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Para minha alma gêmea intelectual, Alberto Gabriele

14 de fevereiro de 2024

Elias Jabbour escreve sobre a morte de Alberto Gabriele

Perdi uma alma gêmea. Sim, Alberto Gabriele e eu nos entendíamos quase que por telepatia.
O que nos unia? Nossas ideias sobre o socialismo, nossa negação à visões utópicas, desconexas
da realidade e a busca por um corpo teórico, conceitual e categorial capaz de entregar um
marxismo como poderosa arma de enfrentamento da realidade a partir das experiências
socialistas. Eu e Alberto nos distanciávamos do ascetismo e do discurso fácil, pois entendíamos
que o marxismo é uma ciência do poder político. Por isso, nossa aversão a bravatas e
performances de falsos revolucionários e “radicais” que infestam as redes sociais. Falávamos
muito em detalhes da construção do socialismo: sistema empresarial, de preços,
constrangimentos internos e externos (metamodo de produção), sistema financeiro, lei do
valor, contabilidade da firma, contabilidade social, planejamento, projetamento etc. Foi minha
alma gêmea que conheci por insistência.

Na minha tese de doutorado (que ampliada, converteu-se em livro prefaciado por Domenico
Losurdo) já era vagamente presente a ideia de que na China emergia uma nova formação
econômico-social. Mas foi após ler “Market Socialism as a distinct socioeconomic formation
internal to the modern mode of production”, escrito por ele e o gigante Francesco Schettino,
que me convenci de que deveria ir atrás desse gênio italiano. Após anos de insistência,
somente em 2015 ele aceitou um call para conversar comigo. Alberto era muito tímido e
desconfiado. Já na primeira conversa ficaram claras nossas convergências quase totais. Alberto
já era autor de artigos disruptivos sobre política industrial e sistema empresarial chinês e
vietnamita (o Vietnã era sua grande paixão). Com o próprio Francesco Schettino escreveu para
revistas como o Cambridge Journal of Economics uma pérola sobre distribuição de renda em
Cuba.

Sua grande bomba intelectual foi lançada em 2020 pela Springer, “Enterprises, Industry and
Innovation in the People’s Republic of China – Questioning Socialism from Deng to the Trade
and Tech War”. Ali Alberto se apresenta em sua melhor forma, se consolidando como o grande
economista do mundo no que que se refere a análises da dinâmica empresarial e de inovação
tecnológica do socialismo no século XXI. Nenhum pensador ocidental chegou próximo de
Alberto Gabriele neste aspecto. Por trinta anos foi economista de projetos na UNCTAD com
ampla experiência internacional. Tudo isso contribuiu na sua transformação no mais capaz
economista voltado à compreender o socialismo da forma como ele se apresenta.
Após anos de conversas, decidimos escrever um livro. Já estava madura em nossas cabeças
uma série de ideias e a montagem dos capítulos já estavam claros. Partíamos do mesmo
cabedal categorial: formação econômico-social, modo de produção e lei do valor. A
reconstrução dessas categorias à luz do que ocorre na China seria o pulo do gato, que
neoclássicos, marxistas acadêmicos/ocidentais e keynesianos, sobre o muro que a história
colocava diante de teorias datadas.

A análise de uma nova formação econômico-social demandava outra gama de categorias, uma
outra gramática e um ponto cego que ainda nos faltava: o que emergia após a elevação das
relações entre ser-humano e natureza na China após a apropriação pelo Estado socialista de

inovações tecnológicas disruptivas, não somente elevando a capacidade de planificar, mas
inaugurando uma coisa nova – da mesma forma que Adam Smith percebeu esse novo com o
surgimento de novos esquemas de divisão social do trabalho como resultado da elevação da
técnica em sua época, inaugurando o capitalismo em sua forma industrial?
Um esboço de resposta eu já tinha após ler diversas vezes “Elementos de Economia do
Projetamento”. Sabia que Alberto demoraria um tempo para digerir a ideia. Fui à Roma
em 2019 com minha família para me “trancar” com Alberto por três meses, convencê-lo da
ideia de “Nova Economia do Projetamento” e colocar na praça um livro onde todas as nossas
ideias construídas ao longo de anos estivessem lá, novas e vivas.

Cada categoria ou conceito era uma longa discussão para sua elaboração. O conceito de
“metamodo de produção” foi quase um ano de idas e vindas entre nós dois. O mesmo sobre
como abordaríamos a questão do valor e, por fim, Alberto se tornou o mais entusiasmado com
a ideia de projetamento. Nosso livro lançado pela Boitempo em 2019 (com uma live
sensacional com a presença de Dilma Roussef, Silvio Almeida e Tings Chak) já se transformou
em best-seller. Uma versão ampliada em inglês foi lançada pela Routedge (“Socialist Economic
Development in the 21st Century – A Century after the Bolshevik Revolution”). As ideias
contidas nele são vistas na China como verdadeiras “descobertas científicas” e até semana
passada eu e Alberto já discutíamos um volume 2 deste livro.

Novas ideias já estavam em acúmulo e já permeavam alguns artigos científicos recém-
publicados sob minha lavra. O mais triste de tudo, além de perder minha alma gêmea
intelectual, é saber – também – que nossa colaboração estava apenas no início e que muito
tínhamos a fazer juntos, pois as mudanças em andamento na China iam ao encontro de nossas
ideias. O combate que estávamos enfrentando com os marxistas acadêmicos/ocidentais era
feroz, mas tínhamos certeza de nossa correção.

Alberto Gabriele se junta a Ignacio Rangel, Milton Santos, Carlos Augusto Figueiredo Monteiro,
João Amazonas, Haroldo Lima e Aziz Ab´Saber entre os que convivi, aprendi o que é fazer
ciência e que me fizeram crescer. No fundo sou um homem de sorte. Enfim, escrevi aqui o que minha
emoção permitiu. Acordei com uma mensagem de Francesco Schettino me informando de sua
morte. Triste e impactado fico por aqui. Perdi uma alma gêmea. Dói muito.

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