"Qual é a situação do Brasil? Não há mais nada de generoso, de nacional ou de grande; nada em favor da glória, da liberdade, da prosperidade. O entusiasmo extinguiu-se. O torpor do egoísmo invade lentamente, como um veneno, desde o coração às extremidades, e enlanguesce as carnes mórbidas de uma sociedade que apodrece e se dissolve … "
(Sales Torres Homem, 1849, em O libelo do povo)

Sob o título "Reforma Partidária (Liberdade do dinheiro x Liberdade do eleitor)", escrevi um artigo para a revista Princípios, em seu número 26, de 1992, quando as labaredas da crise que envolveu o governo Collor já consumiam as cortinas do Palácio do Planalto. Na época, assim como hoje, a tese de que sem reformas políticas o país estaria perdido repicava nos editoriais e nos discursos das correntes conservadoras.

O tema de tais reformas (eleitoral e partidária) voltou revigorado ao debate nacional, com a divulgação, em dezembro último, do Relatório Final do senador Sérgio Machado (PSDB-CE), relator da comissão do Senado encarregada de reunir propostas e sugestões sobre o assunto, considerado de alta relevância pelo Presidente da República e pela cúpula do Poder Legislativo nacional.

Entre os projetos de lei sugeridos e as propostas de emenda à Constituição apresentadas, duas definem o caráter e os objetivos da pretensa reforma: a cláusula de desempenho, também chamada de cláusula de barreira. e o voto distrital. Aí passamos a discutir a partir de interesses reais, concretos, e não de abstrações que colocam a exigência de tais mudanças na conta secreta do chamado fortalecimento dos partidos e da ampliação da governabilidade, sem definir partidos para quem e governabilidade para o quê.

A verdade é que toma-se cada vez mais incompatível a convivência entre a democracia formal e a globalização neoliberal. Enquanto a primeira oferece mecanismos de defesa contra a ditadura do mercado, a segunda necessita de métodos sempre ditatoriais e impositivos para promover os ajustes à custa do prejuízo de interesses sociais cada vez mais amplos.

Assim, é quase impossível destruir direitos históricos dos assalariados, transferir patrimônio público para monopólios privados ou sacrificar empresas nacionais no altar de juros insuportáveis, se as vítimas dessa política possuírem os instrumentos defensivos apropriados para a defesa de seus direitos democráticos constitucionais e legais.

A conspiração neoliberal para liquidar as conquistas democráticas não surge de alguma deformação desse pensamento conservador. Ao contrário, nasce de sua própria natureza elitista e excludente ao localizar seu campo de representação entre banqueiros gananciosos, especuladores internacionais e nos que sobrevivem do repasto de suas migalhas.

A imposição da ideologia e da cultura do grande capital, o controle da mídia e a limitação de direitos tais como a liberdade sindical e partidária fazem parte do arsenal conservador para quebrar a resistência dos povos e dos setores democráticos da sociedade.

Democracia sem povo

Quando se propõem a reformar a legislação eleitoral e partidária, o governo e as correntes dominantes o fazem em nome desses interesses, embora reproduzam o hábito secular das elites nacionais de tentar impor ao país uma democracia sem povo e um sistema partidário restrito aos partidos das oligarquias ligadas ao capital, principalmente estrangeiro.

A cláusula de barreira pretende estabelecer a exclusão da representação dos partidos que não alcançarem o quociente mínimo de 5% dos votos válidos. Argumentam que só assim surgiriam partidos verdadeiros, sólidos, programáticos, etc. O cinismo é tanto, que estes mesmos defensores da chamada democracia de mercado julgariam um atentado. ou mesmo loucura, a simples hipótese de exclusão do sistema capitalista de uma empresa que não alcançasse o mínimo de 5% do mercado ao qual destinasse os seus produtos.

Pelo mecanismo pretendido, caso viesse a ser adotado com efeitos retroativos, deixariam de existir o PT, o PDT e o PSB por não terem alcançado os 5% dos votos válidos na primeira eleição de que participaram. A própria ditadura foi obrigada a flexibilizar a exigência da legislação ditatorial para não se expor ao ridículo de promover eleições com a presença apenas da ARENA.

O voto distrital, em sua forma pura, ou misto, já aplicado em alguns países, contribuiu para extinguir as minorias da representação parlamentar. Na Inglaterra e no Chile, por exemplo, partidos que chegam a ultrapassar 20% dos votos nas eleições de alguns distritos ficam sem representação por força do casuísmo do sistema eleitoral.

A Lei dos Círculos, discutida no parlamento do Império em 1855, suscitou o mesmo debate. A oposição no Senado acusou: "os deputados e senadores não sairão mais dentre as pessoas notáveis e bastante conhecidas para se fazerem aceitas por uma província inteira; os empregados subalternos, as notabilidades de aldeia,

A lei foi aprovada e as províncias do Império divididas em tantos distritos eleitorais quantos fossem os seus deputados à Assembléia Geral. A divisão foi feita pelo governo, ouvidos os presidentes das províncias. A oposição denunciara o que de fato veio a ocorrer: eleições manipuladas, distritos viciados, favorecimento dos poderosos do dia.

Hoje seria diferente, poderiam sustentar os defensores de plantão do voto distrital. Mas quem pode desconhecer a advertência de Tavares Bastos sobre os riscos da representação das minorias quando defendeu a reforma eleitoral e parlamentar para ampliar a representação do pensamento contestador da época do Império, e que hoje continuam tão atuais?

"Esbulhar do direito de representação a outra ou outras secções da nação que dissentem da maioria real ou oficial, é o propósito de todas as tiranias: calar as oposições, subjuga-las, exterminá-las ou lançá-las na via fatal das conspirações, nisso consiste a habilidade dos despotismos perversos ou temerários". Eis a advertência do tribuno alagoano contra as limitações da legislação eleitoral da Monarquia.

A "ficção" segundo Ouro Preto

A pressão da máquina administrativa, do poder econômico, da mídia encabrestada e, mais recentemente, dos institutos de pesquisa, tomarão as eleições por distritos um arremedo de democracia a ser questionado como foram seus similares no passado, e não em instrumento de governabilidade ou afirmação partidária.
A Monarquia chegou ao fim e entre as causas de sua debacle o próprio Visconde de Ouro Preto, chefe do último gabinete imperial, apontou o artificialismo partidário. "Ficção", qualificou Ouro Preto ao apontar o sistema partidário existente.

A República recém proclamada prometeu nos seus primeiros anos voz e vez aos que andaram debaixo do sistema político imperial. Ilusão! A oligarquia paulista varreu da cena política os jacobinos, os florianistas, e assentou o sistema partidário imperial nos fazendeiros de São Paulo e Minas Gerais e nos seus respectivos partidos. Até a Revolução de 30, quando os remanescentes do republicanismo positivista apoiados em novos atores golpearam a oligarquia rural para com ela repactuar em seguida um esquema de dominação.

O sistema partidário e eleitoral foi montado a partir de 1945 com base em dois partidos, UDN e PSD, ficando o PTB como a reserva para a insatisfação de oligarquias dissidentes e do proletariado, já que o Partido Comunista fora proscrito em 1947, com menos de dois anos de atividade legal.
A "nova experiência" de democracia com base em grandes partidos das classes dominantes sobreviveu até 1964. Um golpe militar sufocou legendas, liberdades, e nada criou de novo. Dois novos partidos surgiram: a ARENA, oficial, da ditadura, cujo presidente Francelino Pereira chegou a julgá-lo o maior do Ocidente, e o outro, o MDB, criado para contracenar
a farsa ditatorial, mas que conseguiu agrupar, pouco a pouco, a maioria das correntes oposicionistas, tomando-se o elemento decisivo para por fim ao ciclo de dominação militar.

É estarrecedor constatar que os círculos conservadores desejam encerrar a primeira e mais duradoura experiência de liberdade partidária iniciada em 1985, sem propor novidade a não ser retomar o sistema viciado e derrotado de uma democracia limitada à participação política das classes conservadoras e de suas legendas. Com a diferença de que antes promoviam o aborto da democracia em nome de seus interesses mesquinhos e agora o fazem como sócios menores da recolonização do país pelo capital financeiro internacional.

* Aldo Rebelo é jornalista e deputado federal pelo PCdoB-SP.

Bibliografia:
CHACON, Vamireh. História dos partidos brasileiros. Brasília, Editora da UnB, 1981.
HOLANDA Sérgio Buarque. História geral da civilização brasileira, lI, O Brasil monárquico, tomo 3, capítulo L São Paulo –
Rio de Janeiro, Difel, 1976.
LIMA, Oliveira. Fonnação histórica da nacionalidade brasileira. Rio de Janeiro, Topbooks,1997.
MACHADO, Sérgio. Refonna política partidária – Relatório Final. Brasília, Senado Federal, 1998. MELO FRANCO, Afonso Arinos. História e teoria dos partidos políticos no Brasil. São Paulo, AlfaÔmega,1980.
TAVARES BASTOS, A.C. Os males do presente e as esperanças do futuro. São Paulo-Rio-Recife-Porto Alegre, Companhia Editora Nacional, 1939.

EDIÇÃO 52, FEV/MAR/ABR, 1999, PÁGINAS 16, 17, 18