Neste século, houve uma articulação íntima entre as polícias latino-americanas e norte-americana, ferindo a soberania nacional dos países da América Latina – principalmente a polícia política, voltada à repressão da luta pela democracia, pelo progresso e pela afirmação nacional. Articulação feita, muitas vezes, à margem das leis e mesmo do conhecimento dos governos envolvidos. Este é o tema do livro Polícia e política: relações Estados Unidos/América Latina, da professora norte-americana Martha K. Huggins, publicado no Brasil pela Cortez Editores. Nele, o estudo das relações entre policiais brasileiros e norte-americanos tem grande destaque.

Martha Huggins é velha conhecida dos brasileiros: ela estuda nosso país há mais de 20 anos, e já lecionou na Universidade Federal de Pernambuco, na Universidade de Brasília e na Universidade de São Paulo. Atualmente, é professora titular de sociologia do Union College (Schenectady, Nova Iorque).
Seu livro é um retrato contundente da promiscuidade entre agentes policiais dos vários países envolvidos, e dos atentados contra a segurança pública e contra a soberania nacional. Há uma verdadeira comunidade repressiva, cuja ação muitas vezes passa ao largo da legalidade, e mesmo do conhecimento dos governos dos países que participam de programas de treinamento patrocinados pelo governo dos Estados Unidos. E, enfatiza ela, não se trata apenas de coisas ocorridas no passado; ao contrário, hoje, os recursos de todo tipo usados nesses programas são muito maiores do que os empregados na década de 1960, vista por muitos como exemplar desse gênero de ação. Martha Huggins conversou com Princípios em dezembro de 1998 para falar do livro e de outros temas ligados à polícia. A polícia pode ser vista como um organismo que disfarça as diferenças e a dominação de classe?

Martha Huggins: Quando comecei o primeiro capítulo do livro Polícia e política, queria escrever sobre a polícia e demonstrar que ela é sempre política. Política em termos de seu papel dentro de um Estado de classe e política em termos de sua própria história – a polícia sempre trabalhou para uma classe contra a outra.

A história da polícia sempre foi a tentativa de quebrar a aliança de classe entre a corporação policial, cujos membros advém das camadas trabalhadoras, e os próprios trabalhadores, a quem eles precisavam reprimir ou matar. Essa história mostra como os dirigentes do Estado quebraram sistematicamente as ligações sociais, culturais e educacionais entre a polícia e o povo. Foi uma ação política, mesmo que não explicitada formalmente. Antes não havia polícia institucionalizada, haviam milícias privadas em que o domínio de classe era muito visível. Uma situação como essa não podia continuar, e foi para corrigi-la que surgiu a polícia “profissional”, aparentemente “neutra”, acima das classes, para não comprometer a imagem de um país democrático. A própria ação dos exércitos por dentro de um país reprimindo seu povo também não podia continuar pois expunha os interesses de classe que dominam o aparato repressor e do Estado.

É mais barato para os Estados Unidos apoiar as polícias locais dos estados em sua esfera do que intervir militarmente de forma direta?

Martha Huggins: O que vemos, por exemplo, no atual ataque dos Estados Unidos ao Iraque é um conjunto de esforços materiais gigantescos. E muitos dos aliados dos EUA não estão apoiando politicamente os ataques. E isso é um problema. A intervenção militar aberta tem custo econômico, mas que acaba sendo melhor para o próprio crescimento da indústria bélica – que se desenvolve e ajuda o conjunto da economia dos EUA. Mas politicamente, seria melhor intervir por outros meios, estritamente políticos e que garantissem mais apoio político internacional. A doutrina seguida por presidentes norte-americanos como Kennedy, estrategistas como o general Eisenhower, sempre preferiu a prevenção política à intervenção das forças armadas. Prevenir internamente através da polícia – através da espionagem e da informação – dá melhores resultados políticos para a estratégia com intuitos ideológicos.

As ideologias que justificam as intervenções dos Estados Unidos até hoje não tiveram um argumento tão forte quanto o da ameaça comunista. Os EUA gastaram muito dinheiro para convencer os governos, até os latino-americanos, do perigo da ameaça comunista. Na década de 1950, a América Latina não parecia convencida disso, e por isso os EUA gastaram muito dinheiro. Mesmo o apelo atual do antiterrorismo, das drogas e do crime organizado não têm a força da campanha anticomunista. Filmes como Nova Iorque sitiada ajudam, por exemplo, a criar essa mentalidade, mas sem a mesma força de antes.

A internacionalização da polícia brasileira se deu pelos “porões”, pela “porta dos fundos”, e isso teria passado à margem do próprio governo brasileiro. Começou em 1931 e cresceu depois do levante da Aliança Nacional Libertadora (ANL) em 1935.

Martha Huggins: Naquela época havia boa amizade entre o chefe da polícia brasileira e o embaixador norte-americano. Felinto Müller passava ao embaixador norte-americano informações que o próprio ministério das Relações Exteriores brasileiro não tinha. Hoje é bem diferente do sistema que existia na década de 1930, que era até ingênuo se comparado ao aparato atual.
Não se compara com o programa que surgiu na década de 1960 em que o sistema de segurança internacional se organizou nos EUA, onde foram criados programas para vender ao mundo. Os programas de treinamento objetivam formar uma consciência geral, estreitar relações pessoais e vender produtos da indústria policial (armas, equipamentos, insumos – muita coisa foi testada no Vietnã). Os programas de treinamento gerados a partir dos EUA criam relações e repassam know how de repressão em sistemas organizativos padronizados. Pessoas do SNI, OBAN, DOI-CODI, GOE, etc, receberam apoio dos EUA.
A intervenção, hoje, continua e é ainda maior. A polícia está mais preparada para reprimir que na época do regime militar. Hoje é mais sutil, e na época anterior era mais visível. O FBI tem escritório no Rio de Janeiro, aberto em 1997. A vigilância atual da sociedade sobre a polícia parece que perdeu o destaque que tinha na época da ditadura. Alguns grupos de direitos humanos lutaram nos anos 1960 contra os treinamentos policiais. Hoje, esses grupos apóiam a intervenção norte-americana, na ilusão de que profissionalizando a polícia, o nível da ação policial será mais elevado e o de violência mais baixo. Não levam em conta que a pobreza está aumentando…

Sobre o discurso da profissionalização da polícia: há algo mais embutido nele?

Martha Huggins: O problema real é o contrário do discurso que permeia as instâncias policiais. Entrevistei 14 policiais torturadores no Brasil e poucos deles apontaram a doutrina da segurança nacional como o motivo para a tortura. Só quatro disseram isso. Os torturadores de ontem dizem que torturam hoje por motivos “profissionais”, e não mencionam a tese da segurança nacional. A maioria deu várias justificações, falaram de “profissionalização”, de que devemos “profissionalizar a polícia para evitar a violência” etc. Porém, eles falam de “profissionalização” como autonomia do aparato policial em relação à sociedade. Penso que jamais se deve dar autonomia à polícia – o resultado seria aumentar os índices de violência. O que precisamos é de fiscalização e controle social maior sobre o aparato. Acho que a diferença que existe entre os dados da violência brasileira e a norte-americana – que mostram mais violência por parte dos policiais brasileiros – se deve ao maior controle social que há sobre a polícia por lá.
A própria “profissionalização” é uma motivação de classe. Esse processo de “profissionalização” foi vivido pelos Estados Unidos nos anos 1920, quando houve uma transferência de lealdade do aparato policial para as classes médias das cidades, e a polícia ficou mais violenta.
Aqui no Brasil há um grupo de policiais lutando dentro do sistema contra a violência em sua corporação e eles pregam a desmilitarização da polícia.

Há relação entre militarização/profissionalização da polícia e surgimento dos “esquadrões da morte”?

Martha Huggins – Isso é uma questão para se pesquisar mais… Há ligação formal e informal entre “esquadrões” e a instituição policial. O processo de profissionalização pode gerar essa degeneração. O primeiro esquadrão “oficializado” surgiu no Rio de Janeiro com o general Amaury Kruel, em 1959. Os Estados Unidos deram apoio à uma entidade policial como mostra o exemplo do secretário da Segurança Pública do Espírito Santo, José Dias Lopes, que formou dez anos depois um esquadrão de morte.
No senso comum, uma autoridade policial que se sinta tolhida em sua ação pelo controle do judiciário pode desembocar em ações de tipo esquadrão. Na medida que se tem uma autoridade “técnica” sem controle, essa ação autônoma cresce. Esse processo pode começar quando um problema existe e não pode ser resolvido através do sistema policial formal legal. Por exemplo, um antigo chefe do DOPS de São Paulo falou-me que criou um grupo em sua diretoria para ajudá-lo, para agir fora da “ordem”. Os esquadrões da morte, em geral, não poderiam existir sem o apoio das cúpulas da polícia e do próprio governo.

Os policiais são seres humanos…

Martha Huggins: A polícia brasileira está pagando um alto preço por atuar de forma violenta contra o povo. Mesmo entre os policiais de grupos especiais é alto o índice de alcoolismo, suicídio, hipertensão, envolvimento com drogas. A filha de um policial do DOI-CODI disse em uma entrevista que o pai mudou, que inicialmente gostava de ser policial e de andar com o povo, e depois virou um fanático e se transformou profundamente na frente dela. Entrevistei um policial paulista há três anos, e ele me contou que o governo da época, em 1993, queria montar mais um grupo de extermínio… Sobre as operações de treinamento, qual o papel dos policiais brasileiros treinados pelos Estados Unidos naquela operação limpeza que teve logo depois do golpe de 1964?

Martha Huggins: Os Estados Unidos conheciam a ação dos IPMs, sabiam que o objetivo era limpar o país dos comunistas, e achavam isso necessário. Cito o exemplo do policial David Hazen, que recebeu treinamento nos EUA e era funcionário do DOPS em Minas Gerais. Após 1964, participou da “operação limpeza” contra os comunistas, ação vista com aprovação pelos norte-americanos. Hazen passou informações obtidas dessa forma às autoridades norte-americanas. Esse tipo de policial brasileiro é leal para com a autoridade brasileira, mas também com a autoridade externa, de onde recebeu treinamento, prestígio político devido à ligação com instituições policiais, ligações pessoais com agentes americanos etc.

Durante o Estado Novo…

Martha Huggins: Os dirigentes policiais do Brasil – Felinto Müller e outros – além de passar informações privilegiadas aos Estados Unidos, ajudaram na captura de Prestes e outros líderes comunistas. Um desses chefes da polícia na época recebeu convite do presidente Roosevelt, outro do DEA, e outro ficou um ano na Gestapo. O livro de Elizabeth Cancelli (O mundo da violência: a polícia da era Vargas, publicado pela editora da UnB) analisa o levante da ANL em 1935 e mostra com detalhes, baseado em documentos do FBI dos anos 1930, a atividade anticomunista no Brasil. Mostrou coisas sobre o caso Harry Berger, demonstrou que o cidadão americano Vítor Baron foi morto pela polícia brasileira, e o embaixador norte-americano sabia disso.

Existe amparo legal para esse tipo de cooperação da polícia dos EUA com polícias de outros países?

Martha Huggins: Sim, agora existe. O Congresso norte-americano fechou os programas para treinar policiais em 1974. Mas permitiu a continuação do treinamento contra o tráfico de drogas, que continua até agora. Nos anos 1980, Ronald Reagan lançou-mão de um decreto, em segredo, que permitiu o treinamento da polícia de outros países contra terrorismo, permitindo treinamento para o cerco das ilhas do Caribe em torno de Cuba e Granada – que foi invadida; depois ampliou-se o treinamento antidrogas e contra o crime organizado. A cada ano tais permissões vão se ampliando. Hoje, os recursos usados nesses programas são 400% maiores do que no período de 1968, aquele onde houve maior quantidade. A maior parte desse aumento destina-se aos países da ex-União Soviética, a exemplo dos de combate ao crime organizado.
Os programas cresceram muito e existem recursos alocados para diversos países. Dentre os cinco países que recebem mais apoio contra o terrorismo, em primeiro lugar está a Jordânia (com mais de US$ 1,350 milhão) e em segundo o Brasil (que recebe US$ 1,325 milhão) – mas há hoje terroristas no Brasil?
Tais programas são ou centralizados pelo Departamento de Estado ( DEA) ou dão-se “por baixo do pano”, via CIA, via FBI. O DEA é um exemplo de grande programa – é uma forte burocracia que serve para venda de equipamentos, armas…

Como eliminar a violência policial?

Martha Huggins: Tem de se eliminar a pobreza. Há relação entre crime e miséria. A miséria leva a polícia a fazer coisas que não seriam de sua atribuição. A presença da polícia acaba sendo necessária para o controle político dos pobres, para “limpar” consequências da desigualdade social.
Resolver a questão da distribuição da renda, que levaria à superação dos problemas, só será possível com política ampla. Por mais que a ação policial se dê, não atinge a raiz da questão, e o papel da polícia acaba sendo uma ação política às avessas do que deveria. A repressão policial nunca vai curar o problema e essa frustração sentida pelos policiais se reverte em mais violência policial. O povo vai cultivando ódio à polícia, que mais se parece uma força de ocupação.
José Carlos Ruy é jornalista. Esta entrevista foi realizada em dezembro de 1998, em São Paulo. Colaborou Edvar Bonotto.

EDIÇÃO 53, MAI/JUN/JUL, 1999, PÁGINAS 69, 70, 71, 72