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São 40 crônicas selecionadas pelo próprio ministro em um trabalho de pesquisa de mais de um ano. O futebol foi a metáfora utilizada por Nelson Rodrigues para a apresentação e a divulgação de um Brasil eficiente e vitorioso.

Confira abaixo a oitava crônica da série: “Narciso às avessas”. O site do ministério vai publicar dois textos por semana, aos domingos e às quintas-feiras.

“O sujeito que diz que o futebol passou é o Narciso às avessas, já que a seleção é a pátria em calções e chuteiras.”

Narciso às avessas (1)

Amigos, não sei se vocês se lembram de Onestaldo. Era meu único amigo de infância, no momento em que não há amigos de infância. Perguntarão vocês: “Além de amigo de infância, o que mais era o assim chamado Onestaldo?” Eu direi: — Era um Narciso às avessas.

Se vocês não entenderam, vamos lá. Suponhamos que Onestaldo vai a um aniversário na sua rua. Lá, a propósito, de que ou de nada, ele brama: — “Eu sou uma besta! Sou um quadrúpede de 28 patas!” Vocês entendem? Podia ser um quadrúpede de apenas quatro patas, mas fez questão de acrescentar-lhe mais 24.

Novamente, perguntarão vocês: — “É maluco?” Nada de fazer-lhe esta injustiça. E, pelo contrário: tem uma sanidade de cambaxirra. Ele fala assim como brasileiro. Em suma: é um Narciso às avessas que cospe na própria imagem. Dirá alguém que será um caso único. Mentira. Único, vírgula. Na verdade, tremo ao vê-lo porque sinto, na sua figura, um símbolo nacional irresistível. Há uma semana, ele foi comigo a um sarau de grã-finos. A folhas tantas do sarau, a dona da casa achou de declarar que nenhum homem a fascina tanto como o brasileiro. O marido, ali presente, declarou apenas que gosto não se discute. E, então, Onestaldo saltou no meio do salão, a berrar: — “A senhora quer saber quem é o brasileiro? Quer?” Foi terrível quando ele caiu de quatro e pôs-se a urrar ao lustre. Na véspera de Brasil x Inglaterra eu o encontrei na esquina da Sete de Setembro com Avenida. Caí na asneira de perguntar-lhe: — “Quem ganha amanhã?” Ergueu o rosto e disse, feroz: — “Ganha a Inglaterra, porque o brasileiro não tem caráter!” Perdi um pouco a paciência: — “O brasileiro não é o cavalo que você pensa!” Ele desceu para a falecida Galeria Cruzeiro e eu na direção da Praça Mauá. Mais adiante encontro o Paulo Roberto de Oliveira. Fiz-lhe a mesma pergunta: — “Quem ganha amanhã?” Deu a resposta fulminante: — “Brasil, ou duvidas?” Paulo Roberto tinha um dado histórico: — A Inglaterra é freguesa de caderno do Brasil.

Muito bem. Há o jogo e ganhamos. Dirão os lorpas e pascácios: — Jogamos mal. Melhor ainda. Mesmo jogando mal, enfiamos um gol no 44º minuto do segundo tempo.

Mas as hienas, os chacais não perdem uma chance. Ouçam, leiam os comentários sobre a partida. Há quem diga que o Brasil não é mais o mesmo. A Inglaterra é muito melhor. Só perdeu porque o Brasil fez o gol na sorte.

Nem a lição de 70 serviu. Em 70, mandamos para o México um escrete feito de vaias. Para os jogadores brasileiros, o clima era tão intolerável que os nossos craques não viam a hora da partida. Antes do embarque, a prodigiosa seleção conseguiu perder para os aspirantes do Bangu.

Confesso que, diante de tamanho resultado, cheguei a tremer em cima dos sapatos. Mas tive um acesso de lucidez e escrevi: — “Partiu o escrete. Terminou o seu exílio.” Lembro-me de que fizeram, aqui, uma “vigília cívica”. O que se disse dos nossos jogadores foi inconcebível. Trataram o escrete a pontapés.

Tão fácil compreender esse tipo de reação. É o Onestaldo multiplicado ao infinito. O sujeito que diz que o futebol brasileiro passou é o Narciso às avessas, já que a seleção é a pátria em calções e chuteiras. Por que esse rebaixamento, essa autoflagelação desembestada? Repito: — Todos nós temos um pouco de Onestaldo.

A verdade é que a Inglaterra é tão ruim, tão péssima que não pode tirar partido de uma tarde negra do Brasil. Em tudo isso, o que há de realmente inadmissível, de abominável é que o escrete não seja ainda um time. Não precisamos de mais nada senão isso. Com o time, o Brasil dará um banho estarrecedor nas seleções europeias e outras.

O Globo, 26/5/1976

(1) Título sugerido pela edição deste livro. A crônica foi publicada originalmente sem título. (N.E.)