A "marchinha" carioca de anos atrás perguntava e respondia jocosamente: "Quem foi que inventou o Brasil? Foi seu Cabral, foi seu Cabral…" Nos debates que atualmente envolvem a nação sobre formas de governo falta o tom mordaz da "marchinha" para indagar: quem foi que inventou o presidencialismo, condenado por grande parte da população?

Não foi o povo, nem mesmo a elite pensante progressista. Surgiu com o golpe de força dos quartéis que derrubou a monarquia de origem portuguesa, em 1889, e copiou arrevesadamente o regime governamental estadunidense de fins do século XVIII. Mas não apenas isso. Apareceu também a República, que não correspondia sequer à semântica latina: res publica ou, no idioma nacional, coisa pública, algo criado para servir à coisa pública, ligado ao interesse comum. Despontou igualmente a Federação, que nunca funcionou, um mito cultuado até hoje como objeto sagrado no qual ninguém pode tocar.

Afinal, quem inventou mesmo esse sistema esdrúxulo de governo? Foram os militares, os marechais da década de 90 dos idos de 1800. Com a faca e o queijo na mão, traçaram a rota que lhes convinha. Impuseram o presidencialismo, a república, a federação de mentira. Nascia com eles o militarismo desenfreado que evoluiu até se converter numa casta que se sobrepõe à nação. Apoiaram-se no positivismo de Augusto Comte, em moda na época entre os militares brasileiros, doutrina idealista da história que nega a realidade concreta, material. O positivismo pregava, como forma de governo, a ditadura esclarecida, na prática obtusa, obscurantista. Isto calhava bem à mentalidade de caserna acostumada ao mandonismo autoritário. Os generais nunca compreenderam a república e o presidencialismo senão como ditadura militar, acobertada por normas pseudo-constitucionais, com ou sem civis à frente do governo.

E foi o que se viu. Em quase cem anos de aplicação do invento político dos generais, prevaleceu um sistema anacrônico, inadaptado à realidade nacional. Não sobrou nada, tudo corroído e corrompido até os alicerces. Nem instituições, nem partidos políticos, nem autonomia dos Estados, nem moralidade administrativa sobreviveram. Golpes e mais golpes. As Forças Armadas puseram e dispuseram, mandaram e desmandaram ao seu livre arbítrio. Quando os governantes não lhes agradavam ou não lhes obedeciam completamente eram derrubados e lá se iam para o exílio ou para a sepultura. E nem se diga que fossem governos progressistas, mas simplesmente partidários da ordem civil organizada. Nesse prolongado tumulto da vida brasileira não faltou o festim máximo dos generais – vinte e um anos corridos de ditadura militar que abastardou a nação e amarrou-lhe os punhos em favor do capital estrangeiro. O saldo positivo dessa incongruência foi o crescimento da consciência democrática e nacional do povo, que deseja, como verdadeiro dono do país, imprimir à Administração federal e à direção dos negócios públicos a marca de suas aspirações mais sentidas, com destaque para a liberdade e a defesa da independência nacional. Só não vê quem não quer. O brado de fora Sarney – criatura dos militares – e de Forças Armadas em seu lugar, unicamente guardiãs das fronteiras da pátria, ecoa forte por toda parte. Ninguém quer a repetição de presidente imperial, submetido aos generais, no sistema presidencialista falido. O Brasil exige novo sistema de governo.

E quando o quadro vai-se delimitando, em prol da mudança da forma de governo, eis que o atual presidente da República declara à imprensa, para ampla divulgação, que o presidencialismo é tradição e vocação nacional. Já se viu? Tradição militarista, se nos permitem, de senhores do baraço e do cutelo que atropelaram durante cem anos a vida política da nação. Vocação… Em que sentido? Predestinação, pendor? Vocação de oligarcas, sobretudo de São Paulo e Minas, que utilizaram a invenção positivista dos generais para excluir o povo da atividade relacionada com o poder político. O Brasil não está predestinado a ter futuro tão triste e humilhante – o de viver escravizado por opressores nacionais e estrangeiros. A verdadeira tradição e vocação dos brasileiros é a da luta tenaz pela conquista da liberdade, da independência da pátria, desde Tiradentes até a juventude tombada nas ruas, nos cárceres, nas selvas do Araguaia no período de 1964 a 1979.

Em vias de ser substituído, diz o homem do Planalto que o presidencialismo decorre da dimensão do país. Se for grande tem de ser presidencialista. Não faltava mais nada! Onde ficam, nas sandices sarneysianas, Paraguai, Chile, Guatemala, Bolívia, Honduras e Salvador? Deviam ter outro regime porque são pequenos? Segundo ele, o conceito de sistema de governo deve ser geográfico, e não político. Todavia, a forma de governo nada tem a ver com o tamanho do país, mas com o caráter da organização política da sociedade, com a implantação de meios que garantam a democracia e assegurem condições reais para o progresso social. O fascismo é também uma forma de governo, porém terrorista, representativa das classes mais reacionárias, inimigas do povo. No Brasil, o presidencialismo é uma monarquia disfarçada que pune e submete os que aspiram a ser livres, que mantém o país – imenso país – no atraso, na ignorância, na miséria, na dependência dos banqueiros internacionais.

É inócuo envernizar o presidencialismo. Não há maneira de modernizar o que é definitivamente arcaico. Isto vai para o lixo da história. E se se quer progredir e alcançar a democracia há que enterrar, juntos, o sistema presidencialista e o militarismo que lhe deram origem. São dois cadáveres insepultos que empestam o ambiente conturbado da nação brasileira, ansiosa de afirmar sua soberania e renovar suas instituições, hoje em estado lastimável.

EDIÇÃO 14, OUT/NOV, 1987, PÁGINAS 3, 4