Venezuela dialoga com setor privado para acabar com escassez de alimentos
“Onde você encontrou papel higiênico?”, pergunta um venezuelano à mulher que caminhava pelas ruas do centro de Caracas com uma sacola de supermercado nas mãos. A frase do homem e o olhar analítico aos produtos adquiridos transmitem um dos principais problemas enfrentados na atualidade na Venezuela: a escassez de produtos básicos nas prateleiras. Longas filas em locais onde alguns itens são encontrados e peregrinação por comércios são algumas consequências visíveis do desabastecimento.
Além do papel higiênico, os comércios registram falta de manteiga, leite, frango, ovos, azeite e farinha de milho pré-cozida, esta última uma das bases da alimentação local, ingrediente para as tradicionais “arepas”. Enquanto buscava produtos em um supermercado, um aposentado de 62 anos disse a Opera Mundi que nos Estados afastados da capital a escassez é ainda mais grave. “Sou de [Ilha de] Margarita e lá é muito pior que aqui. Então aproveito para comprar o que lá tenho certeza que não vou encontrar”.
Ao longo dos anos, a denominada “Revolução Bolivariana” tentou combater a especulação do valor de alimentos com programas sociais como o Mercal, rede de venda de produtos de primeira necessidade controlada pelo governo a preços subsidiados, e a sociedade Pdval, braço agrícola da PDVSA (Petróleos de Venezuela). Até mesmo nos mercados controlados pelo governo federal, no entanto, registra-se a falta de alguns de produtos.
Para a dona de casa Mari Bonaldi, de 37 anos, o problema se deve a compras excessivas e a rumores de que alimentos vão escassear. “Nós mesmos temos a culpa. Às vezes chegam caixas e caixas de um produto, mas quando você vai ver já não tem. Imediatamente entramos na fila para comprar farinha, mesmo que tenhamos em casa”, explica. “Uma vez vi bastante margarina em um mercado, avisei minha mãe e, em duas horas, já não tinha”, conta, explicando que programa suas compras em função do dia da semana em que o supermercado que frequenta é abastecido.
Para ela, outro fator que provoca escassez são os camelôs que vendem os produtos em falta a preços muito superiores. “Eles vendem a farinha de milho normal, que custa seis bolívares, a 20. Eles têm tudo o que não se consegue”, revela. Com quatro pacotes de papel higiênico em seu carrinho, o vendedor Vladimir Hernández, de 33 anos, conta que procura pelo produto há cerca de um mês e, por isso, compra em grande quantidade: “O que eu vou fazer se não consigo? Tenho que aproveitar, apesar de ainda ter em casa”.
Segundo o dono de um armazém no centro de Caracas, papel higiênico e sabão somem rapidamente de seu comércio. “Até chega, o problema é que acaba muito rápido. Quando não tem papel higiênico, as pessoas compram guardanapo. Mas aí o preço do guardanapo aumenta e todos os clientes ficam bravos”, argumenta. Consciente da corrida aos comércios, o governo venezuelano pediu que os consumidores não façam “compras nervosas”. Alguns supermercados limitam a quantidade máxima vendida por pessoa de alguns alimentos.
Segundo o aposentado de Ilha de Margarita, o desabastecimento piorou com a proximidade da eleição presidencial do país, realizada em 14 de abril. De fato, a incidência de gôndolas vazias aumentou, a imprensa local passou a exibir imagens de longas filas e a insatisfação de consumidores voltou ao centro do debate nacional.
Contato com empresários
Maduro admitiu que existe um “desabastecimento agudo” e atribuiu a falta de produtos a uma “guerra econômica” promovida por empresários opositores que pretendem boicotar sua gestão.
No último sábado, o presidente afirmou ter indícios de que a fabricante da “Harina Pan”, farinha de milho pré-cozida preferida pela maioria dos venezuelanos, estaria reduzindo a produção para o mercado nacional e “escondendo produtos para desabastecer”. Por isso, convocou o presidente das Empresas Polar, Lorenzo Mendoza, para explicar o suposto déficit. “Se você diz que é responsabilidade nossa o desabastecido de seus produtos, vitais em alguns rubros, vamos ver se é verdade, me comprometo. Se temos que corrigir (…) vou dizer ‘cometemos tal erro e vamos corrigi-lo’”, garantiu Maduro, em discurso televisonado.
A reunião foi prontamente aceita por Mendoza, que afirmou, em coletiva de imprensa, que no primeiro quadrimestre de 2013 a empresa aumentou em 10% a produção de farinha pré-cozida de milho em relação ao período no ano passado. De acordo com ele, a empresa trabalha a 100% de sua capacidade para a elaboração do produto e não retém alimento em galpões.
“É impossível que o [equivalente a] 48% [do mercado] que produzimos abasteça 100% do mercado”, expressou. O empresário disse que apresentaria ao governo propostas para aumentar a capacidade instalada para a produção da farinha, como o aluguel de uma planta produtora, mas ressaltou que a empresa precisa aumentar sua rentabilidade para possibilitar investimentos.
Mendoza questionou ainda a restrição à cota de importação de milho branco, a falta de incentivos a agricultores e o congelamento do preço do produto, que segundo ele faz com que a empresa trabalhe com perdas. Após se reunir com Maduro, no entanto, o empresário disse ter ficado “satisfeito” com o diálogo e com a disposição do governo em atender as necessidades do setor. Nas próximas semanas, o presidente venezuelano deve se reunir com outros empresários.
Para o ex-ministro venezuelano de Indústrias Básicas e Mineração Víctor Álvarez, do Centro Internacional Miranda, é preciso “enfrentar os dois lados da moeda”. Segundo ele, há o problema objetivo da crise no modelo rentista do país, que por anos subsidiou a importação de alimentos para conter a pressão inflacionária, em detrimento do aparato produtivo.
“Essa política cambial deu sinais de que teria que passar a um tipo de cambio flexível, para evitar que o aparato produtivo fosse inibido, castigado por essa torrente de importações que estavam sendo feitas com dólar barato, subsidiado”, analisa. Segundo ele, no contexto atual, o país já não conta com a mesma disponibilidade de divisas, o que diminui a capacidade de importação.
A esta conjuntura, soma-se a brecha entre o aumento do ritmo de consumo dos venezuelanos – pelo reajuste de salários e gratuidades na saúde e na educação, que permitem que o dinheiro dos venezuelanos renda mais – e a produção nacional. “Há um desequilibro. Se analisamos a série histórica da ultima década, o consumo na Venezuela cresceu em uma ordem de 3,8%, enquanto o aumento da oferta e da produção per capita foi de apenas 0,8%”, explica.
Agravamento após eleição
O outro lado da moeda é que a crise de escassez foi potencializada na conjuntura pós-eleitoral, “na qual a direita não admite uma derrota e tenta utilizar toda essa situação como vento a seu favor para desestabilizar e derrocar o governo” com o “respaldo das grandes potências industrializadas e de grandes corporações transnacionais, que foram afetadas em seus interesses por uma política de defesa da soberania venezuelana”, adotada por Hugo Chávez nos últimos 14 anos.
A ação desses grupos, segundo o governo, se dá de diferentes formas: desde o contrabando de produtos subsidiados a países fronteiriços, como a Colômbia, à diminuição de produção, especulação e retenção de itens, que acabam não sendo distribuídos ou vendidos.
Segundo Álvarez, há atores da sociedade venezuelana que “há tempos apostam em uma desestabilização do governo”, como há dez anos, quando um setor empresarial conspirou abertamente contra o governo, declarando uma paralização empresarial. “Eles tentam exacerbar e recrudescer a crise para aprofundar a situação de ingovernabilidade econômica”, explica.
Para ele, no entanto, o problema de desabastecimento “é real e objetivo, não é uma invenção mediática, e está registrado nos próprios índices do Banco Central da Venezuela e em algumas prateleiras vazias nas redes públicas, que não foram criadas para estocar e especular”.
Medidas
Para solucionar de maneira imediata o problema do desabastecimento, o governo venezuelano anunciou medidas como a importação de 50 milhões de rolos de papel higiênico, além de 760 mil toneladas de alimentos – como azeites vegetais, leite, açúcar e atum enlatado – oriundos dos países do Mercosul, com os quais se assinaram acordos de cooperação e comércio durante a visita de Maduro na semana passada.
Em entrevista à Telesur, o presidente venezuelano afirmou que a relação comercial de seu país com os integrantes do Mercosul soma 11 bilhões de dólares, dos quais 6 bilhões se devem somente ao intercâmbio bilateral com o Brasil. De acordo com ele, os 51 acordos realizados durante seu giro por esses países triplicarão a capacidade produtiva da Venezuela.
“Este giro conseguiu avançar, a um novo escalão, a cooperação para que a Venezuela se converta em um país produtor de seus alimentos, para garantir a estabilidade, a segurança alimentar com capacidade produtiva da terra venezuelana”, expressou Maduro. De acordo com a agência estatal de notícias do país, entre os convênios se prevê a instalação de empresas de processamento de matéria prima na Venezuela, assim como a criação conjunta com a Argentina de 200 fábricas de produção de alimentos.
Para contornar a escassez na raiz de seu problema, iniciativas de impacto estrutural foram aprovadas nesta semana para a reativação do aparato produtivo: exoneração do imposto de renda para o setor primário, financiamento para pequenos produtores agropecuários e empresas agroindustriais e subsídio a fabricantes de açúcar. Reuniões com empresários também estão sendo realizadas.
Os preços do girassol, frango, leite, queijos e carne bovina foram ajustados e se iniciaram inspeções de ritmo produtivo e infraestrutura necessária para o aumento da capacidade de fábricas. “Neste momento, uma das principais bandeiras do presidente Nicolás Maduro é abrir espaço para o diálogo com o setor privado. Todos os ministros têm essa instrução (…) e há vontade de reconhecer os problemas do setor privado, que gera 70% do PIB”, explicou Álvarez.