Pandemia impôs imensos desafios para a educação, diz Madalena Guasco
Se na primeira onda, a média de mortes chegou a mil por dia, agora, ela assombrou com cerca de três mil doentes morrendo todos os dias. Ainda assim, vai ganhando na imprensa e na sociedade, o discurso de que os professores devem voltar e se arriscar nas salas de aula para evitar mais perdas cognitivas e intelectuais de crianças e adolescentes.
Para comentar os dilemas que surgiram nesse período, impondo enormes desafios para gestores, professores, alunos, pais, sindicatos, empresas educacionais, ensino público, pedagogia e tecnologia, a Grabois conversou com a secretária-geral da Contee (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino), Madalena Guasco. Ela também é diretora da Faculdade de Educação da PUC-SP, Doutora em Filosofia e História de Educação pela PUC-SP e Pesquisadora em Políticas Públicas.
Projeto democrático e neoliberalismo
Madalena reitera que a pandemia apenas evidenciou questões que já eram colocadas publicamente por meio das lutas dos professores, referentes às desigualdades educacionais estruturais ligadas às desigualdades sociais. Desde 1988, que se discute um projeto democrático de educação, incorporado à Constituição naquele momento. Depois disso, a década de 1990 foi permeada de problemas relativos às privatizações e negligências com a escola pública.
Ao fim daquele período, os governos populares recebem de herança um déficit absurdo na educação, quando começa a reconstrução desse projeto democrático, que é golpeado em 2016 com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Com o ultraliberalismo de Bolsonaro, eleito em 2018, começa um desmonte de direitos, entre eles a Educação.
Evasão e fome
Embora a pandemia tenha evidenciado estas desigualdades de longa data, ela também trouxe outros problemas, segundo Madalena. Os dados de evasão que já eram grandes no Brasil, se acentuaram. “Isso é muito triste, porque são crianças que estão abandonando a escola, porque se sentiram completamente excluídos nessa pandemia”, afirmou. Esse sentimento se expressou principalmente por meio da exclusão digital, que também é estrutural no Brasil.
A ligação dessa exclusão digital com a desigualdade social se manifesta nas dificuldades familiares dessas crianças e adolescentes, que têm problemas de subsistência, estão em situação de vulnerabilidade social, moram em condições habitacionais precárias. A sensação de abandono social repercute no abandono escolar.
Madalena, no entanto, não concorda com diagnósticos de que vamos demorar 11 anos para recuperar isso. Para ela, é preciso começar derrotando esse projeto excludente na sociedade, resgatar o projeto educacional democrático e buscar as crianças de volta à escola.
Outro problema evidenciado no Brasil todo foi a precariedade estrutural das escolas, que não tinham condições mínimas de acolhimento. Madalena não está falando de aulas presenciais, mas acolhimentos de outro tipo. Escolas foram amplamente utilizadas em outros países para inúmeras funções durante a pandemia, como garantir segurança alimentar das pessoas, acolhimento para isolamento social e até atendimento médico.
Salvador – Escolas municipais retomam aulas (Foto: Igor Santos SECOM)
O papel do professor
Outro elemento evidenciado pela pandemia foi o papel do professor. Uma categoria muito desprestigiada, mas que Madalena considera que mostrou que tem uma grande consciência social da sua responsabilidade e do seu papel. Nas escolas que não tinham condições de acolhimento, foram eles que garantiram a inclusão e atender as crianças que não tinham condições de ensino remoto. Mesmo as famílias de classe média, quando tiveram que enfrentar a questão da formação dos filhos remotamente, viram o quanto é um papel complicado e o quanto o professor faz falta.
A sociedade viu também o quanto a escola não é apenas um espaço de aprendizagem, é um espaço de interação social, crescimento das subjetividades e das relações sociais. A interação social, aliás, é o que as crianças mais sentem falta, o que levou a um adoecimento emocional.
O Plano de metas
Assim, são vários fenômenos que ficaram evidenciados na pandemia e que estão sendo debatidos pelas entidades de educação, como a Contee. Estão lutando para resgatar esse projeto democrático de educação que está sob ataque, exigindo a aplicação do Plano Nacional de Educação que não foi colocado em prática.
O Plano Nacional de Educação estabelece metas para dez anos que, desde 2016, não são cumpridas. Em meio à pandemia, com os estados tendo que lidar com a tecnologia na educação, Madalena critica o veto do presidente Bolsonaro ao projeto que estabelece o fornecimento de tablets e internet para crianças de programas sociais, quilombolas e indígenas.
“No ano da pandemia, com toda a necessidade que os municípios tiveram, de R$ 42 bi do orçamento, eles devolveram R$ 32 sem usar, recurso que poderia atender à necessidade de acesso à internet das crianças”, lamentou. A professora ainda lembrou que o Ministério da Educação não fez nenhum programa articulado com municípios e estados nesse governo.
A dificuldade do ensino remoto para as crianças (Foto: Jorge Araujo/Fotos Publicas)
Novas contradições da pandemia
Uma novidade salientada a partir da pandemia foi a completa dependência brasileira de plataformas digitais internacionais. Ela diz respeito ao apelo de escolas e universidades, públicas e privadas, a plataformas caras de ensino remoto da Microsoft e Google. O fato delas coletarem dados dos usuários torna estratégico que o Brasil tenha sua plataforma nacional.
A educadora comentou o episódio do Big Brother Brasil (reality show da TV), em que o professor João Luis Pedrosa falou das dificuldades de seus alunos em se concentrar e evadir das aulas remotas. Segundo ele, quando um aluno faz uma pergunta totalmente fora do expediente dele, ele se sente na obrigação de responder, pois sabe que o estudante está fazendo o trabalho naquele momento. Se não obtiver resposta naquele momento, provavelmente vai deixar de entregar o trabalho. Isso gera uma enorme sobrecarga de trabalho segundo o participante do reality show.
Ela ressaltou, no entanto, que o expeidente formal do professor nunca foi efetivamente seu horário de trabalho. O contrato de trabalho do professor dificilmente considera tempo de preparo de aula, atualização, reuniões, correções. No entanto, isso se acentuou com a pandemia.
“Professores de ensino infantil que tiveram que gravar suas aulas e torná-las atrativas para crianças, tiveram que se tornar experts em gravação de aula, da noite para o dia. Teve que usar recursos que nunca tinha usado e teve que aprender a editar filme. Com isso, o professor, para gravar uma aula, levava sete horas. Pode parecer impossível isso, mas fizeram isso pelo Brasil todo”, relatou.
Sem mencionar o fato de que tudo isso foi feito em casa, com recursos pessoais, como computador, energia elétrica, internet, etc, tendo que ainda cuidar da casa. “Além disso, tem esse aspecto mencionado do colega do Big Brother, em que o acesso do aluno ao professor, hoje em dia, poder feito pelo Whatsapp. Ao responder o aluno na hora que ele precisa da resposta, a gente deixa de ter jornada formal”, disse.
Para além de tudo isso, Madalena ainda lembra que o monitoramento do patrão ao trabalho do professor se dá por meio de relatórios, já que ele está em casa e não tem como provar o trabalho. “Como você não está presencial, a forma de controle da empresa sobre o seu trabalho se dá por esses relatórios, questionários, além da aula remota e de atender os alunos”.
Outra responsabilidade enorme que assola o cotidiano dos professores na pandemia é tomar contato com dramas pessoais e familiares dos alunos. Lidam com problemas de subsistência, de violência doméstica, da relações dos pais, jovens que vêm no professor a pessoa em quem podem confiar. Se por um lado isso acionou a solidariedade dos professores, por outro gerou enorme angústia porque não há proximidade com o aluno para acompanhar a crise.
As graves consequências prolongadas da covid, sequelas que dificultam a capacidade do professor trabalhar, não são consideradas doença do trabalho. Assim, o profissional que é obrigado a ir trabalhar em condições inadequadas para a pandemia, terá que lutar para que sua condição seja considerada doença do trabalho.
Com isso, as entidades sindicais estão lutando para que o retorno às aulas presenciais seja em condições melhores da pandemia. “Ninguém melhor que nós, professores, para saber o quanto a aula presencial é importante, mesmo que parcial. Mas a Fiocruz já se manifestou dizendo que só é possível voltar às aulas se a taxa de contágio for menor que um, quando essa taxa está explosiva”.
Madalena menciona ainda a pressão do poder econômico para a volta dos professores “sob os devidos protocolos sanitários”, algo que sabemos ser vago e improvável. Pressionaram pela aprovação de um projeto de lei que considera a educação presencial uma “atividade essencial”, que não pode ser interrompida a qualquer custo. Aconteceria com os professores o que já ocorre com profissionais de outros setores, como transportes, que ficam doentes por trabalharem em ambientes fechados e lotados, respirando o vírus.
Privatização da educação
Com a entrada do capital aberto na educação superior e básica brasileira, desde 2005, os grupos que controlam as instituições privadas de ensino têm como único objetivo obter lucro para seus acionistas na bolsa de valores. “Existe uma frágil regulamentação, mas eles têm que respeitar. Por isso, lutam para transferir o setor da educação para a Organização Mundial do Comércio (OMC), assim deixará de ter regulamentação no Brasil”, explicou.
A regulamentação fiscalizaria exigências mínimas, como bibliotecas, laboratórios, quadro de professores por grupo de alunos, a serem atendidas pelas instituições. Assim, elas lutam pelo fim da regionalização para concentrarem a administração numa coordenação nacional. Segundo ela, não há qualquer garantia de fiscalização se estão cumprindo essa regulamentação, pois a Secretaria de Regulação do Ensino Superior está sob a responsabilidade de assessores desses grupos privados.
Ela cita o exemplo escandaloso da Uninove que demitiu 350 professores e acumulou turmas de diferentes cursos e localizações com um mesmo professor no ensino remoto. “Isso dá 1500 alunos, no mínimo, por professor!” Um processo brutal de padronização do ensino, sem garantia de qualquer critério de qualidade de aprendizagem. “Como um professor desse consegue aferir a assimilação do conteúdo pelos alunos, quando não dá nem para ter interação com esses alunos?”, questiona.
Essa precarização dramática deve se refletir no próximo Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior. Por isso, o governo luta contra as exigências do sistema. “Com esse governo, com certeza vão conseguir. Estamos na situação de que esse sistema que foi uma conquista de uma avaliação mais sistêmica do ensino superior, certamente, vai sofrer revezes”, previu.
Voltar antes da vacinação
Vigília pela Vida de professores em SP (Foto: Elineudo Meira)
Com o crescimento na sociedade da argumentação pelo retorno às aulas presenciais, Madalena diz que os professores estão resistindo, com greves e liminares judiciais, por exemplo. “Nós não queremos voltar só quando tiver vacina, até porque esse governo negacionista não comprou vacina. Queremos voltar quando a pandemia estiver minimamente controlada. Estamos falando de 50 milhões de pessoas envolvidas no retorno de aulas presenciais”, esclarece.
Madalena ressalta que essa situação de ensino remoto dói tanto nos alunos e famílias, quanto nos professores. “Sentimos saudades e queremos voltar para as escolas. Além disso, estamos muito preocupados com o tamanho da evasão escolar, com o déficit de aprendizagem”, salienta. Ela menciona que a evasão no ensino superior à distância já era muito maior que a evasão no ensino presencial. “Agora, imagina a capacidade de atenção de uma criança em fase de alfabetização numa aula no celular!”
Com o prolongamento indefinido da pandemia, a dirigente sindical acredita que seria necessária uma vigilância epidemiológica séria para reduzir os índices. Ela lembrou que na primeira onda, em meados de 2020, houve índices de contágio abaixo de 1, que os especialistas dizem ser adequado para uma flexibilização, junto com a ampliação da vacinação. “O que não dá, é manter esse abre e fecha que não leva a lugar nenhum no controle da circulação do vírus”.
Considerando que o ensino remoto se mantenha por mais tempo, ela defende que toda criança matriculada tenha acesso à tecnologia, porque a Constituição obriga toda criança a ter direito à educação, de 4 a 16 anos. “Tem famílias em que só a mãe tem um celular, e, quando ela sai para fazer faxina, leva o celular e as crianças ficam sem acesso”, relata, relembrando o veto do presidente Bolsonaro à lei para isso.
Depois, o estado precisa criar programas para essas crianças, seja alimentar ou atendimento psicológico. “Temos condições para isso”. Fora o professor que também não tem acesso a equipamento de qualidade, tendo que dar aula pelo celular. Ela fala ainda de casos em que os professores distribuem apostilas nas casas dos alunos e depois corrigem as tarefas.
Ela defende a necessidade de haver suporte para ajuda tecnológica, cursos, formação e regulamentação do trabalho. “O trabalho remoto entrou na nossa vida sem nenhuma regulamentação, em que vale tudo”.