O valor simbólico do gesto de restituição de mandatos cassados ilegitimamente
Difícil traduzir o simbolismo de uma solenidade como a que tomou de emoção a Câmara de São Paulo, na noite de segunda-feira, 9 de dezembro. Por esforço do vereador Orlando Silva (PCdoB) e da Comissão Municipal da Verdade Vladimir Herzog, percorreu-se o século XX, em busca de parlamentares injustiçados, para resgatar a verdade, a memória e a justiça. O resultado foram 42 nomes. Nada mais que isso, sem fotos e sem endereços. Muitos perdidos na poeira dos regimes autoritários que lhes deceparam qualquer ilusão de que parlamentariam em nome dos paulistanos que os elegeram.
Outros tantos puderam comparecer ao belo plenário da Câmara paulistana, seja na forma dos parentes encontrados com dificuldade pela força-tarefa montada para a solenidade, seja pessoalmente, como Armando Pastrelli e Moacir Longo, ambos comunistas perseguidos em períodos diferentes da história brasileira. Pastrelli foi impedido de tomar posse em 1947, em meio a uma democracia, entre aspas, em que nem todas as ideologias tinham lugar; e Longo precisou abandonar o mandato em 1964 para garantir a própria vida, diante do Golpe Militar que avançava sobre a democracia, desmontando todas as casas legislativas pelo país.
Embora houvesse um esforço para revelar por meio de palavras à sociedade e, até mesmo aos parentes de vereadores cassados, que pouco entendiam o que faziam ali, foi por meio de imagens inesperadas, fora do âmbito do plenário, que tudo veio às claras. As imagens colhidas por meio de celulares e câmeras amadoras no hall de entrada da Câmara, após a solenidade, foram a melhor representação de tudo que foi dito durante as horas de cerimônia.
Houve um alegre e comovente tumulto diante da placa de metal descerrada ao lado da escadaria principal, onde foram incluídos os nomes dos 42 parlamentares que não puderam exercer seus mandatos. Todos, filhos, irmãos, netos, sobrinhos, parentes daqueles homens (e uma única mulher), queriam tirar uma foto apontando com o dedo o nome do ente querido que se foi sem poder usufruir daquele momento. Sem saber que, agora, seu nome volta a constar de um espaço nobre entre os mármores do imponente edifício do viaduto Jacareí, no centro de uma das maiores cidades do mundo.
Longo e Pastrelli também reuniram as famílias para a imagem tão reveladora da importância daquele momento. Uma felicidade tão legítima que lhes foi negada por poderes ilegítimos. Houve quem não resistisse e precisasse secar os olhos marejados. Felizmente, àquela hora, a maioria do público e das autoridades presentes na cerimônia já haviam ido embora. Todos podiam fazer sua festinha particular e se emocionar como bem entendessem naquele espaço que sentiam ser um pouquinho seu por alguns momentos.
As palavras? Essas foram belas. Proferidas tanto por aqueles que exercem o poder de legislar e sabem a importância disso, como por aqueles que foram impedidos disso. Todos tatearam por meio da língua, buscando o sentido daquele momento, tocando em lados diferentes do prisma.
Pastrelli disse que ouvira um escritor dizer que no Brasil tudo era grande, menos o homem brasileiro. Diante do que testemunhava naquele momento, o mais novo vereador de São Paulo pode afirmar, do alto de seus 95 anos, que podia considerar que o homem brasileiro (assim como a mulher) também estava à altura de seu país. Comunista que se projetou no movimento sindical, ele é um exemplo nítido do homem que precisa desistir aos poucos dos seus ideais públicos para garantir a segurança da família, diante da perseguição sistemática que sofreu em décadas de vida. Pastrelli morou em inúmeras cidades do país, inclusive no selvagem Território do Amapá (quando ainda nem era um estado autônomo), tentando manter um emprego. Toda vez que vinha a tona sua trajetória comunista, era preciso reiniciar a vida do nada. Até que ele inventou um equipamento gráfico que não existia, “virou burguês” e pode usufruir do conforto que a família desejava. Pode até mesmo oferecer a seus muitos funcionários, as condições de trabalho que sonhou quando era sindicalista.
O vereador Orlando Silva, como vários outros parlamentares comunistas pelo país, foi quem tomou a iniciativa de homenagear os vereadores cassados em 1947. A partir daí, surgiu a proposta de resgatar todos os mandatos que tivessem sofrido o mesmo abuso autoritário, inclusive parlamentares integralistas, que estão no outro lado do espectro ideológico. Como Orlando traduz a cerimônia? “Tenho orgulho de ser o autor da iniciativa que permitiu buscar um reencontro desta Casa com o seu dever com a democracia e com a história de São Paulo”. Ele ainda lembrou que, ao reconhecer o mandato da comunista Elisa Kauffman, cassada em 1947, reescreveu-se a história, pois ela passou a ser a primeira mulher eleita vereadora na cidade de São Paulo. Até então, Anna Lamberga Zeglio, eleita em 1952, era considerada a primeira vereadora paulistana. A jovem vereadora Juliana Cardoso (PT) ficou impressionada com o relato da filha de Elisa, ao descrevê-la como “comunista ardorosa e visceral, que sempre quebrou os códigos e clichês esperados”. Para ela, o sentido da cerimônia está em resgatar um passado de desaparecidos e perseguidos políticos, que muitos tentaram apagar, dizendo que nunca houve.
O presidente da Comissão da Verdade paulistana, vereador Gilberto Natalini (PV), admitiu que a cerimônia era para ele uma mistura de emoções agridoces, provavelmente pela felicidade de poder restaurar o papel daquelas pessoas, mas também pela tristeza de lembrar a interrupção brutal de suas contribuições para a cidade. Perceber que vivemos um momento democrático inédito, mas também olhar pra trás e ver tudo que se perdeu. “Por mais queixosos que possamos estar com o que acontece no país em determinado período, temos que combater aqueles que se levantam achando que o momento está ruim e precisamos apelar para uma alternativa autoritária”, disse o vereador, que já foi preso e torturado durante a ditadura militar, tendo sido parceiro de cela de Moacir Longo, um dos vereadores cassados. “Para consertar os erros da democracia, só a vontade democrática do povo”, afirmou Natalini.
Até uma adolescente, Laura Franciscato dos Santos, membro do Parlamento Jovem da Câmara, buscou expressar como observava aquele momento. Para ela, sem momentos como esse, não saberíamos reconhecer a importância da diversidade política para o país. Sem a consciência dessa importância, disse ela, talvez sofrêssemos algo semelhante ou até pior no futuro.
Para a juíza Clarissa Campos Bernardo, que representou o Tribunal Regional Eleitoral, a efeméride proclama a vitória e consolidação da democracia. Ela fez questão de homenagear o “lendário” desembargador Mário Guimarães, que manteve o registro das candidaturas de 1947, permitindo que a Justiça Eleitoral chegasse a diplomar os eleitos, sendo cassados depois pelo Tribunal Superior. Ela também enfatizou a importância da cidade preservar seus documentos, o que permitiu o resgate das provas documentais pela Comissão da Verdade e a oficialidade do gesto da Câmara. “Qualquer instituição, principalmente pública, que não preservar sua memória, estará fadada ao fracasso na efetivação de suas finalidades”, sentenciou Clarissa.
O vereador Moacir Longo, com seu curto mandato devidamente restaurado, foi num sentido bem diferente, e menos luminoso que os demais oradores, ao buscar a representatividade daquela cerimônia. Para ele, a solenidade tem o simbolismo da denúncia de um passado de arbitrariedades cometidas pelo estado brasileiro. “Esta solenidade serve à afirmação de que, nesse país, nunca vigorou um regime pleno de democracia”. Longo, do alto dos tempos de prisão e sofrimento nas mãos da polícia política, questiona o próprio conceito de redemocratização. “Quando houve democracia neste país, para que pudéssemos falar em redemocratização?”
Longo mencionou os momentos da história em que se procurou estabelecer uma democracia no país, com resultados efêmeros. Uma luta que continua, principalmente porque a democracia não pode ser apenas política, mas também social, de acesso pleno de direitos a todos os cidadãos. Ele ainda lembrou o juiz eleitoral Cassiano Marcondes Rangel, que tentou furar a imposição dos antidemocratas, concedendo o registro de sua candidatura, mesmo tendo recebido o dossiê do DOPS, medida que pouco adiantou diante do golpe militar. “A Câmara também foi solidária e muitos trabalharam para que eu saísse em liberdade e continuasse lutando em meu partido para reunir forças para a luta contra a ditadura”, disse, referindo-se às providências tomadas pela Mesa da Câmara para que Longo saísse de cabeça erguida, garantindo a liberdade, ainda que na clandestinidade. “Este evento é simbólico pela afirmação democrática da Câmara, mas também na reafirmação de um Brasil realmente democrático para todos os brasileiros”, concluiu.
O tempo da solenidade foi pouco para tentar resgatar o eventual heroísmo de tantos idealistas, que certamente chegaram à eleição por terem sido capazes de se destacar na multidão, porque foram autores de algum gesto singular, apto a ganhar o voto de milhares de paulistanos. Outros recursos são necessários para registrar quem foram essas pessoas, para além da retórica sobre a democracia proferida naquela noite.
A maioria dos vereadores cassados que não foram identificados nem localizadas suas famílias eram os comunistas de 1947. Gente simples da classe operária paulistana, que naqueles anos de recente volta da democracia foram capazes da missão épica que é disputar uma eleição e ganhá-la na cidade com a burguesia mais poderosa do país. Vários deles continuam desaparecidos na poeira das ditaduras que se seguiram, sem a sorte de Pastrelli, perseguidos em tudo que tentaram, marcados pela eleição que disputaram como comunistas.
Poderíamos ter registrado, hoje, os atos de cada um desses comunistas nas atas da Câmara de São Paulo. Em vez disso, resta-nos o metal gravado com as letras de seus nomes. Um placa durável e luminosa, pendurada num enorme salão, por onde passarão milhares de transeuntes todos os dias, provavelmente sem saber que ali estão aqueles que a cidade escolheu e, muito rapidamente, precisou esquecer. Pessoas que, elas mesmas, simbolizam a memória brasileira constantemente violada pelas arbitrariedades do poder ilegítimo.