Apesar de ser muito atuante e de exercer (quando unida) considerável influência política e social no país, a esquerda brasileira não tem dedicado maior atenção à sistematização teórica de sua rica experiência, sobretudo no que concerne à articulação desta com o objetivo programático mais geral da transformação socialista da nossa sociedade. Em outras palavras, sua ação política tem sido marcada por fortes doses de praticismo. Esta breve contribuição pretende, justamente, chamar atenção para alguns temas teóricos cruciais subjacentes a essa ação.

Duas formulações da teoria política do marxismo clássico me parecem chaves para a reflexão sobre a ação política da esquerda brasileira: o reconhecimento do caráter de classe do poder de Estado e a identificação da centralidade das formas de apropriação na estruturação e conformação da vida social. Ambas as questões já se encontram formuladas explicitamente nas páginas do sesquicentenário Manifesto Comunista e foram sustentadas e desenvolvidas por Marx e Engels ao longo do restante das suas vidas.

A primeira questão mencionada acima nos alerta para o viés de classe materializado nas instituições e práticas do Estado. Este se revela, assim, o “poder organizado de uma classe para opressão de outra”, mesmo quando absorve reivindicações parciais das classes oprimidas, como ocorreu com a progressiva extensão do sufrágio nos estado liberais a partir das primeiras mobilizações operárias no século passado. Esta compreensão teórica marxista nos guarda contra a ilusão de que eventuais conquistas de governos ou maiorias parlamentares pelos partidos de esquerda possam, por si, alterar a natureza de classe do Estado.

A segunda questão indicada nos chama a atenção para o fato da própria polarização de classes da sociedade estar fundada sobre estrutura de propriedade e as relações sociais a ela vinculadas. Qualquer projeto efetivo de emancipação, portanto, tem, forçosamente, de colocar como questão fundamental a superação das estruturas altamente concentradas de propriedade privada, como já nos alertavam Marx e Engels nas páginas finais do Manifesto. Acredito, mesmo, ser esta a linha que demarca uma orientação “revolucionária” de outra meramente “reformista” no seio da esquerda. Esta compreensão não implica, no entanto, qualquer subestimação da importância da luta por reformas, como veremos mais adiante.

As duas formulações teóricas que acabamos de ver têm implicações diretas e profundas para a ação de partidos que buscam realizar um projeto de emancipação via a transformação socialista das suas respectivas sociedades. Uma primeira e crucial conseqüência é a absoluta centralidade da luta política para essa realização. É necessário disputar e conquistar o poder de Estado (isto é, o monopólio coercitivo e administrativo exercido por essa forma social dentro de determinado território) para implementar a transformação progressiva das estruturas de propriedade e das relações de opressão, exploração e alienação a ela associadas. Isto, por sua vez, exige a organização de partidos políticos orientados para a transformação socialista. É precisamente em torno desta questão que se trava toda a polêmica de Marx com os anarquistas no século passado. Mas o poder de Estado materializa na sua configuração institucional a dominação de classes que lhe é específica, estes partidos devem orientar a sua ação política para a ruptura com as formas assumidas pelo estado burguês (mesmo no formato liberal-democrático) de forma a erguer e consolidar um novo poder com instituições e práticas que materializem a dominação política dos trabalhadores (com uma configuração democrática mais ampla e mais profunda do que o mais democrático dos estados liberais). Esta defesa da necessidade da revolução era a base da crítica dirigida pelo marxismo clássico às ilusões dos que ele chamava de “socialistas burgueses”.

Estes pontos básicos da teoria política marxista me parecem ainda atuais. Mas a questão que se coloca em seguida é a que mais se liga ao debate sobre a experiência recente da esquerda brasileira: que caminho político os partidos de orientação socialistas devem trilhar para efetuar a ruptura com a configuração estatal existente e viabilizar a transformação socialista da propriedade e das relações sociais? Com o advento do “foquismo” nos anos 1960 e 1970, o debate da esquerda sobre essa questão, no Brasil e na América Latina, foi dominado pela contraposição genérica da opção pela “luta armada” à opção pela “transição pacífica”. Essa me parece, de fato, uma falsa polêmica, pois reduziu o que é, efetivamente, uma complexa discussão programática, conceitual e estratégica a uma mera questão de escolha de métodos de luta ( na maior parte das vezes sem situar essa escolha nas especifidades da luta social e política de cada formação social nacional).

Nos anos 1980 e 1990 o debate ressurgiu com menos intensidade via a contraposição igualmente genérica da “revolução” à “reforma”. A questão, uma vez mais, me parece mal posta. A relação entre a luta por reformas e o advento de rupturas revolucionárias, na verdade, é muito mais complexa e variada do que essa contraposição doutrinária faz supor. O fato é que todas as experiências das rupturas revolucionárias no Século XX foram conduzidas por movimentos sociais e políticos que exigiam reformas (a retirada da guerra e distribuição de terras aos camponeses na Rússia, a unificação e libertação nacional na China, o fim da ocupação nazista na Europa Central e do Leste, o fim da corrupção e o resgate da dignidade nacional em Cuba etc.). Foi justamente ao encabeçar a luta por reformas de forte apelo popular (reformas estas que, por distintas razões, os antigos regimes não podiam atender) que as forças socialistas se tornaram hegemônicas no interior dos processos revolucionários dos seus respectivos países e puderam encaminhá-los para a transformação socialista.

A discussão do parágrafo anterior nos remete para o tema da disputa da “hegemonia”, tão caro a importantes pensadores e dirigentes políticos marxistas do início deste século, como Lênin e Gramsci (o primeiro adotando um enfoque mais propriamente político do tema, e o segundo combinando elementos políticos e culturais). Crucial na abordagem de ambos é a defesa de uma ação política ampla nos partidos de orientação socialista, rompendo com os limites da consciência meramente corporativa que os trabalhadores desenvolvem de forma espontânea a partir dos valores dominantes da sociedade capitalista. Esta concepção aponta para a necessidade de atuar no curso do processo político de cada país, buscando construir alianças e frentes contra-hegemônicas adequadas à correlação de forças de cada fase desse processo (isto é, procurando, simultaneamente, isolar e golpear o adversário principal de cada fase, neutralizar as forças vacilantes e ampliar o bloco de forças que se opõe ao adversário). Este tipo de atuação é fundamental para evitar que o adversário principal consiga marginalizar ou isolar as próprias forças socialistas no curso da luta política. Afinal, não há maior punição para um partido que pretende “fazer História” do que se tornar politicamente irrelevante…

A concepção de ação política revolucionária descrita acima me parece absolutamente fundamental para a reflexão sobre os caminhos da esquerda brasileira. Ela exige, em particular, que cada partido parta das particularidades da formação social onde atua para formular seu programa, estratégia e táticas de atuação política. Em outras palavras, que o projeto socialista de emancipação universal se enraíze fortemente no solo nacional. Ela é visceralmente contrária, portanto, aos “modelos únicos de socialismo” ou de “transição ao socialismo” que estiveram tão em voga no Século XX.

Isto nos conduz, por fim, à análise das particularidades do processo político brasileiro. Ao longo da última década, a vida política nacional tem sido marcada pela tentativa de consolidar um novo modelo liberal de desenvolvimento, em substituição ao modelo nacional-desenvolvimentista que predominou no país entre os anos 1930 e 1980 ainda nos limites de um capitalismo dependente. A ofensiva neoliberal deflagrada no governo Collor e consolidada no primeiro governo de Fernando Henrique vem destruindo instrumentos fundamentais de defesa da soberania econômica e política do país erguidos na era desenvolvimentista anterior, além de aprofundar a crise social e agravar as desigualdades sociais em um país que já é recordista mundial de desigualdade. Mesmo no âmbito do empresariado nacional, essa política tem penalizado fortemente o setor produtivo, desviando cada vez mais recursos e riqueza para a realização dos lucros de atividades financeiras meramente especulativas.

Do ponto de vista político, a implementação deste projeto tem implicado no reforço das tendências autoritarizantes do governo federal, com a hipertrofia do poder executivo, estrangulamento financeiro dos governos estaduais e proposições para a restrição do pluralismo político. A implantação do projeto neoliberal no Brasil vem, portanto, deflagrando e agravando múltiplas contradições que hoje se materializam de forma dramática na crise financeira. Esse projeto hegemônico dominante, que até pouco tempo atrás parecia plenamente vitorioso na sua consolidação, apresenta, já, claros sinais de esgotamento.

Foi ao encabeçar a luta por reformas de forte apelo popular que as forças socialistas se tornaram hegemônicas no interior dos processos revolucionários dos seus países e puderam encaminhá-los para a transformação socialista

Os pontos capazes de aglutinar, neste contexto, um “bloco histórico” contra-hegemônico me parecem claros: a defesa da soberania nacional, da democracia e dos direitos sociais e trabalhistas. Os partidos de esquerda vêm acumulando forças no país tratando desses temas, mas nem sempre com a prioridade e atenção que a gravidade da presente crise exige. De fato, a crise de hegemonia que parece estar se desenvolvendo exige que a esquerda rompa com uma agenda meramente defensiva, para compor um bloco amplo de forças capaz de se viabilizar como alternativa efetiva de poder e pólo de um novo modelo de desenvolvimento nacional, agrupando todos os setores que são negativamente afetados (em distintos graus e de distintas maneiras) pelo projeto neoliberal. Do ponto de vista político, isto implica a construção de uma frente contra-hegemônica de centro-esquerda que vá além das fronteiras dos principais partidos de esquerda (PT, PDT, PSB e PCdoB). Assumindo a liderança da constituição desta frente, a esquerda estará disputando efetivamente a hegemonia do país e abrindo caminhos para transformações mais profundas.

A disputa e ocupação de poderes executivos a nível municipal, estadual e federal, bem como de cadeiras nas casas legislativas são, evidentemente, parte importante do processo de acumulação de forças pelos partidos de esquerda no Brasil. A questão que surge a partir da reflexão teórica que abriu este artigo é a seguinte: mas isto não significa se enquadrar passivamente no viés de classe que marca a própria institucionalidade do Estado? Diria que isto depende da concepção que preside a atuação dos partidos nesse processo de acumulação. Uma referência teórica importante para elucidar essa questão pode ser encontrada na introdução escrita por Engels há pouco mais de um século (em 1895) para o livro As Lutas de Classes na França de 1848 a 1850, de Marx. Ali, refletindo sobre as novas condições políticas criadas para o movimento socialista alemão com a extensão do sufrágio, ela argumenta que os trabalhadores deveriam explorar até o seu limite a legalidade democrática nos marcos do Estado burguês, de forma a lançar sobre a própria reação junker/ burguesa o ônus político da ruptura da sua própria legalidade. Em termos leninistas/gramscianos, isto poderia ser crucial para processar a ruptura em uma correlação de forças mais favorável, conquistando e/ou preservando a hegemonia política das forças socialistas no seu bojo e abrindo caminho para formas democráticas mais amplas e menos formais. Quem sabe não está aí uma chave teórica crucial para orientar e dar coerência à atual ação política da esquerda brasileira?

* Professor do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da PUC-Rio e do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.
** A versão original deste texto foi publicada na revista Crítica Marxista, n. 8, junho de 1999.

EDIÇÃO 54, AGO/SET/OUT, 1999, PÁGINAS 48, 49, 50, 51