Desafios da escola pública… nos EUA e em outras praças
?O professor norte-americano David Berliner esteve na Unicamp, no dia 1 de novembro, para uma palestra memorável, no âmbito do Seminário Internacional “Escola Pública, tempos difíceis, mas não impossíveis”, promovido por professores da Faculdade de Educação (FE).
O professor Berliner detalhou algumas das políticas adotadas pelos governos estaduais e pelo novo presidente norte-americanos. A seu ver, elas apontam para uma clara campanha de destruição do sistema público de educação, para a sua redução a algo irrelevante e excludente. Tais políticas, mostrou, são apresentadas como decorrência “científica” de avaliações supostamente objetivas. De fato, incorporam como premissas uma série de mitos e mentiras, disseminados e cultivados para sustentar a ofensiva.
O professor salientou duas grandes ameaças ao sistema público. Uma delas é a política dos vouchers ou cupons educacionais que permitem a “escolha da escola” e, indiretamente, a privatização da “parte nobre” do sistema, com recursos públicos e objetivos privados. A segunda ameaça é a generalização das chamadas charter schools, escolas privadas ou administradas por grupos privados, mas financiadas fortemente por recursos públicos. Nos últimos anos, em alguns estados, até escolas religiosas, tradicionalmente impedidas de receber tais verbas, vêm sendo altamente beneficiadas pelo suado esforço do contribuinte.
E tudo isso, como dissemos, é sustentado por mentiras e manipulações grosseiras de dados de avaliações e pesquisas. Os sonhos da razão também produzem seus monstros, diziam os desenhos de Goya.
Já indicamos aqui neste jornal alguns dos estudos do professor.
Na palestra ele apresentou dados novos para mostrar, por exemplo, como os vouchers, aparentemente tão saudáveis e “democraticamente distribuídos”, são, de fato, uma política de Robin Hood invertido, uma política focalizada em segmentos mais elevados da população. Basta um exemplo. Um voucher significa que uma família pode receber, por exemplo, 3 mil dólares (anuais) para gastos com mensalidades escolares. E escolher a escola. Mas uma escola privada custa bem mais: de 10 mil até 40 mil. Assim, famílias pobres evidentemente sequer poderão utilizar o tal voucher. Ele é, apenas, um subsídio para filhos da classe média e, mesmo, para os filhos dos ricos. Como em toda boa democracia formal, todos são livres para dormir debaixo da ponte, ricos e pobres.
As escolas religiosas não recebiam tais subsídios. As constituições estaduais impediam essa política. Porém, recentemente, alguns estados encontraram um jeitinho de contornar sua lei maior. Criaram uma espécie de new voucher. Adotaram leis que permitem que famílias abonadas doem recursos para organizações filantrópicas voltadas para escolas. Estas organizações, por sua vez, fazem doações para escolas e estas escolas acolhem… os filhos das famílias que doaram. E os valores doados são deduzidos do imposto de renda das famílias: um mimo. Como lembra o professor, isto tem canalizado dinheiro público para escolas religiosas, algo que os Estados Unidos tinham evitado por 250 anos.
As escolas charter, por outro lado, são um exemplo de sucesso. Financeiro, é claro. Muito mais duvidoso é seu “exemplo de sucesso pedagógico e gerencial”.
Elas são escolas privadas (ainda que sorvendo recursos públicos). Como entes privados, são imunes a várias regulações estatais. Por exemplo, elas podem “descartar estudantes” inconvenientes para “avaliação via resultados”. Alto percentual de estudantes vai para as melhores universidades. Assim, o efeito dessa limpeza dos quadros é que elas obtêm altos níveis de resultados nos testes padronizados! Nada de surpreendente.
Primeiro, recrutar os “mais educáveis”. Rejeitar os “difíceis e problemáticos”. Ao longo do tempo, refugar os menos educáveis dentre os admitidos. Eles são delicadamente devolvidos para as escolas públicas “normais”.
Veja por exemplo a sequência temporal de matriculados nesta escola privada, um gráfico que capturamos na exposição de Berliner. É uma escola badalada e sem fins lucrativos, mas seus “gerentes” recebem fortunas para administrá-la. Fortunas mesmo, sem aspas. A evolução de seu quadro discente, porém, não é exceção, é apenas exemplo avançado de uma regra. Ao longo do tempo, ela vai filtrando o que presta e descartando “o que não presta”. E assim consolida o sucesso de seu “modelo pedagógico e gerencial”. O quadro mostra o número de matrículas em diferentes séries do ensino fundamental (o nosso fundamental II) e do ensino médio (high school).
São boas reflexões para países que sonham com modelitos moderninhos, eficientes, gerenciais, de privatização das escolas. No Brasil, a oferta desse produto, como sabemos, é farta e variada. E conta com o entusiasmo de numerosos movimentos empresariais “bem intencionados”, envolvidos com a salvação de nossas escolas, num esforço de todos pela educação.
Talvez fosse oportuno lembrar uma estória contada pelo empresário Jamie Vollmer na revista Newsweek e reproduzida em várias outras publicações. Está disponível no site do autor.
Relata uma palestra do empresário para professores da rede pública do Estado de Indiana. Pretendia “dar lições” de gerência moderna, baseada em controle total de qualidade, métodos comerciais avançados. Feita sua pregação, uma professora pediu a palavra e perguntou a respeito do seu premiado produto (sorvete de morango): o que o senhor faz com morangos de menor qualidade? Ele não teve dúvida: nós os rejeitamos, só trabalhamos com o melhor! Daí a professora retomou a palavra: pois é, é por isso que não podemos administrar nossas escolas como o senhor administra sua fábrica. Nós não temos nem queremos ter o direito de rejeitar os morangos menos bons.
Bom, é isso, precisamente, o que fazem as escolas charter “bem sucedidas”. Só recrutam os melhores morangos, os mais “cultiváveis”, os que já vêm com tudo dentro. E se alguns deles se mostram menos bons, são simplesmente expelidos, de volta para a velha escola pública. E assim, quando os testes padronizados são realizados, apenas os morangos bons aparecem na foto. Já podemos imaginar que mundo formaremos com tal política de apartheid. Ela não apenas afunda os “morangos menos bons”. Ela deforma os “morangos bons”, transformando-os em mauricinhos de muito engenho e poucas luzes.
Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.