Rio de Janeiro, Glória, setembro de 1953. Oswald de Andrade, o anjo antropófago do modernismo brasileiro, visita um poeta que está completando 23 anos de idade. O nome dele é José Ribamar Ferreira.

Chegou ao Rio em 51. Veio da ilha de São Luís depois de ter publicado, em 1949, Um pouco acima do cheio, seu primeiro livro de poemas. Oswald está ali pelo entusiasmo que lhe causara a leitura de A luta corporal, lido ainda nos originais. Comenta-se até que o autor de Manifesto da poesia pau-brasil teria dito que o jovem maranhense, entre os novos, era a mais destacada revelação. Mas não há nada como o tempo para passar: O José Ribamar Ferreira ficou conhecido como Ferreira Gullar. Já completou 69 anos. Cinqüenta anos produzindo poesia. Depois da morte de Drummond, alguns enveredaram pelo exercício de apontar quem seria o maioral da poesia brasileira. Nada mais ridículo. A literatura rejeita tal disputa. De qualquer forma, de Ferreira Gullar podemos afirmar: "Quem contar a história da literatura brasileira, tem de falar dele. Ou estará mentindo." Oswald acertou na mosca, Aquele moço magrelo tinha talento mesmo.

Percorrer a obra de Ferreira Gullar é viajar pelos caminhos e descaminhos do Brasil, de seu povo e de sua arte. Ele sempre defendendo a vida com as mãos e as palavras. Para cavar o seu curso no solo áspero, o rio que é sua poesia, empunhou ferramentas diversas. Dos poemas rimados e ritmados aos longos poemas em prosa; das experiências laboratoriais do concretismo e do neoconcretismo à poesia cantada na feira, os romances de cordel.

Apesar da diversidade de estilos e formas e da variedade de temas, sua obra possui uma coerência interna. Esta coerência talvez seja uma inquietante sede estética; e mais, só escrever poemas quando não houver outro recurso, escrever sob emoção, sob tensão; e, por fim, uma poesia que tem como ponto de partida a realidade e as circunstâncias e quando ganha concretitude surge sob os impactos demolidores e construtores do movimento. Declaradamente, orgulhosamente, uma poesia se tornou partidária da filosofia de não apenas descrever o mundo, mas transformá-lo.

A luta corporal (1954) é o galope de um cavalo sem sede. Uma nascente poesia acuada pelo colossal drama da existência, perscrutando estéticas, explorando os limites da linguagem, investigando enigmas, descrevendo a essência humana com rusticidade e pessimismo. De tanta tensão e busca idioma não resiste, implode e assim livro não termina, se acaba com o poema "Roçzeiral". Tendo destruído a linguagem, o poeta perde seu instrumental de trabalho, sente-se desarmado. Desaba numa crise existencial e estética. Como poeta julga-se inutilizado.

Nesse meio tempo pipoca o concretismo. É Gullar quem diz:
"Minha primeira reação foi contra, mas em seguida falei: quem sabe isso pode me tirar do buraco." Não tirou, mas surge Poemas concretos/neoconcretos (1958) representando uma tentativa de superação desse impasse.
Depois dessa crise toda, ele ressurge, em 62, com dois romances de cordel:
João Boa-Morte, cabra marcado para morrer e Quem matou Aparecida, ambos editados pelo Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE. Este recomeço através de um salto brusco provocou reações negativas. Foi enxovalhado. Acusaram-no, até mesmo de trair a poesia. É preciso recorrer a depoimentos autobiográficos do poeta para se entender surpreendente reviravolta.
Estava lá, ele, às voltas com as loucuras neoconcretas quando foi convidado para dirigir a Fundação Cultural Brasília. Isso ali por 60/61. Da Baía da Guanabara para o cerrado goiano. Brasília, diz Gullar, num só espaço "misturava arquitetura moderna e gente miserável". Ele se lançou a desenvolver um trabalho cultural "que ia do popular, do candango, do homem do povo, que construiu a cidade, à coisa mais moderna, que era a própria cidade".

Identifica-se com os candangos que após construírem a Capital foram expulsos para morar nas cidades satélites. Diz ele: "Voltei a entrar em contato com minha gente, com o nordestino, com meu povo, e a minha cabeça continuava fervendo".

Para completar o desnudamento do enigma, nesse mesmo período Gullar conhece o marxismo e o abraça com entusiasmo. Deixemos ele mesmo nos explicar:
"… esse contato de novo com o povo, com o nordestino, com os problemas da cidade, e a ebulição em que o Brasil entrou com a renúncia de Jânio e o governo de João Goulart, tudo isso contribuiu para que minha cabeça virasse ao contrário. E mais, a leitura de Marx. Compreendi, então, que o problema da poesia não podia ser resolvido dentro da poesia, mas fora dela. Que o problema estava em que eu me abrisse para a realidade do meu país, da qual eu tinha me separado em função da própria poesia e dos próprios problemas existenciais, filosóficos e poéticos em que tinha me envolvido. Aí recomecei de novo, comecei a fazer poesia como cantador de feira… "

Essa trajetória cheia de aprendizagens, de crises, angústias e descobertas desemboca na criação de dois livros que o arremessam, definitivamente, à companhia do que há de melhor na literatura de língua portuguesa: Dentro da noite veloz (1975) e Poema sujo (1976).

No primeiro, há poemas de uma beleza de dar medo. No âmbito da literatura dita engajada é um diamante do mesmo quilate de A rosa do povo, de Drummond. Esse livro é, sim, um soco forte no imperialismo e no golpe militar de 64. Mas tal soco é dado com um apuro estético que lhe custou toda uma vida de experiência poética e amadurecimento de sua consciência crítica. Em Dentro da noite veloz, solenemente, o poeta alardeia: "introduzo na poesia a palavra diarréia". Escandaliza, denunciando a miséria que corrói nosso povo. Mas essa noite não é povoada apenas por desgraças.
Brilha no seu céu, também, as cores dos fogos de artifício da memória e a delicadeza de seu lirismo amoroso.

Poema sujo, escrito no exílio, é tido, por muitos, o momento mais intenso e brilhante de sua bibliografia. É uma explosão da memória, da saudade. É um furacão que mescla, mistura todas as fases do poeta, todos os seus temas, todas as suas datas, dos seus tempos. Com ele você voa e rasteja. O cenário é o Brasil, via a ilha de São Luís. O sol, o vento, uma cidade feita de luz e azul. Os casarões cobertos por brasas. O sol fermentando as águas, apodrecendo as pêras, fazendo exalar o fedor da lama dos mangues. Para Otto Maria Carpeaux, Poema sujo "mereceria ser chamado 'poema nacional' porque encarna todas as experiências, vitórias, derrotas e esperanças da vida do homem brasileiro. É o Brasil mesmo, em versos 'sujos' e, portanto, sinceros."

Depois de doze anos sem publicar poesia – o último livro de poemas publicado fora Barulhos (1987) ele publicou em junho/ julho deste ano Muitas vozes. Muito tem se falado desse longo eclipse. Talvez pela necessidade que as nossas vidas têm da poesia dele. Alguém já disse, acho que foi o soviético Maiakóvski, que a poesia assemelha-se a certos elementos químicos. A natureza para produzir um grama deles precisa de séculos. Assim funciona, também, a oficina de Ferreira Gullar.

Em Muitas vozes (1) ecoam os gritos que a poesia dele vociferou nesse meio século de erupção. O apodrecer da polpa das frutas e o perecer das pessoas, os efeitos corrosivos do tempo; a ilha de São Luís (Gullar é igual a uma tartaruga marinha: já viveu séculos, viajou o mundo mas sempre volta à aldeia onde nasceu para desovar); as fotografias do cotidiano nas quais ele escreve o nome da rua onde aprisionou uma deslumbrante imagem, uma forte emoção; a paixão pela estética, a poesia conversando com a poesia desde A luta corporal; o intimismo, de repente você não está lendo um livro, está é com um amigo, que te fala do pai, dos filhos; e a memória que nos provoca uma dor apreciável; o lirismo, o encontro e o desencontro dos pares; o poema "Queda de Allende" garante a presença, de sempre, da história.

Muitas vozes fala muito da morte. Dos cinqüenta e quatro poemas, ela é a motivação principal de uma dúzia deles. Barulhos já falara. Mas pela notícia impactual e dolorosa da perda de pessoas queridas ou pela falta que os amigos fazem. Muitas vozes vai além: faz uma reflexão poética sobre a morte. Coisa que por medo ou tolice evitamos fazer.

"A morte é uma certeza invencível", nos diz o poema "Tato". Todavia, não se trata de um réquiem. Ao nos sacudir, ao nos lembrar, insistentemente, da inevitabilidade da morte, a lírica de Gullar parece querer nos dar lições de existir, nos empurra ao alto-mar da vida. Escutem. "Extravio" é um poema importante desse livro. Ao viver intensamente, a gente vai se extraviando, vai dispersando nas coisas, nas pessoas, se desfazendo nas nuvens.

Entretanto, a vida vence. Vibra forte, sobretudo, nas vozes dos poemas "Electra II", "Coito", "Sortilégio" e na maravilha que é "Dança Flamenca". O final de um deles, diz:
"emergias da treva
as coxas o ventre
os seios
eram luas encantadas
e do centro
do teu corpo
a macia estrela negra
me chamava
para dentro de si."

Adalberto Monteiro é poeta e membro da direção nacional do PCdoB.

Nota

(1) Muitas Vozes, Ferreira Gullar, Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1999,118 pp. R$ 17,00

EDIÇÃO 55, NOV/DEZ/JAN, 1999-2000, PÁGINAS 76, 77, 78