema de educação e plano de educação.

Podemos dizer que a formulação do plano nacional de educação se põe como uma exigência para que o sistema nacional de educação mantenha permanentemente suas características próprias. Com efeito, é preciso atuar de modo sistematizado no sistema educacional; caso contrário, ele tenderá a distanciar-se dos objetivos humanos, caracterizando-se especificamente como estrutura (resultado coletivo não-intencional de práxis intencionais individuais). Este risco é particularmente evidente no fenômeno que vem sendo chamado de “burocratismo”. Este consiste em que, a um novo processo, se apliquem mecanicamente formas extraídas de um processo anterior. Assim sendo, o funcionamento do sistema acaba caindo numa rotina em que as ações se tornam mecânicas, automáticas, rompendo-se o movimento dialético ação-reflexão-ação que é condição sine qua non da educação sistematizada e, portanto, da prática educativa própria do sistema educacional. Isso porque o modo de existência do homem é tal que uma práxis que se estrutura em função de determinado(s) objetivo(s) não se encerra com a sua realização, mas traz a exigência da realização de novos objetivos, projetando-se numa nova práxis (que só é nova pelo que acrescenta à anterior e porque a pressupõe; na realidade prolonga-a num processo único que se insere na totalidade do existir).

Portanto, para que o sistema permaneça vivo e não degenere em simples estrutura burocratizando-se, é necessário manter continuamente, em termos coletivos, a intencionalidade das ações. Isso significa que em nenhum momento se deve perder de vista o caráter racional das atividades desenvolvidas. E o plano educacional é exatamente o instrumento que visa introduzir racionalidade na prática educativa como condição para se superar o espontaneísmo e as improvisações que são o oposto da educação sistematizada e de sua organização na forma de sistema.

Mas se o plano educacional é instrumento de introdução da racionalidade na educação, é preciso ter presente que há diferentes tipos de racionalidade.

Historicamente, no Brasil, podemos identificar a origem da idéia de plano na educação a partir da década de 1930. Sua primeira manifestação explícita nos é dada pelo “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” lançado em 1932.

O conceito de plano, no âmbito do “Manifesto”, assume o sentido de instrumento de introdução da racionalidade científica no campo da educação em consonância com o ideário escolanovista para o qual “os trabalhos científicos no ramo da educação já nos faziam sentir, em

7 toda a sua força reconstrutora, o axioma de que se pode ser tão científico no estudo e na resolução dos problemas educativos, como nos da engenharia e das finanças” (Ibid.: p.409).

Esse entendimento influenciou, por certo, a Constituição Brasileira de 1934 cujo artigo 150, alínea a) estabelecia como competência da União “fixar o plano nacional de educação, compreensivo do ensino de todos os graus e ramos, comuns e especializados; e coordenar e fiscalizar a sua execução, em todo o território do país”.

A mesma Constituição de 1934 previu, ainda, no artigo 152, um Conselho Nacional de Educação, cuja principal função seria a de elaborar o Plano Nacional de Educação.

Enquanto para os educadores alinhados com o movimento renovador o plano de educação foi entendido como um instrumento de introdução da racionalidade científica na política educacional, com Getúlio Vargas e Gustavo Capanema o plano se converteu, no Estado Novo (1937-1945) em instrumento destinado a revestir de racionalidade o controle político-ideológico exercido pela política educacional.
Para Capanema “a promulgação de uma lei geral de ensino, ou seja, de um Código da Educação Nacional, apresentava-se como condição prévia para a elaboração de um plano de educação” (HORTA, 1997, pp.149-150) que, por sua vez, se constituiria na “base e roteiro das providências de governo” no âmbito educacional.

No período compreendido entre 1946 e 1964 observa-se uma tensão entre duas visões de Plano de Educação que, de certo modo, expressa a contradição entre as forças que se aglutinaram sob a bandeira do nacionalismo desenvolvimentista que atribuíam ao Estado a tarefa de planejar o desenvolvimento do país libertando-o da dependência externa, e aquelas que defendiam a iniciativa privada contrapondo-se à ingerência do Estado na economia e àquilo que taxavam de monopólio estatal do ensino. Ambas essas tendências repercutiram no debate que se travou por ocasião da discussão no Congresso Nacional do projeto da nossa primeira Lei de Diretrizes e bases da Educação Nacional.

Na discussão da LDB prevaleceu a segunda tendência que defendia a liberdade de ensino e o direito da família de escolher o tipo de educação que deseja para seus filhos, considerando que a ação planificada do Estado trazia embutido o risco de totalitarismo. Em decorrência dessa orientação a idéia de Plano de Educação na nossa primeira LDB ficou reduzida a instrumento de distribuição de recursos para os diferentes níveis de ensino. De fato, pretendia-se que o Plano garantisse o acesso das escolas particulares, em especial as católicas, aos recursos públicos destinados à educação.

Assim, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, promulgada em 20 de dezembro de 1961, se refere a “plano de educação” no parágrafo segundo do artigo 92. Após estabelecer que “com nove décimos dos recursos federais destinados à educação, serão constituídos, em parcelas iguais, o Fundo Nacional do Ensino Primário, o Fundo Nacional do Ensino Médio e o Fundo Nacional do Ensino Superior” (parágrafo primeiro), o parágrafo segundo determina que “o Conselho Federal de Educação elaborará, para execução em prazo determinado, o Plano de Educação referente a cada Fundo”.
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Designado para relatar o Plano Nacional de Educação no Conselho Federal de Educação, Anísio Teixeira esclareceu o sentido do preceito legal e arquitetou um procedimento engenhoso para a distribuição dos recursos, detalhando-o no que se refere ao plano do Fundo Nacional do Ensino Primário. Foi esse procedimento que inspirou a criação, em 1996, do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), orientação que foi mantida com a substituição do FUNDEF pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB) em dezembro de 2006.

A partir de 1964 o protagonismo no âmbito do planejamento educacional se transfere dos educadores para os tecnocratas o que, em termos organizacionais se expressa na subordinação do Ministério da Educação ao Ministério do Planejamento cujos corpos dirigente e técnico eram, via de regra, oriundos da área de formação correspondente às ciências econômicas.

Essa tendência se explicita na reforma do ensino traduzida pela Lei 5.692/71 cujo artigo 53 define que “o Governo Federal estabelecerá e executará planos nacionais de educação, esclarecendo no parágrafo único que o planejamento setorial da educação deverá atender às diretrizes e normas do Plano-Geral do Governo, de modo que a programação a cargo dos órgãos da direção superior do Ministério da Educação e Cultura se integre harmonicamente nesse Plano-Geral” (SAVIANI, 1996, p.136). Nesse contexto os planos para a área de educação decorriam diretamente dos Planos Nacionais de Desenvolvimento(PNDs) recebendo, por isso mesmo, a denominação de “Planos Setoriais de Educação e Cultura”(PSECs).

Com o advento da “Nova República” passou-se “de uma estratégia de formulação de políticas, planejamento e gestão tecnocrática, concentrada no topo da pirâmide no governo autoritário, para o pólo oposto, da fragmentação e do descontrole, justificado pela descentralização, mas imposto e mantido por mecanismos autoritários” (KUENZER, 1990, p.61).

Já o último PNE, que vigorou até 9 de janeiro deste ano de 2011, resultou de duas propostas: uma elaborada pelo MEC na gestão Paulo Renato do governo FHC e outra gestada no II Congresso Nacional de Educação. A proposta do MEC, dado o empenho em reorganizar a educação sob a égide da redução de custos traduzida na busca da eficiência sem novos investimentos, se revela um instrumento de introdução da racionalidade financeira na educação. Já a segunda proposta, considerando o empenho em se guiar pelo princípio da “qualidade social”, poderíamos considerar que entende o plano como um instrumento de introdução da racionalidade social na educação.

Em suma, na década de 1930, o conceito de plano assumiu o sentido de introdução da racionalidade científica na educação; no Estado Novo, metamorfoseou-se em instrumento destinado a revestir de racionalidade o controle político-ideológico exercido pela política educacional; com a LDB de 1961 se converteu em instrumento de viabilização da racionalidade distributiva dos recursos educacionais; no regime militar se caracterizou como instrumento de introdução da racionalidade tecnocrática na educação; na Nova República sua marca foi o democratismo com o que a idéia de introduzir, pelo plano, uma espécie de racionalidade 9 democrática, se revestiu de ambigüidade; finalmente, na era FHC, o plano se transmutou em instrumento de introdução da racionalidade financeira na educação.
3. Sobre o atual projeto de Plano Nacional de Educação

Pelo exposto podemos considerar que sistema e plano interagem na forma de ação e dependência recíprocas. O plano supõe e depende do sistema. Supõe o sistema porque as metas definidas no plano decorrem do diagnóstico efetuado sobre o funcionamento do sistema; e depende do sistema para a realização das metas propostas. O sistema, por sua vez, também supõe e depende igualmente do plano, pois é por ele que o sistema se constitui como tal e é dele que emanam as metas e os meios que orientam e asseguram o funcionamento do sistema.

No contexto atual da educação brasileira essa articulação entre sistema nacional e plano nacional de educação se manifestou no tema central da Conferência Nacional de Educação – CONAE realizada em 2010.

Em que pese o objetivo de articulação é possível constatar que enquanto a questão do sistema nacional ainda se encontra nebulosa e um tanto indefinida, em relação ao plano nacional de educação se avançou bem mais, já que dispomos de um projeto encaminhado ao Congresso Nacional definindo o PNE que deverá vigorar nos próximos dez anos.

Aparentemente esse novo projeto de PNE avançou em relação ao plano anterior, pois teria sido concebido com uma estrutura bem mais enxuta já que em lugar das 295 metas do PNE aprovado em janeiro de 2001, o atual projeto concentra-se em 20 metas. No entanto, numa observação mais atenta, verificamos que esse enxugamento é apenas aparente porque, de fato, as 20 metas se desdobram em 175 estratégias que operam como sub-metas específicas em relação às 20 metas de caráter geral. Poder-se-ia dizer que, mesmo assim, há um ganho significativo já que o foco está posto em 20 metas centrais, ficando em segundo plano seu desdobramento em estratégias ou metas específicas. Mas essa observação é igualmente apenas aparente, pois no plano anterior nós também tínhamos o foco posto nos grandes setores da educação que, ao fim e ao cabo, correspondem às 20 metas gerais do projeto atual.

Com efeito, as metas do plano anterior se distribuíam por onze setores, a saber: educação infantil; ensino fundamental; ensino médio; educação superior; educação de jovens e adultos; educação a distância e tecnologia educacional; educação tecnológica e formação profissional; educação especial; educação indígena; magistério de educação básica; e financiamento e gestão. Na verdade, as vinte metas do novo plano giram em torno desses setores funcionando as estratégias como metas específicas equivalentes às metas em que se desdobram os onze setores referidos. Senão, vejamos:

No projeto do novo plano a meta 1 trata da educação infantil; as metas 2 e 5, do ensino fundamental; meta 3, ensino médio; meta 4, educação especial; meta 6, organização do espaço-tempo da educação básica; meta 7, avaliação da educação básica; metas 8, 9 e 10, educação de jovens e adultos; meta 11, educação profissional; metas 12, 13 e 14, educação superior; metas 10 15, 16, 17 e 18, magistério e servidores da educação básica; meta 19, diretores de escola; e meta 20, investimento em educação.

Como se vê, as estruturas de cada um dos planos não são muito diferentes. Claro que certo enxugamento, embora relativo, não deixou de existir e consistiu basicamente na exclusão das considerações relativas ao diagnóstico e às diretrizes de cada setor, que integravam o plano anterior, e na redução do número global de metas de 295 para 195. Mas a ausência do diagnóstico também torna o plano mais frágil. Isso porque o diagnóstico, enquanto caracterização da situação com seus limites e carências, fornece a base e a justificativa para o enunciado das metas que compõem o plano a ser executado. Sem ele, várias das metas resultam arbitrárias, não se entendendo, por exemplo, porque se pretende “elevar a taxa de alfabetização da população com 15 anos ou mais para 93,5% até 2015 e erradicar, até 2020, o analfabetismo absoluto e reduzir em 50% a taxa de analfabetismo funcional”, como o enuncia a Meta de número 9. Só mais um exemplo: “Meta 12: Elevar a taxa bruta de matrícula na educação superior para 50% e a taxa líquida para 33% da população de 18 a 24 anos, assegurando a qualidade da oferta”. O diagnóstico nos permitiria entender a razão desses números. Sem ele ficamos sem saber por que se fixou a meta em 50% e não, por exemplo, em 40 ou 60%.

Na verdade, o novo plano deveria ter, preliminarmente, procedido a uma revisão detida e cuidadosa do PNE anterior refazendo o diagnóstico das necessidades educacionais a serem atendidas pelo Sistema Educacional. E esse trabalho deveria, evidentemente, ser realizado já em perfeita sintonia com os encaminhamentos relativos à construção do Sistema Nacional de Educação.

Nesse trabalho seria preciso tirar proveito das lições decorrentes da elaboração do plano anterior. Caberia, a meu ver, repensar a estrutura do plano concentrando-se nos aspectos fundamentais e, em conseqüência, enxugando o texto e reduzindo o número de metas seja pela aglutinação daquelas afins, seja fixando-se nos aspectos mais significativos. Isso se fazia necessário para viabilizar o acompanhamento e o controle tendo em vista, por um lado, avaliar o grau em que o plano estará sendo posto em prática e, por outro, cobrar dos responsáveis o efetivo cumprimento das metas. Com efeito, há de se convir que é muito difícil à população ter presente um conjunto de 195 metas para acompanhá-las de perto e vigiar para que sejam efetivadas.

Ao efetuar o diagnóstico e traçar as metas seria necessário tomar como referência os níveis e modalidades de ensino. Uma estratégia a ser adotada poderia ser definir as metas gerais deixando-se o detalhamento para ser efetuado no âmbito das instâncias do Sistema Nacional de Educação, responsáveis pela execução das referidas metas. À guisa de ilustração, tomemos o seguinte exemplo: considerando-se que todas as questões de infra-estrutura ligadas às condições de funcionamento e manutenção dos prédios escolares ficarão a cargo dos municípios, definida a meta, digamos, de adequação, em cinco anos, de todas as escolas aos padrões estabelecidos, cada município deverá detalhar, à luz de sua situação específica, os procedimentos que conduzirão ao cumprimento da meta no prazo estipulado.

Complementarmente à questão da revisão da estrutura do plano é necessário atentar para os mecanismos a serem previstos tendo em vista a garantia de que o plano seja, de fato, colocado
11 em prática. A lei n. 10.172, que instituiu o PNE cuja vigência se encerrou em janeiro do corrente ano previu, no art. 3º, avaliações periódicas da implementação do plano estabelecendo, no § 1º, o acompanhamento de sua execução pelo Poder Legislativo e determinando, no § 2º, que a primeira avaliação seria feita no quarto ano de vigência do plano. No entanto, nada disso foi feito. É importante que agora, na formulação do novo PNE, essas questões sejam devidamente equacionadas.

Evidentemente não cabe, no tempo destinado a esta conferência, analisar as 20 metas e suas 175 estratégias enunciadas no projeto do novo Plano Nacional de Educação. Vou me limitar a dois pontos que, a meu ver, são centrais e condição necessária e indispensável para viabilizar todos os demais. Trata-se do problema do magistério da educação básica e da questão do financiamento.
3.1. O problema do magistério da educação básica no projeto do novo PNE

O adequado equacionamento do magistério é crucial porque dele depende o alcance das metas voltadas para a elevação da qualidade da educação básica.

A questão do magistério envolve dois aspectos reciprocamente relacionados entre si: a formação e o exercício docente.

O entendimento de que o trabalho docente é condicionado pela formação resulta uma evidência lógica, assumindo caráter consensual o enunciado de que uma boa formação se constitui em premissa necessária para o desenvolvimento de um trabalho docente qualitativamente satisfatório. Inversamente, é também consensual que uma formação precária tende a repercutir negativamente na qualidade do trabalho docente.

No entanto, embora esse aspecto não seja muito enfatizado, constitui também uma evidência lógica que as condições do exercício do magistério reciprocamente determinam a qualidade da formação docente.
E isso ocorre em vários sentidos.

Um primeiro sentido se evidencia no fato de que a formação dos professores se dá, também, como um trabalho docente por parte dos formadores. Portanto, se as políticas educativas, como regra geral não priorizam o provimento de condições adequadas para a realização do trabalho docente, também os cursos de formação dos professores se desenvolverão em condições insatisfatórias, o que resultará numa formação igualmente insatisfatória.

Num segundo sentido, observa-se que as condições de trabalho docente das escolas a que se destinam os professores em formação também influenciam a própria formação na medida em que o processo formativo implica o aspecto prático que tem como referência a rede escolar onde os estágios devem ser realizados. Ora, se o funcionamento das escolas é precário, os estágios também serão precários e, no limite, podem até mesmo ser inviabilizados ou reduzidos a procedimentos meramente formais.

Finalmente – e este talvez seja o aspecto mais importante – as condições de trabalho docente têm um impacto decisivo na formação, uma vez que elas se ligam diretamente ao valor 12 social da profissão. Assim sendo, se as condições de trabalho são precárias, isto é, se o ensino se realiza em situação difícil e com remuneração pouco compensadora, os jovens não terão estímulo para investir tempo e recursos numa formação mais exigente e de longa duração. Em conseqüência, os cursos de formação de professores terão de trabalhar com alunos desestimulados e pouco empenhados, o que se refletirá negativamente em seu desempenho.

Considerando a situação atual da educação brasileira, há dois pontos de estrangulamento referentes aos dois aspectos articulados na questão do magistério que precisam ser sanados. Trata-se da carreira docente e da formação.

Para dar efetividade ao enunciado de que os professores serão as verdadeiras autoridades da educação, conforme a afirmação da presidenta Dilma em seu discurso de posse, é necessário instituir a carreira dos profissionais da educação aumentando significativamente o valor do piso salarial dos professores e estabelecendo a jornada de tempo integral em uma única escola com no máximo 50% do tempo destinado a ministrar aulas. O restante do tempo será dedicado à preparação de aulas, correção dos trabalhos dos alunos, atendimento diferenciado aos alunos com mais dificuldades de aprendizagem, participação na elaboração e implementação do projeto político-pedagógica e na gestão da escola e atendimento a eventuais necessidades da comunidade ligadas à educação. Como foi assinalado, sem desatar esse nó, sem a valorização da profissão, isto é, sem o reconhecimento do valor social do trabalho docente traduzido em boas condições de exercício profissional e salários dignos, a própria questão da formação não poderá ser resolvida adequadamente.

Paralelamente será preciso criar uma rede pública consistente de formação de professores ancorada nas universidades públicas. Isso é indispensável para corrigir uma grande distorção do processo de formação docente no Brasil que se constitui no outro ponto de estrangulamento de todo o sistema educacional.

A referida distorção é a seguinte: a grande maioria dos docentes que atuam nas redes públicas de educação básica do país é formada em instituições particulares de ensino superior de duvidosa qualidade. Com isso a educação básica pública fica refém do ensino privado mercantilizado, sem possibilidade de resolver seus problemas de qualidade, o que aprofunda a situação iníqua de um cruzamento perverso entre as redes públicas e privadas, nos seguintes termos: os membros das camadas populares têm acesso a um ensino público básico de qualidade insatisfatória, o que faz com que, se quiserem ter acesso ao ensino superior, terão de pagar por um ensino privado igualmente de qualidade insatisfatória. Em contrapartida, os membros das elites têm acesso a um ensino privado básico de boa qualidade, o que lhes permite ocupar as reduzidas vagas das universidades públicas igualmente de boa qualidade. É preciso, pois, criar uma rede publica de formação docente em regime de colaboração entre a União e os estados para assegurar o preparo adequado dos professores que irão atuar nas escolas públicas de educação básica.

O projeto de PNE trata da questão do magistério nas metas 15 e 16 (formação) e 17 e 18 (condições de exercício). Apesar de alguns avanços o que se prevê é insuficiente, pois não 13 assegura a formação centrada em instituições públicas e não garante as condições necessárias à carreira docente e ao exercício do magistério.

3.2. A questão do financiamento da educação

O financiamento configura uma condição preliminar indispensável, embora não suficiente. É como o registra a língua espanhola na qual o orçamento é designado pela palavra “pressupuesto”. Sem esse pressuposto todas as demais metas ficam inviabilizadas. No caso brasileiro é necessário aumentar significativamente e de forma imediata os recursos destinados à educação. Ampliar significativamente implica em elevar de maneira substantiva o percentual do PIB investido em educação. De forma imediata significa que se deve evitar a prática usual de diluir a meta de elevação dos gastos ao longo do tempo, geralmente definido em dez anos. Nesse aspecto cabe constatar que, infelizmente, o projeto do PNE deixa muito a desejar. Isso porque a proposta de PNE enviada pelo MEC ao Congresso Nacional prevê atingir, ao longo dos dez anos da vigência do Plano, o índice de 7% do PIB. Ora, essa meta fora fixada no atual PNE aprovado em 2001 para ser atingida em 2010. Vetada pelo então presidente FHC ela agora retorna, porém postergada para 2020. Nessas circunstâncias a proposta aceitável seria atingir 7% agora, em 2011, pois foi isso que o Congresso Nacional aprovou em 2001. E chegar aos 10%, aprovados na CONAE, a partir de 2015.

É, pois, da maior importância uma intensa mobilização para assegurar, no Congresso Nacional, o adequado encaminhamento, no PNE, da questão do financiamento não porque seja garantia da realização das metas, mas porque é condição indispensável, ainda que não suficiente, do seu cumprimento. Nesse aspecto, como já reiterei em várias oportunidades, cabe considerar, à luz do que se proclama como sendo próprio da “sociedade do conhecimento”, a educação como eixo do próprio projeto de desenvolvimento do país. Assim sendo, serão destinados recursos de grande monta para equipar plenamente o sistema nacional de educação estabelecendo-se um patamar para tratar, de fato, a educação com o grau de prioridade que é proclamado nos discursos. E isso é plenamente viável porque os recursos investidos na educação não serão subtraídos da economia, mas, ao contrário, serão seu elemento propulsor dinamizando seus diversos setores representados pela agricultura, indústria, comércio e serviços. Educação é, pois, um bem de produção e não apenas um bem de consumo.

Em síntese, aquilo que se impõe é a mudança do modelo de desenvolvimento econômico. Até agora o modelo vem tendo por eixo o automóvel, o que se evidencia no fordismo, depois substituído pelo toyotismo, com todos os efeitos colaterais negativos daí decorrentes: verticalização das cidades, congestionamento do tráfego, poluição ambiental, aquecimento global, além do seu caráter concentrador da renda com o aprofundamento das desigualdades sociais. A mudança desse eixo para a educação permitirá um desenvolvimento com maior distribuição da renda e estimulador da igualdade social e, além de não apresentar efeitos colaterais negativos, já traz consigo o antídoto aos efeitos negativos, como se constata na educação ambiental, educação para o trânsito etc.

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4. Conclusão: gestão federativa da educação em regime de colaboração

Apesar de se ter invocado recorrentemente, em especial na discussão dos projetos da primeira e da atual LDB, o argumento de que a adoção do regime federativo seria um fator impeditivo da instituição de um sistema educacional no Brasil, esse raciocínio não tem consistência. Contrariamente a essa argumentação, eu diria que a forma própria de se responder adequadamente às necessidades educacionais de um país organizado sob o regime federativo é exatamente por meio da organização de um sistema nacional de educação. Isso porque, sendo a federação a unidade de vários estados que, preservando suas respectivas identidades, intencionalmente se articulam tendo em vista assegurar interesses e necessidades comuns, a federação postula o sistema nacional que, no campo da educação, representa a união intencional dos vários serviços educacionais que se desenvolvem no âmbito territorial dos diversos entes federativos que compõem o Estado federado nacional.

Portanto, nós podemos pensar o desenho institucional do regime de colaboração entre os entes federativos de forma articulada com a construção do sistema nacional de educação que, felizmente, vem sendo aceito amplamente tendo sido objeto de aprovação unânime na Conferência Nacional de Educação (CONAE) realizada entre 28 de março e 1º de abril de 2010.

Atenuado o obstáculo ligado ao sistema nacional de educação persistia, ainda, um problema referente ao regime de colaboração, considerando-se a interpretação de que tal dispositivo dependia de regulamentação. Tal interpretação se reportava ao parágrafo único do Art. 23, cuja redação era a seguinte: “Lei complementar fixará normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional” (VITA, 1989, p. 119).

Para superar a dificuldade representada pela exigência de se regulamentar um assunto com tal grau de complexidade em apenas uma lei foi introduzida, na Emenda nº 53, de 2006, uma nova redação, agora no plural. Com isso a regulamentação poderá ser feita por mais de uma lei, o que permitiria a edição de uma lei específica regulamentando o assunto para a área de educação, sem a necessidade de se esperar que o Congresso Nacional viesse a regulamentar, para todos os casos, a forma na qual deve ocorrer a cooperação entre a União, os Estados/Distrito Federal e os Municípios.

No entanto, data vênia, quando a Constituição Federal introduz o conceito de “regime de colaboração” isso ocorre no Art. 211, que trata da organização dos sistemas de ensino. E, nesse momento, não há menção à exigência de regulamentação por lei complementar. Portanto, penso ser plausível a interpretação de que se trata de um dispositivo auto-aplicável. De qualquer modo, entendo que o lugar próprio para se regulamentar o princípio do “regime de colaboração” é na própria lei que vier a instituir o sistema nacional de educação, dando cumprimento à deliberação aprovada na CONAE.

Assim, na construção do sistema nacional de educação e na efetivação do plano nacional de educação deve-se levar em conta o regime de colaboração entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios, conforme disposto na Constituição Federal, efetuando uma repartição 15 das responsabilidades entre os entes federativos, todos voltados para o mesmo objetivo de prover uma educação com o mesmo padrão de qualidade a toda a população.

Na repartição das responsabilidades os entes federativos concorrerão na medida de suas peculiaridades e de suas competências específicas consolidadas pela tradição e confirmadas pelo arcabouço jurídico. Assim, as normas básicas que regularão o funcionamento do sistema serão de responsabilidade da União, consubstanciadas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e no Plano Nacional de Educação, traduzidas e especificadas pelas medidas estabelecidas no âmbito do Conselho Nacional de Educação. Os Estados/Distrito Federal poderão expedir legislação complementar, adequando as normas gerais a eventuais particularidades locais.

O financiamento do sistema será compartilhado pelas três instâncias, conforme o regime dos fundos de desenvolvimento educacional. Assim, além do FUNDEB, que deverá ser aperfeiçoado, cabe criar também um Fundo de Manutenção da Educação Superior (FUNDES). Se no caso do FUNDEB a maioria dos recursos provém de estados e municípios cabendo à União um papel complementar, em relação ao FUNDES a responsabilidade da União será dominante, entrando os estados apenas em caráter complementar, limitando-se aos casos de experiência já consolidada na manutenção de universidades.
A formação de professores, a definição da carreira e condições de exercício docente constituem algo que dificilmente pode ser confiado aos municípios. Com efeito, a própria LDB, pelo inciso V do artigo 11, os impede de atuar na formação de professores uma vez que poderão se dedicar a outros níveis de ensino ulteriores ao fundamental “somente quando estiverem atendidas plenamente as necessidades de sua área de competência e com recursos acima dos percentuais mínimos vinculados pela Constituição Federal à manutenção e desenvolvimento do ensino” (Lei n. 9.394/96. In: SAVIANI, 2011, p. 188). Dado que a formação de professores ocorre, como regra, no nível superior e, transitoriamente, no nível médio, escapa aos municípios essa atribuição. Segue-se que as questões relativas ao magistério constituem matéria de responsabilidade compartilhada entre União e estados.

A responsabilidade principal dos municípios incidirá sobre a construção e conservação dos prédios escolares e de seus equipamentos, assim como sobre a inspeção de suas condições de funcionamento além, é claro, dos serviços de apoio como merenda escolar, transporte escolar etc.
Efetivamente são esses os aspectos em que os municípios têm experiência consolidada. Os municípios, de modo geral, estão equipados para regular, por uma legislação própria, a ocupação e uso do solo. Rotineiramente cabe às prefeituras examinar projetos relacionados aos mais variados tipos de construção verificando sua adequação à finalidade da obra a ser construída. Assim, quer se trate de moradias, de hospitais, de restaurantes, de igrejas, etc. o órgão municipal irá verificar se o projeto atende às características próprias do tipo de construção preconizado à luz da finalidade que lhe caberá cumprir.

Ora, é evidente que, em se tratando das escolas, as prefeituras também podem cumprir, sem qualquer dificuldade, essa função. Obviamente, isso não impede que os municípios assumam, em caráter complementar e nos limites de suas possibilidades, responsabilidades 16 específicas no campo educacional mesmo no âmbito daquelas funções que cabem prioritariamente aos estados e à União.

Em suma, o sistema nacional de educação integra e articula todos os níveis e modalidades de educação com todos os recursos e serviços que lhes correspondem, organizados e geridos, em regime de colaboração, por todos os entes federativos sob coordenação da União. Fica claro, pois, que a repartição das atribuições não implica a exclusão da participação dos entes aos quais não cabe a responsabilidade direta pelo cumprimento daquela função. Eles participarão por meio dos respectivos colegiados acompanhando e apresentando subsídios que venham a tornar mais qualificadas as decisões tomadas. E assumirão responsabilidades diretas nos aspectos que lhes correspondem por meio das Secretarias e Conselhos Estaduais de Educação e das Secretarias e Conselhos Municipais de Educação sempre que tal procedimento venha a concorrer para a flexibilização e maior eficácia da operação do sistema sem prejuízo, evidentemente, do comum padrão de qualidade que caracteriza o Sistema Nacional de Educação.

Sem desconsiderar a importância de iniciativas dos entes federativos na realização do regime de colaboração exemplificadas pelos casos do Mato Grosso (ABICALIL e CARDOSO NETO, 2010), do Rio Grande do Sul (LUCE e SARI, 2010) e do Ceará (VIEIRA, 2010), penso que devemos caminhar resolutamente na via da construção de um verdadeiro sistema nacional de educação, isto é, um conjunto unificado que articula todos os aspectos da educação no país inteiro, com normas comuns válidas para todo o território nacional e com procedimentos também comuns visando a assegurar educação com o mesmo padrão de qualidade a toda a população do país. Não se trata, portanto, de se entender o sistema nacional de educação como um grande guarda-chuva com a mera função de abrigar 27 sistemas estaduais de ensino, incluído o do Distrito Federal, o próprio sistema federal de ensino e, no limite, 5.565 sistemas municipais de ensino, supostamente autônomos entre si. Se for aprovada uma proposta nesses termos, o sistema nacional de educação se reduzirá a uma mera formalidade mantendo-se, no fundamental, o quadro de hoje com todas as contradições, desencontros, imprecisões e improvisações que marcam a situação atual, de fato avessa às exigências da organização da educação na forma de um sistema nacional.

Em suma, é preciso instituir um sistema nacional em sentido próprio que, portanto, não dependa das adesões autônomas e “a posteriori” de estados e municípios. Sua adesão ao sistema nacional deve decorrer da participação efetiva na sua construção submetendo-se, em consequência, às suas regras. Não se trata, pois, de conferir a estados e municípios, a partir dos respectivos sistemas autônomos, a prerrogativa de aderir ou não a este ou àquele aspecto que caracteriza o sistema nacional. E não cabe invocar a cláusula pétrea da Constituição referente à forma federativa de Estado com a conseqüente autonomia dos entes federados. Isso porque o sistema nacional de educação não é do governo federal, mas é da Federação, portanto, dos próprios entes federados que o constroem conjuntamente e participam, também em conjunto, de sua gestão.

Concebido na forma indicada e efetivamente implantado o Sistema Nacional de Educação, seu funcionamento será regulado pelo Plano Nacional de Educação ao qual cabe, a 17 partir do diagnóstico da situação em que o sistema opera, formular as diretrizes, definir as metas e indicar os meios pelos quais as metas serão atingidas no período de vigência do plano definido, pela nossa legislação, em dez anos.

Se o caminho que acabo de apontar for efetivamente seguido poderemos assegurar que perspectivas bastante favoráveis se abrirão para a educação brasileira com a aprovação do novo Plano Nacional de Educação ora em discussão no Congresso Nacional. Entretanto, se novamente enveredarmos por disputas localizadas perdendo de vista o objetivo maior da construção de um sistema educacional sólido, consistente, regido por um mesmo padrão de qualidade que torne a educação pública acessível a toda a população do país sem uma única exceção, mais uma vez estaremos adiando a solução do problema educativo. E as perspectivas não serão nada animadoras, pois um país que não cuida seriamente da educação de suas crianças e jovens propiciando às novas gerações uma formação adequada está cassando o próprio futuro.

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