Como você está vendo esta Conferência?
Ela é um excepcional momento para que nós possamos discutir as questões relativas ao debate da emancipação da mulher com um grau de profundidade que o cotidiano, ou muitas vezes o funcionamento das instâncias, não o permite. Nesta Conferência nós já saímos com duas vitórias. Primeiro, o processo de preparação, que envolveu 15 mil pessoas, entre homens e mulheres. Mas não é o número que é o novo. O novo é que houve uma participação de homens e de mulheres – que não têm vínculo com o trabalho de massas, específico da União Brasileira de Mulheres – que nos permitiu trocar ideias, difundir a concepção e, sobretudo, comprometer mais e mais comunistas, homens e mulheres, com esse temário.
A segunda grande vitória foi a abertura da Conferência, que contou com a presença da ministra Eleonora Menicucci, com o seu discurso emocionado sobre a sua trajetória, em parceria com o discurso do presidente do PCdoB, Renato Rabelo, que foi colega de UNE da ministra – marcou profundamente a perspectiva de que a concepção emancipacionista tem uma força aglutinadora, mas também impulsionadora. Ela cria perspectivas, cria possibilidades. Motiva as pessoas para continuarem no exercício da política num momento tão complexo como este que vivemos.
Você uma evolução da compreensão do Partido Comunista do Brasil nessa questão da emancipação da mulher?
Eu diria que vivemos um momento especial nos movimentos sociais, que estão em um certo impasse no novo ciclo político criado com a eleição de um operário e com a estruturação de um Estado democrático que absorveu na sua estrutura uma série de demandas do povo, de demandas sociais. O Ministério da mulher, o Ministério da igualdade racial, a Secretaria da Juventude são expressões de que o Estado produzido neste novo ciclo absorve avanços e as demandas dos movimentos sociais. Então, neste momento há um certo reposicionamento sobre como os movimentos sociais realizam as suas lutas.
E é evidente que isso traz novas discussões teóricas. No caso específico do movimento de mulheres, nós vivemos um momento de dúvidas. Quais são os impasses maiores? Logo no começo da construção da corrente emancipacionista o grande impasse era: um pensamento reformista, um pensamento sexista e um pensamento emancipacionista. As reformistas só queriam mudar as leis; as sexistas só queriam fazer com que a luta se desse na esfera entre homem e mulher, num confronto muito mais direto, rebaixado, da luta por direitos; e as emancipacionistas reafirmavam que é preciso incorporar as mulheres na luta política, mas tendo uma perspectiva mais transformadora, estrutural, que é visando à constituição de uma sociedade socialista.
Os marxistas compreendem que a questão da mulher não se reduz a uma questão econômica. Ela se incorpora também às transformações e às polêmicas culturais, à construção de novos valores, e que dentro dessa lógica a corrente emancipacionista avançava. E nós tivemos êxitos nessa luta.
Depois se seguiu um impasse que permeou todos os movimentos de mulheres, que foi na fase do neoliberalismo, onde havia uma fragmentação, onde cada movimento tratava de um tema do movimento de mulheres. Por exemplo, uma turma falava da sexualidade. Outra turma lutava contra a violência. Outra, por direitos políticos. Tudo numa visão fragmentada das concepções pós-modernas.
Superada essa fase – nós também tivemos vitórias porque se passou a tratar sobre a questão da mulher dentro da concepção emancipacionista como um todo, como um ser universal –, nós avançamos nas conquistas respondendo a esse tratamento, mas estamos num novo impasse. Do ponto de vista teórico, qual desafio hoje que a mulher enfrenta? Eu diria que é consolidar a luta pela emancipação universal, pela emancipação humana, pela construção da sociedade socialista como um primeiro passo para a emancipação geral, que se inicia com um esforço de consolidação da emancipação política, que é a conquista de direitos e s conquista de políticas públicas para as mulheres.
Nós ainda não compreendemos – e quando digo nós significa todo o movimento feminista – que a luta pela emancipação política ainda é o grande desafio. Não é apenas a incorporação das mulheres em instâncias de poder, mas uma forma muito mais abrangente. E que nós temos de ter na construção desse novo patamar da emancipação política das mulheres o caminho que permita avançar na busca de uma transformação social.
Fale um pouco do papel de João Amazonas na constituição e evolução dessa corrente emancipacionista.
Eu diria que, logo após o processo de ditadura, e na fase de transição, com a expansão dos movimentos sociais, o Partido passou a buscar construir suas linhas de ação de massas em todas as esferas: juventude, sindical, movimento negro, movimento comunitário e, sem dúvida nenhuma, movimento de mulheres. As primeiras reuniões e as primeiras formulações em torno da construção da corrente emancipacionista foram feitas por João Amazonas. Naquele período, nosso presidente gastava horas, momentos, para fazer reuniões com as mulheres do Partido, e para polemizar em torno de ideias. Ele não chegou com formulações já prontas porque a experiência do movimento comunista na etapa anterior em relação à organização das mulheres estava superada.
E ele começou, com a cabeça aberta, a buscar opções. E além do debate em torno das formulações, João Amazonas teve a ousadia de propor que para Constituinte que se iniciava em 1987, e findava em 1988, já que as eleições foram em 1986, cotas para o corpo diplomático. Sem dúvida nenhuma, aqui no país, do ponto de vista formal, este foi o primeiro movimento simbólico na busca da constituição de cotas. Porque as cotas para chapas eleitorais proporcionais vieram a ser aprovadas enquanto legislação no ano de 1995. Já em 1986, o documento que o PCdoB apresentava para orientar o nosso debate na Constituinte incorporava essa ousada visão de cotas para as mulheres do corpo diplomático, como sendo simbolicamente a sinalização do que seria posteriormente toda a concepção da emancipação da mulher.
João Amazonas não só ajudou a construir a concepção teórica e política concreta como tinha em relação às mulheres comunistas um cuidado muito especial. Por muitas vezes, eu ia de Minas Gerais para me encontrar em São Paulo com ele, num sábado à tarde, meus filhos eram pequenos, e quando eu chegava – viajava de ônibus, evidentemente, naquelas circunstâncias – na sede do PCdoB, João Amazonas estava com um presentinho, mais ou menos ao estilo do que hoje são os presentes de R$ 1,99, para que eu levasse para meus filhos. Ele dizia: “Leve para que eles sintam que na distância, a mãe não esqueceu o filho que deixou em casa. E esse presente é o símbolo disso”.
Eu considero que João Amazonas representou para as mulheres comunistas o maior estimulador da autoconfiança, do acreditar nas possibilidades que cada uma de nós tinha, já que convivemos numa sociedade em que há inseguranças, as dificuldades de ter um espaço político sem dúvida são muito grandes. Por isso que ele é uma expressão do feminismo emancipacionista em nosso país.
Na apresentação do seu informe no VI Congresso, como foi a interação com o Amazonas?
O processo foi essa construção. Nós tivemos uma primeira discussão, eu redigi um texto, fui a São Paulo, João Amazonas fazia críticas do texto, me mandava refazer. Mas ali o aspecto central, que ele apontava e que eu absorvi, na formulação do documento, é que a luta pela emancipação da mulher era tarefa de todo o Partido. Esse era o aspecto central. Evidentemente, também havia uma busca de sugerir às entidades emancipacionistas, de experimentar formas, de buscar construir no cotidiano da vida. Ainda não havia as propostas concretas que hoje o Partido já tem em relação às cotas nas instâncias de direção partidária. A preocupação com a presença efetiva das mulheres nos diferentes movimentos. Mas ali já existia a diretiva de que a questão da mulher era tarefa de todo o Partido.
Você acha que o João Amazonas voltou do exílio influenciado por experiências da Europa, por exemplo, que já tinha uma tradição mais avançada nessa luta pela emancipação da mulher?
João Amazonas era um homem obstinado na busca do estudo, da ciência, e ele nunca deu indicativos de que teria sido motivado por movimentos que ocorreram na Europa. Mas uma frase que ele disse, quando debatíamos sobre a situação da mulher, me deu a indicação de que no período em que ele viveu na Europa já tinha essa preocupação. Ele disse uma vez que o passo fundante da emancipação da mulher havia sido o surgimento da pílula anticoncepcional.
Ele dizia que ali a liberação da sexualidade da mulher permitida pela pílula anticoncepcional era uma expressão de um novo momento em que a mulher poderia iniciar a construção da sua vida, também libertando a sua atividade sexual do processo impositivo da reprodução. Acredito que quando se referia a isso provavelmente ele poderia estar influenciado por um debate que se dava na Europa, mas também por um debate que já estava na sociedade na movimentação cotidiana das mulheres no país.
Existe uma preocupação hoje do PCdoB de atualizar teoricamente, pelos clássicos e pela experiência, a consolidação da corrente emancipacionista?
Eu diria que esse esforço de aprofundamento teórico, de formulação da concepção se inicia nesse movimento de João Amazonas, ao final da década de 1970, mas ele se intensifica e se aprofunda durante a década de 1980 COM o confronto das lideranças feministas comunistas com as teorias que estavam em curso. E teve uma expressão muito particular, e muito decisiva, na contribuição dessa formulação a nossa querida Loreta Valadares – que foi, “até onde me foi possível”, como ela mesma dizia numa poesia pouco antes de morrer.
Se dedicou à releitura, ou à reinterpretação dos clássicos, em confronto com as liberais, para mostrar que o pensamento marxista foi impregnado durante todo o seu tempo da afirmação de que o papel das mulheres na produção e na reprodução tinha que superar as desigualdades, os obstáculos, e ser realizado de forma plena e livre. Acredito que esse foi um intenso período de debate teórico que, eventualmente, esse esforço da atividade política do outro período pode ter deixado um pouco adormecido. Mas esta Conferência foi aberta, exatamente, para enfrentar os novos problemas e os novos desafios teóricos que as mulheres enfrentam neste momento.