Programa de governo de Aécio Neves: a volta dos que não foram
O jornal Valor Econômico, em sua edição de terça-feira 11 de novembro de 2013, informa que “conselheiros tucanos” têm se reunido com o senador Aécio Neves (PSDB-MG) para formular o programa de governo para a sua candidatura presidencial. O vocabulário é o samba de uma nota só do velho projeto neoliberal, que de tanto ser repetido dói nos ouvidos: melhorar o ambiente de negócios, simplificar tributos, reverter políticas consideradas intervencionistas na economia e abrir mais o país à competição internacional.
Na tradução para um idioma menos áspero, o que eles propõem são medidas como um novo plano de privatizações, contenção do salário mínimo e revisão da política de desonerações. O grupo é integrado por rostos bem conhecidos, ícones da nefasta “era FHC”: Armínio Fraga, Edmar Bacha, Gustavo Franco e Elena Landau. Aécio Neves reforçou os chavões neoliberais ao falar sobre as mudanças que pretende realizar, caso seja eleito. Citou entre elas “a redução da intervenção do Estado na economia” e a adoção de medidas “para deixar nossos custos de produção menos onerosos”. Aécio listou o “resgate dos pilares da nossa economia, como estabilidade da moeda, responsabilidade fiscal e livre flutuação do câmbio”.
O Brasil conhece bem essa receita. A rigor, ela começou a ser implementada ainda nos governos da ditadura de 1964. Em 1979, o então ministro do Planejamento, Mário Henrique Simonsen, ao deixar o comando da equipe econômica recomendou ao seu sucessor, Antônio Delfim Netto, suas ideias sobre “estabilidade”, “necessidade de ajustes” e “austeridade fiscal”. Por trás das palavras de Simonsen estavam concepções plantadas pela ditadura e que resultaram, nos anos 1980, na famosa “década perdida”. Somava-se ao diagnóstico conservador a afirmação de Simonsen de que o Brasil não teria como sustentar o ritmo vigoroso de crescimento dos anos 1970 e que ”duros ajustes” eram necessários.
Debate econômico
O resultado? Bem, não é preciso muito conhecimento sobre economia para saber quem pagou a conta daquele desastre. As marcas na vida do país foram profundas: inflação fora de controle por longos 15 anos, o que originou uma sucessão de fracassados planos econômicos; pouco investimento em atividades produtivas; descrédito internacional e por aí a lista segue. Chegamos à “estabilidade” da “era FHC” e por consequência ao fundo do poço. A reedição dessa ladainha agora indica que infelizmente aquela história está querendo renascer das cinzas. Mais uma vez, duas correntes de opinião divergentes marcam o debate econômico.
A primeira coloca a “estabilidade” acima de tudo. A segunda defende que o país deve buscar crescer mais e mais e explica que isso não será possível sem as medidas que procuram destravar o país. Os conservadores, como sempre, gostam de manipular esse tipo de debate. Há algum tempo, o instituto de pesquisa Vox Populi, de Belo Horizonte, perguntou aos brasileiros se eles preferem mais inflação e mais emprego ou a mesma inflação com o mesmo desemprego. Apenas 11% preferiram a segunda opção, contra 38% que disseram aceitar mais inflação se fosse acompanhada de mais emprego. Foi o sinal para que uma série impressionante de bobagens começasse a aparecer na mídia. Os ”comentaristas” não perderam a oportunidade para atacar ”o vírus do populismo”.
O desenvolvimento do país, ao contrário do que dizem os conservadores, deve sim ser uma obsessão nacional. Sem um horizonte econômico claro, não há como destravar a economia para que ela cresça de forma auto-sustentável. Crescimento sustentado quer dizer que o país consegue financiá-lo de forma não-inflacionária e sem pressões externas. Infelizmente, a economia brasileira, combalida pela gestão desastrosa dos anos da ditadura e da “era FHC”— e que avançou pelo governo Lula com Antônio Palocci —, ainda está longe de alcançar esse objetivo. Muito mais longe do que dizem essas pessoas que pedem mais “estabilidade” mesmo à custa de menos produção e menos investimento público. Felizmente, o país se livrou da ditadura “ortodoxa” e está ingressando num debate sério e democrático para definir o caminho do desenvolvimento.
Teoria do bolo
Em um país com tantas carências, assim que um problema sai da linha de frente outros ocupam seu lugar. E essas carências, que de fato são grandes, só serão resolvidas com anos e anos de crescimento econômico. E só se consegue crescer por muito tempo com planejamento. E com debate democrático — ideia proscrita dos manuais da “ortodoxia”. Infelizmente, ainda é muito presente em nosso cotidiano aquele mecanismo ingrato que impede que o país discuta seu futuro. Um exemplo disso é o mais recente falatório em torno da questão fiscal.
A direita, é óbvio, tem interesse em atravancar o progresso do país. Seguir à risca a receita neoliberal seria repetir o aguçamento daquela calamitosa teoria do bolo, levada a cabo nos anos de ditadura, que partiu o Brasil em dois países antagônicos. Nada melhor para ilustrar a convicção e o sectarismo dessa ideia do que a teoria do bolo — seus defensores têm o ar de quem está sempre descobrindo a pólvora. Na “era FHC” vimos isso com nitidez.
Dizia-se, com a habitual obviedade para encaixar um sofisma, que o bolo (a economia nacional) era um só e tinha de ser dividido em partes iguais. Não adiantava querer aumentar as partes enquanto o bolo fosse o mesmo. A análise monetária-culinária que faziam tinha como mandamento principal a contenção da inflação, sacrificando o desenvolvimento. E era ilustrada com um exemplo matemático — diziam que o bolo tem 100 unidades, logo deve ser dividido em partes que somam 100 ao final. Esta foi, por exemplo, a propaganda da “Lei de Responsabilidade Fiscal”, que blindou o superávit primário. Um engodo, está claro.
Diagnóstico simples
A teoria era a de que quando são destinadas 80 unidades para consumo e 40 para investimentos, o resultado de 120 era a inflação. Para eles, não havia outro caminho. Esta ladainha foi sempre repetida na “era FHC” — o então presidente da República chegou a dizer que a “Marcha dos 100 mil”, que inundou Brasília com um mar de gente para protestar contra a sua política econômica, era “ a marcha dos sem rumo”. Qual seria a alternativa? Segundo eles, não havia.
Ignoraram essa coisa simples de que fórmulas matemáticas não devem substituir o desenvolvimento de um povo que habita uma região cheia de riquezas naturais. A política econômica de um país não pode ser determinada por simples conceitos monetários. Esta auto-suficiência dos neoliberais esclarece muitas coisas dos problemas sociais e econômicos do Brasil. E suscita novas indagações sobre a atualidade do dilema inflação e desenvolvimento — as opiniões divergentes continuam e o tempo ainda não lhe trouxe solução.
Eles ignoram também que não existe um diagnóstico simples e objetivo da inflação. A suposição da existência deste diagnóstico é o erro fundamental dos neoliberais — que tratam política econômica e a sua teoria monetária como a mesma coisa. O ex-presidente do Banco Central (BC) na ”era FHC”, Gustavo Franco, certa vez afirmou que não discutia mais o dilema inflação-desenvolvimento porque, segundo ele, não era mais tema científico, mas emocional e religioso. Mas muita coisa já ficou esclarecida nestes últimos anos dos governos Lula e Dilma.
Tom de profecias
Uma delas é que o dilema inflação-desenvolvimento é o ponto fundamental da grande questão da economia brasileira sob a orientação desta teoria monetária. Já é alguma coisa saber disso. E já se sabe não apenas que esta é a grande questão como também que não existem uma ou duas causas determinantes tanto da inflação quanto do desenvolvimento. Há sim uma variada relação de causas e efeitos igualmente importantes, monetários e estruturais. E isso tornou-se claro depois da experiência dos neoliberais na ”era FHC”, quando todo o tempo foram afirmadas teses ditas únicas para a economia brasileira que chegaram a resultados melancólicos.
Com o desmentido de promessas feitas em tom de profecias, cresceram as evidências de que o país tomara o caminho errado. Mesmo os continuadores dessa política na primeira fase do governo Lula, com o ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci à frente, que empolgaram-se e sectarizaram-se na defesa de teses ”ortodoxas” — talvez por supor que estavam no exercício de um poder absoluto —, foram repudiados por todos os que não rezam pela cartilha neoliberal. Eles incorreram na soberba do galo que pensa que o sol nasce porque ele canta. Segundo sua teoria, a gestão da economia só poderia dar resultados positivos se estivesse submetida às suas elucubrações e por isso cantavam para que o sol nascesse.
O Brasil se livrou desse mantra e, em certa medida, passou a valorizar a necessidade de mecanismos para melhorar a vida da população. A constatação de que o impacto do crescimento econômico sobre o bem-estar da população é decisivo levou imediatamente à pergunta (particularmente importante para os países com muitas pessoas pobres, como é o caso do Brasil): como distribuir a riqueza de forma eficiente? Entre os fatores determinantes para a melhor utilização dos recursos disponíveis está o papel do Estado.
O Brasil e a Finlândia
No fundo, esse é o debate que realmente interessa. Economias do tamanho da brasileira não costumam crescer a taxas acima de 5% ao ano. Mas o Brasil não só necessita dessa taxa como precisa que ela seja contínua. Para reduzir a pobreza, elevando a renda per capita, estudos mostram que o PIB precisa crescer entre 5% e 6% ao ano apenas para incorporar a mão-de-obra que está entrando anualmente no mercado de trabalho. Ou seja: além de crescer, o Brasil precisa distribuir a renda e se desenvolver.
Entre o final dos anos 1960 e o início da década de 1980, o Brasil cresceu a taxas anuais superiores a 8%. Nem por isso as desigualdades de renda diminuíram na mesma proporção. Comparemos esses dados com alguns números da Finlândia, que não cresceu tanto. Sua população de 5 milhões de habitantes tem uma renda per capita em torno de 20 mil dólares, segundo o Banco Mundial. Sob diversos parâmetros — expectativa de vida, taxa de mortalidade infantil, índices de escolaridade —, os finlandeses têm características de país muito mais desenvolvido que o Brasil.
A questão é que países desenvolvidos já possuem usinas de energia, estradas e outras infra-estruturas para atender a suas necessidades. Nesses casos, o crescimento tende a ser naturalmente mais lento. Mas no Brasil ainda há muito por fazer. O país precisa, desesperadamente, de melhorias infra-estruturais. Ou seja: o Brasil não só pode como deve crescer acima de 5%.
Reflexão de Raúl Prebisch
O pensamento progressista latino-americano há tempos discute os obstáculos impostos ao desenvolvimento do sub-continente. A Comissão Econômica Para a América Latina (Cepal) foi a referência maior nesse debate, inaugurado pela reflexão inspiradora de Raúl Prebisch sobre os vínculos desiguais entre as economias centrais e as regiões periféricas, e a necessidade de maior coordenação entre os países da América Latina para superar óbices como a deterioração continuada dos termos de nosso intercâmbio com a Europa e os Estados Unidos.
Sabemos que no Brasil esse desafio não foi enfrentado. O país levou a cabo um extenso programa de substituição de importações, modernizou seu parque industrial, mas manteve largos segmentos inteiramente à margem do processo produtivo, sem acesso às benesses do crescimento. Com poucos governos de visão social, o Estado esteve por muito tempo ausente não apenas da tarefa de distribuir renda mas também da de habilitar toda a sociedade a participar da dinâmica produtiva.
A máquina pública expandiu-se, mas para contemplar interesses elitistas, sem atenção aos reclamos da maioria da população. Na “era neoliberal”, o assédio institucionalizado de setores privilegiados aos canais de decisão foi explícito. Acentuou-se o vício histórico do patrimonialismo, em que o público se vê refém do privado.
Mulas-sem-cabeça
Essa situação começou a mudar com o governo Lula. Com o avanço da cidadania, a sociedade também avançou. Multiplicaram-se as instâncias de representação. Os movimentos populares abriram espaços cada vez mais amplos para o debate público, atuando como uma verdadeira ágora desses novos tempos. Mas o Estado ainda precisa ser mais bem cobrado no desempenho de suas tarefas. Os nichos historicamente privilegiados devem estar sob o crivo de segmentos sociais mais vigilantes para impor limites à privatização do Erário.
O governo federal tem feito esforços para democratizar o Estado, para que ele se torne mais transparente e responsável. Iniciou a concertação do poder público com os movimentos sociais. A descentralização administrativa e orçamentária também concorreu para aproximar a população do gestor público.
No entanto, o governo precisa acelerar a recuperação da capacidade do Estado a fim de fazê-lo cumprir o seu papel. Ou melhor: o Estado precisa se credenciar para cumprir finalmente a meta de universalização dos serviços públicos. Pode-se dizer que estamos passando de um Estado do mal-estar social para a possibilidade de se ter um Estado virtuoso, que assegure a todos brasileiros condições satisfatórias de vida. Sem isso, falar em melhorias das condições de vida dos brasileiros equivale a soltar na praça mais uma dessas mulas-sem-cabeça que os neoliberais tanto gostam de cultuar.