Então é verdade, como proclamam as manchetes de muitos jornais, que Atenas cedeu às exigências do Eurogrupo (La Repubblica) e deu o primeiro passo em direção à restauração da política de austeridade (The Guardian)? A acreditar nalguns líderes da ala esquerda do Syriza, não durou muito a coragem do novo governo, e a “capitulação” já começou… É um pouco cedo para julgar os acordos feitos na reunião do Eurogrupo. Só nos próximos dias serão publicados os pormenores técnicos, e só aí aparecerá todo o seu significado político. Enquanto isso, propomos aqui um método diferente de analisar o confronto entre o governo grego e as instituições europeias, que se traduziu nos compromissos por parte do primeiro e nos indícios de fissuras no seio das segundas. Que critério devemos usar para medir as ações de Tsipras e Varoufakis, de forma a julgar a sua adequação e eficácia?

Frisemo-lo desde logo: o conflito aberto pela chegada ao poder do Syriza aparece numa altura de crise aguda na Europa. As guerras que se intensificam junto à periferia da UE, ao Leste mas também ao Sul e Sudeste, ou as sucessivas hecatombes de imigrantes afogados no Mediterrâneo assinalam algo parecido a uma decomposição do espaço europeu, mas há também outros aspetos. Em poucos anos, a recessão multiplicou-os de forma dramática. As forças políticas mais ou menos racistas e neofascistas assolam o continente de uma ponta à outra. Nestas circunstâncias, o triunfo eleitoral do Syriza e o avanço do Podemos em Espanha surgem como uma oportunidade única para reinventar uma política de esquerda que lute pela igualdade e a liberdade por toda a Europa.

Também não nos devemos esquecer que subjacente a estas realidades estão as enormes lutas de massas contra a austeridade ao longo dos últimos anos, na Grécia como em Espanha. Mas ao mesmo tempo que estas lutas se alargam “horizontalmente”, também se defrontam com limites verticais igualmente enormes: a dominação dos bancos e instituições financeiras no âmbito do capitalismo contemporâneo, a nova distribuição de poder político que se impôs graças à crise. É o que há uns anos tínhamos chamado “a revolução a partir de cima” (1).

Estes são os obstáculos com que o Syriza se deparou, mal conseguiu aplicar no terreno um eixo de poder “vertical”, que fez ressoar a rejeição da austeridade pelos salões europeus. Rapidamente teve de lidar com o regime que hoje detém o poder na Europa e suportar toda a violência do capitalismo financeiro. Seria ingénuo pensar que o governo grego podia derrubar sozinho todos os obstáculos. Mesmo um país com um peso demográfico e económico muito maior que a Grécia não teria sido capaz de fazê-lo. Os acontecimentos recentes voltaram a mostrar – como se fosse necessário – que uma política de liberdade e igualdade não se construirá na Europa através da simples afirmação da soberania nacional.

No entanto, os “obstáculos” que aqui apresentamos passaram a ser vistos sob uma nova perspetiva, tal como a possibilidade de os rebentar. As lutas e os movimentos de protesto realçaram o seu caráter odioso, mas a vitória do Syriza e a ascensão do Podemos, e depois a ação do governo grego, começam a definir uma estratégia. Não nos compete a nós dizer que um resultado eleitoral não basta, e além disso o próprio Tsipras nunca o escondeu. É preciso que se abra um processo político, e para isso, que se afirme e estruture uma nova relação de forças sociais na Europa.

Lenine disse um dia qualquer coisa como isto: há situações em que é preciso saber ceder espaço para ganhar tempo. A adaptação deste princípio aos “acordos” da última sexta-feira (aleatória, como sempre em política) leva-nos a arriscar uma aposta: é para ganhar tempo e espaço que o governo grego “cedeu” de facto alguma coisa. É para permitir que a oportunidade que acaba de surgir na Europa se afirme, à espera dos próximos acontecimentos (como as eleições espanholas), e até que os protagonistas da nova política tenham conseguido “conquistar” outros espaços.

Mas para que esse processo se desenvolva, tem de ser posto em prática em vários níveis: são necessárias lutas sociais e iniciativas políticas, novos comportamentos no dia-a-dia e um outro estado de espírito das populações, das ações de governo e dos contrapoderes cidadãos que afirmam a sua autonomia. Numa altura em que reconhecemos a importância decisiva do que o Syriza já conseguiu e o que o Podemos pode conseguir no terreno institucional, devemos também articular os seus limites.

Num extraordinário artigo que o Guardian de Londres acaba de publicar, o ministro Varoufakis mostra estar bem consciente disto. (2) Fundamentalmente, diz ele, o que um governo pode hoje fazer é procurar “salvar o capitalismo europeu da sua tendência para a autodestruição”, que ameaça os povos e abre as portas ao fascismo. Trata-se de fazer recuar a violência da austeridade e da crise, para abrir espaços de conservação e de cooperação, em que a vida dos trabalhadores seja um pouco menos “solitária, miserável, violenta, e curta”, para usar as velhas palavras de Hobbes. Nem mais, nem menos.

Interpretemos nós as palavras de Varoufakis. A superação do capitalismo está por definição fora do alcance de qualquer governo, seja na Grécia ou noutro lado. Além do salvamento de emergência do capitalismo europeu da catástrofe que seria também a nossa, tal perspetiva situa-se no horizonte das lutas sociais e políticas prolongadas que não poderiam limitar-se a um perímetro institucional. Mas acontece que é também neste outro “continente” que se deve desde já construir materialmente a força coletiva de que dependem os avanços dos próximos meses e dos próximos anos. E o terreno onde essa força será investida só pode ser o da própria Europa, tendo em vista uma rotura constituinte com o atual rumo da sua história. Daí a importância de mobilizações como a convocada pelo movimento Blockupy para a inauguração da nova sede do BCE, no dia 18 de março em Frakfurt. É uma ocasião para fazer ouvir a voz do povo europeu em apoio à ação do governo grego. Para além da indispensável denúncia do capital financeiro e do regime pós-democrático (Habermas), é também a altura de mostrar o avanço das forças alternativas, sem as quais a própria ação dos governos e partidos que se batem contra a austeridade será condenada à impotência.

Étienne Balibar é filósofo na Universidade Paris-Ouest Nanterre. Sandro Mezzadra é filósofo na Universidade de Bolonha. Publicado no diário Liberation. Traduzido por Luís Branco para o esquerda.net.

(1) «Europe : la révolution par en haut», “Libération”, 21 novembro 2011.

(2) Yanis Varoufakis : «How I became an erratic Marxist», “The Guardian”, 18 fevereiro 2015.