Houve atos políticos, debates, atividades culturais e homenagens durante todo o dia, tumultuando os corredores da Câmara e deixando uma marca forte na Casa Legislativa que sofreu de forma brutal as consequências brutais do golpe desde o primeiro dia, em 1o de abril de 1964. A multidão que lotava o hall de entrada do Anexo II da Câmara, cantava emocionada músicas como Cálice, de Gilberto Gil e Chico Buarque, e ria das leituras dramáticas, em que uma atriz representava uma senhora caduca chamada Ditadura, em entrevista. A iniciativa cultural foi da deputada comunista Alice Portugal (BA), mas que atraiu ampla participação parlamentar durante toda a tarde.

Paiva e Amarildo

A tarde terminou sob forte comoção com o descerramento do busto do deputado federal Rubens Paiva, sequestrado pela ditadura militar e desaparecido em janeiro de 1971, sem informações das circunstâncias de sua morte e do paradeiro de seu corpo. Um símbolo da tragédia que marcou tantas famílias naqueles anos, e um totem de pedra que eterniza na entrada da Câmara dos Deputados sua contribuição exemplar ao Brasil e a lembrança de uma violência contra a democracia que jamais deve se repetir. Houve ainda um coquetel de lançamento da biografia do deputado, publicada pela editora da Câmara dos Deputados, e escrita pelo jornalista Jason Tércio. A família do ex-deputado, representada pela filhaVera Paiva e Maria Beatriz Paiva, comemorou com festa e orgulho a homenagem, feita por iniciativa do mandato do deputado Paulo Teixeira (PT-SP).

Vera comparou o sumiço do pai com o caso de Amarildo, pedreiro que desapareceu no ano passado, após uma ação policial na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro.

“Rubens Paiva é o protótipo do caso do Amarildo. Rubens Paiva era pai de cinco filhos, como Amarildo era pai de cinco filhos. Rubens Paiva foi chamado de bandido, nós escutamos a vida inteira que ele era um bandido, a família de Amarildo foi chamada de bandida. Foi transformada em traficante”, disse.

Vera também respondeu ao ato do deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), que minutos antes, na cerimônia, vaiou o discurso do líder do PSOL na Câmara, deputado Ivan Valente (SP), que condenava o golpe de 1964.

”O sangue me ferveu quando o Bolsonaro passou e fez essa vaia. O que a gente devia dizer para o Bolsonaro é que ele, na democracia, tem direito de fazer isso. Na ditadura, nós iríamos todos para o pau de arara quando fazemos coisa desse tipo”, afirmou.

Em solenidade realizada na manhã de hoje na Câmara dos Deputados para relembrar as cinco décadas do Golpe Militar, um tumulto foi causado quando Bolsonaro subiu à tribuna para discursar em defesa dos militares. Parlamentares viraram de costas em protesto e a foi encerrada sob polêmica (leia abaixo).

A deputada comunista Jandira Feghali (RJ) afirmou que o sentimento era de que a homenagem veio com atraso, tanto como o fim da ditadura. Ela se perguntou qual teria sido o crime de Rubens Paiva para sofrer um destino tão terrível nas mãos do governo militar. E lembrou tantas iniciativas importantes do ex-deputado em defesa da soberania do Brasil e da defesa dos mais pobres.

Jandira lembrou outras ocasiões em que o arbítrio fechou o Congresso e cassou tantos mandatos. Recentemente, por iniciativa de parlamentares comunistas, estas cassações têm sido revertidas, ainda que simbolicamente. Agora, ela está solicitando a anulação da legitimidade dos presidentes militares eleitos por colégio eleitoral daquele Congresso, como uma forma de completar esse ciclo de repúdio à ditadura.

Paulo Teixeira lembrou que Paiva é o único deputado da Câmara que consta na lista dos desparecidos. Isso se deu, conforme ele recorda, porque Paiva era um opositor combativo do regime militar. Foi ele que conduziu a CPI que descobriu que os militares tinham ligação com o Ibad, organismo estrangeiro que financiava campanhas.  “Esta combatividade o colocou na primeira lista de parlamentares cassados”, disse Teixeira, mencionando a importância da luta incansável da família Paiva pela redemocratização. 

Lideranças de diversos outros partidos também se manifestaram durante a inauguração.

Biografia

Em clima de festa e homenagens, foi lançada a biografia de Paiva, pouco antes da abertura do ato político no auditório Nereu Ramos. Escrito pelo jornalista Jason Tércio, o livro traz informações inéditas sobre a prisão e a morte do ex-parlamentar. A publicação apresenta, por exemplo, o documento, com carimbo de confidencial, a respeito da detenção de Rubens Paiva e informa que ele foi levado no dia 25 de janeiro de 1971 para o Quartel General da 3ª Zona Aérea e de lá para o extinto Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (Doi-Codi), no Rio de Janeiro.

Engenheiro civil de formação, Paiva começou sua curta carreira política em 1962 como deputado federal pelo PTB de São Paulo. No ano seguinte, foi vice-presidente da CPI que investigou irregularidades no Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), órgão que combatia o comunismo no País. Jason Tércio diz que o livro traz novidades sobre o trabalho ativo de Rubens Paiva na CPI, que provocou a cassação de seu mandato pelo Ato Institucional nº 1, em 1964.

De acordo com o autor, esse Perfil Parlamentar tem um caráter diferente dos já publicados anteriormente. “É didático porque coloco também como se deu toda a trama do golpe militar e o que ocorreu com Rubens Paiva quando voltou do exílio. Ele continuou atuando politicamente, mas de maneira discreta pois não tinha mais mandato”, explica Jason Tércio.

Desaparecimento

No dia 20 de janeiro de 1971, a casa de Rubens Paiva em Ipanema foi invadida – o ex-deputado foi levado por militares da Aeronáutica sem mandado de prisão. Autoridades militares justificaram a detenção sob o argumento de que Paiva mantinha correspondência com brasileiros exilados no Chile. Havia a suspeita de que ele servisse de contato do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e também do homem mais procurado do país, Carlos Lamarca, o que Jason Tércio desmente no livro.

Rubens Paiva foi dado como desaparecido pelo Exército, que declarou que ele havia sido sequestrado ao ser levado por agentes do DOI-Codi. A versão foi contestada por sua esposa, que, baseada em depoimentos de testemunhas, afirmou que ele teria sido torturado até a morte.

A biografia apresenta as diferentes hipóteses de desaparecimento de Rubens Paiva, inclusive a mais provável, na opinião de Jason Tércio, de que ele teria sido enterrado na Floresta da Tijuca. “Porque ali havia uma delegacia vinculada aos órgãos de repressão. Um militar [em depoimento à Comissão Nacional da Verdade] informou que o corpo foi desenterrado de lá, enterrado na praia do Recreio dos Bandeirantes e, dois anos depois, jogado no mar ou no rio.”

O atestado de óbito de Rubens Paiva foi emitido apenas em 1995, após a publicação da Lei dos Desaparecidos Políticos (9.140/95).

Registro polêmico

A sessão solene para debater os 50 anos do golpe militar de 1964, realizada no Plenário da Câmara dos Deputados no período da manhã, foi marcada por polêmicas e encerrada antes de todos os participantes previstos discursarem. O presidente da sessão, deputado Amir Lando (PMDB-RO), decidiu encerrar o evento, após manifestantes se recusarem a virar de frente para ouvir o discurso do deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), favorável ao período da ditadura militar.

Deputados e outros convidados viraram de costas quando Bolsonaro começou a discursar. “Vocês vão ser torturados com algumas verdades aqui. Deixe-os de costas, presidente, por favor”, disse Bolsonaro.

Lando, no entanto, insistiu que o comportamento é proibido pelo Regimento Interno da Casa. Ele pediu para os manifestantes que não quisessem ouvir Bolsonaro se retirassem do Plenário, mas não foi atendido. “Democracia é conflito”, disse Lando. “As partes têm que ouvir as outras”, completou. Manifestantes mostraram cartazes com os dizeres “A voz que louva a ditadura calou a voz da cidadania”, com fotos de desaparecidos políticos.

Com o encerramento, deputados se dirigiram ao Salão Verde, em frente ao Plenário, e improvisaram uma sessão solene informal sobre o golpe. Os parlamentares que discursaram pediram a revisão da Lei de Anistia.
A primeira suspensão do debate ocorreu após uma faixa ser estendida na galeria do Plenário, parabenizando os militares pelo golpe de 1964: “Graças a vocês o Brasil não é Cuba”. Cidadãos e deputados se manifestaram contra a faixa e houve início de tumulto, quando participantes da sessão solene discutiram com Ivone Luzardo, presidente da União Nacional das Esposas de Militares. Ela segurava um cartaz contra o “revanchismo” no País.

Ao abrir a sessão, o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), assinou o ato da Mesa Diretora que proclama 2014 como o Ano da Democracia, da Memória e do Direito à Verdade. “A Câmara é a instituição brasileira que mais representa o ideal de uma sociedade apta a definir seus rumos, com base em debates democráticos entre os representantes de todos os setores sociais relevantes, dentro do marco do Estado de direito”, destacou Alves.

O presidente salientou que rejeitou requerimentos de sessão solene que pudessem vincular o Parlamento brasileiro à comemoração do golpe de Estado. Requerimento nesse sentido foi apresentado por Bolsonaro, mas Alves optou por acolher apenas o requerimento da deputada Luiza Erundina (PSB-SP), que pretendia homenagear aqueles que resistiram ao golpe. “Em meu mandato como presidente da Câmara, não será admitida nenhuma iniciativa institucional que possa ser interpretada como um gesto de legitimação do período autoritário iniciado com o golpe de Estado de 1964”, completou Alves.

Ele citou diversos ataques do regime militar à democracia e à Câmara, como a cassação de mandatos legislativos de 173 parlamentares e os três fechamentos do Congresso pelos militares. O presidente lembrou ainda que várias assembleias legislativas e câmaras municipais foram colocadas em recesso por decisões autocráticas do Poder Executivo.