A Privatização do Açaí
Pelas sombras das mangueiras Ronílson se esgueirava, procurando fugir de possíveis olhares gordos ou curiosos, tentando passar incólume em busca de mais uma refeição, mais certeza de um pouco de vida, mais um pouco de açaí. Quando criança, uma infância difícil na Cidade Velha, nem tão velha naquele tempo, a felicidade dele e dos irmãos se completava quando a mãe, após uma manhã de árduo trabalho no Ver o Peso, trazia o aguardado líquido vinho, que, somado a farinha grossa e, por vezes, a restos de peixes fritos em óleo velho, preenchiam o vazio de seus corpos famintos.
Essa memória trazia tristeza, pois remetia a saudosas lembranças que este sentia da família, destroçada pela violência que aterrissou em Belém no inicio dos anos 2000, e que se agravava ano a ano. O destino de Socorro e sua prole foi definido por traficantes maranhenses que se instalaram perto de sua casa, encrencando com alguns de seus filhos, levando-os a uma disputa que terminou com a morte de uns, a fuga de outros, abalando o resquício de sanidade que sobrava à corajosa matriarca, levando-a para uma “Casa de Descanso”, fazendo-a, em poucos meses, repousar perenemente junto aos seus já idos. As lembranças esvaiam-se, sobrando às emoções, que não eram suficientes para apagar a fome, que o impelia a receber a dose diária de seu alimento preferido.
Já avistava o Bar do Parque, vindo pelas costas do Teatro da Paz, sem que ninguém o molestasse, nem os mendigos adversários que invejavam seus patrimônios efêmeros, nem os guardas municipais, que sempre encontravam uma forma de rebaixá-lo, seja com palavras seja com tabefes dolorosamente aplicados, em geral na região do plexo, que aumentavam a sensação do vazio estomacal e doíam demais.
A esta altura já no calçadão principal da Praça da República, que abriga o melhor e o pior de Belém, sua historia e suas vontades do presente, a diversão e a dor de um povo que, acima de tudo, é original e bem humorado, continuava em frente. As largas calçadas e a Avenida Presidente Vargas separavam nosso herói de seu manjar.
Todos os dias, por volta das onze da manhã, fazia o mesmo trajeto, saindo do porão de um dos coretos da praça, onde já morava a mais de dois anos, trilhando o mesmo percurso, com o cuidado de evitar os obstáculos mencionados. O objetivo era chegar à portaria do prédio do Banco da Amazônia, onde uma amiga de infância, que teve sorte diversa da sua, comprava um litro de açaí e meio de farinha d’água, aguardando-o, britanicamente, que chegava na hora, mais por seu desespero de subsistir, que pelo orgulho, caso do famoso predicado da cultura inglesa.
Os fins de sem Lia, que para a maior parte das pessoas significa descanso e alegria, para ele eram uma verdadeira desgraça, pois a praça ficava cheia de pessoas e comerciantes que, além de xeretar sua casa, emporcalhavam tudo, atraindo ratos e pombos, que uns de noite e outros de dia, impediam que sua vida fosse menos desesperadora. Alem disso, neste período da sem Lia não havia expediente no BASA, causando um obvio decréscimo em sua dieta, obrigando-o a encontrar outras fontes de caloria, em geral pouco dignas e bastante perigosas.
O sinal fechou e, em meio à multidão que anda por este local neste horário, atravessou a rua, ansiando pelo alimento tão apreciado. Olhou por entre os vidros e madeiras que formavam a porta giratória, característica dos bancos da atualidade, enxergando sua benfeitora. Lia olhou para ele de um jeito diferente, um olhar de tristeza e decepção.
– Oi Ronílson.
– Oi Lia.
– Ronílson, tenho uma notícia chata.
– Que foi? Perguntou Ronílson
– Privatizaram o açaí.
– Como assim?
– E isso mesmo. Uma empresa japonesa esta comprando, desde sexta feira, toda a produção de açaí que chega aos barcos das ilhas e dos tradicionais fornecedores, como Moju, Abaetetuba e Igarapé-Mirim. Eles estão pagando cerca de 40 reais pelo quilo, quase sete vezes mais do que os batedores costumam desembolsar. Quem esta tomando açaí hoje e quem tem condições de garantir cerca de 60 reais o litro do açaí médio, ou 80 reais do grosso, quase dez vezes mais do que as pessoas estavam acostumadas. Fiz questão de comprar um litro pra ti, mas esta será a ultima vez que poderei fazê-lo. A partir de amanha lhe darei uma quentinha.
Um frio subiu pelos pés de nosso amigo, alcançando a espinha e embranquecendo-o. Perdeu parte do equilíbrio e começou a cambalear. Lia, desesperada, gritou pedindo ajuda, pedido este prontamente atendido pelo segurança. Conseguiram conduzi-lo para as cadeiras laterais que jazem contíguas a parede do hall de entrada do poderoso banco verde, oferecendo-lhe água. Aos poucos sua consciência, receosa, voltava.
Sem ter assimilado o desastre estabelecido, Ronílson voltou em ritmo acelerado para sua morada e saboreou o açaí, como se fosse a ultima vez que pudesse fazê-lo. Quando acabou sua iguaria, saboreada vagarosamente e digerida bem aos poucos, sem nem ao menos um copo d’água, para que o gosto não fugisse de seu paladar e pudesse ser garantido o espaço na memória. Logo após a última colherada, o sono pestanejou, embalado pelas poucas, mas tristes lágrimas que desciam por seu rosto. E assim tombou.
Um sono profundo o acometeu, iniciando uma caminhada por vales cheios de palmeiras, verdejantes, sopradas por ventos fortes, com muitas mulheres seminuas caminhando por entres elas, lambuzadas de roxo, brincando entre si e banhando-se num caudaloso rio, tão comuns na Região Amazônica. Todas tinham o mesmo rosto de Lia, com seu corpo magro e bem delineado, seios firmes, mas macios, exatamente como imaginava ser os de sua musa.
Ele continuava sua caminhada, feliz, por estar em meio a mais açaí do que conseguiria consumir por dez vidas e na companhia de centenas de Lias, cuja única atenção dispensada servia diretamente a nosso herói. Em certo momento, sentindo calor, parou em frente ao rio que ondulava nas margens do grande açaizeiro, e tentou alcançar a água. Ela parecia estar perto, mas cada vez que sua mão se aproximava, ela ficava mais distante, até que este se desequilibrou e caiu na água.
Em meio a seu sono, três mendigos adversários seus jogaram um balde de líquido sujo em seu rosto, acordando-o do melhor sonho que já havia sonhado, e onde ele gostaria de ter ficado para sempre. Sua primeira reação foi pegar o pedaço de ferro que guardava para proteger-se e dar no rosto do primeiro arruaceiro, cuja vida esvaiu-se na hora, espantando os demais, que saíram ralhando palavras mais ininteligíveis que o normal.
A esta hora Ronílson já entendia a pendenga em que tinha se metido, esqueceu todo o pouco de coisas que tinha sob sua propriedade e saiu em corrida sem direção. Em sua cabeça jaziam as Lias, o açaí e o rosto do mendigo atingido por sua fúria, além dos sons de buzina, as rizadas e pássaros que se misturavam na grande praça nesse início de final de tarde.
Seu rumo desrumado o levava à fonte do mal originário deste malfadado dia: o mercado do Ver-o-Peso, mundialmente famoso por ser o maior comércio popular concentrado de toda a Floresta Amazônica e que antigamente era espaço da Alfândega Imperial fazer a vista no peso dos gêneros comercializados a partir dali, ganhando este nome em função disso. Lá é que deveriam estar os seus antagonistas, os responsáveis por piorar sua vida, que não era das mais confortáveis.
Seu ódio alimentava o organismo debilitado, injetando adrenalina e fazendo-o correr cada vez mais rápido pela Avenida Presidente Vargas na contramão, levando-o até a Estação das Docas, contígua ao Veropa (termo utilizado pelos paraenses que gostam de ser íntimos do dito mercado). Os pontos de ônibus, cheios de gente, os carros, nada disso foi obstáculo para sua obstinação em fazer algo para mostrar que desaprovava a ação nipônica, externando algo internalizado por décadas: sua indignação com a situação a que ele e sua família foram empurrados e a indiferença que a sociedade manifestou, não se manifestando o assunto.
Já em frente ao Ver-o-peso, seus olhos angustiados escaneavam a feira anárquica em busca de seus algozes. Avistou, de longe, um movimento anormal, com muito barulho e gritaria vindos do ancoradouro. Chegando mais perto, avistou uma carreta de certo porte, cheia de açaí e japoneses gritando ensandecidos com o motorista, que parecia estar fazendo algo bem diferente do combinado. Hipnotizado pela quantidade de frutos sendo carregados no veículo, Ronílson avançou em direção a cena peculiar.
Em frente aos malditos japoneses surrupiadores, ele se pôs a falar:
– Seus desgraçados! Vocês transformam tudo em negocio! Estão arruinando a vida de centenas de milhares de pessoas como eu, que cresceram tomando açaí e que não sabem viver sem este alimento. Porque vocês não vão mexer com seus frutos, seus animais, seu mar? Por que precisam vir ate aqui e trazer a infelicidade, a ganância, fazendo-nos mais pobres, levando embora nosso maior patrimônio: parte de nossa identidade?
Ao mesmo tempo em que falava, gesticulava, chamando a atenção de todos os que ali se encontravam, chegava mais perto do fim da carreta, que estava a receber os derradeiros carregamentos. Suas palavras tocaram no fundo da alma dos paraenses que trabalham diariamente naquele lugar, transtornados com os gritos pouco amistosos que os gringos bradavam contra eles e seus parentes. Passo a passo, aproximavam-se, vibrando de forma parecida, com um misto de obstinação e hostilidade, chegando perto de nosso herói.
– Meus amigos. Por que deixaremos essa turma fazer conosco o que querem, sem ao menos protestar? Não deixarei nem mais um único fruto sair daqui e aqueles que estiverem comigo, juntem-se nesta luta.
Já em torno do líder, a população iniciou ataques tímidos, verbais e físicos, aos japoneses e a seu veiculo abarrotado de açaí. Alguns chutavam as portas, outros escalavam a carroceria, um bom numero deles avançava fisicamente contra os orientais que, atônitos, batiam em retirada, aos poucos, na esperança de que alguém recobrasse a consciência e impedisse-os de continuar seu intuito pouco claro, mas bastante violento.
A multidão aumentou, ficou mais alvoroçada e começou a balançar a carreta, que mal se mexia no inicio, mas devagar, pouco a pouco, embalava e já ameaçava tombar. Como na vida real tudo que pode acontecer de ruim, em geral acaba acontecendo pior, esta cena não fugiu a regra, esmagando cerca de vinte pessoas, dentre elas, Ronílson.
A polícia finalmente se mexeu e foi ajudar, já com os irritantes sons das sirenes de ambulâncias e viaturas dos bombeiros, além dos gritos de mulheres e crianças que já choravam a possível morte de seus maridos e pais. Um dos japoneses não conseguiu escapar, recebendo a fúria Lializada de uma turba disposta a deixar pouco para seus entes enterrarem. Concomitantes a isso pessoas cavavam no açaí em busca dos corpos soterrados.
Caminhando pelos açaizeiros, feliz em olhar de relance a beleza das centenas de Lias que corriam e brincavam inspiradas pelo som das águas e o toque dos ventos que o circulavam sinestesicamente. Ronílson viu, de longe, sua mãe, e, um por um, seus irmãos foram aparecendo, sorrindo, felizes em vê-lo, felizes pela graça de estarem em família, felizes por estarem no paraíso. O olhar sereno da mãe e a certeza da fartura de amor e alimento trouxeram paz a seu coração eliminando a lembrança da frustração e falta. Ele podia descansar, livre, entregou-se para a felicidade.
*Alan Frick é consultor político e escritor